21 de janeiro de 2012

TROVA # 2*

A MAGIA DO SECOS & MOLHADOS**

* Quando era adolescente, lá pelos idos da década de 1990, era o típico jovem “aborrecente” que só ouvia música em inglês. No entanto, apenas três artistas chamavam minha atenção naquela época: Rita Lee, Ney Matogrosso e Maria Bethânia – artistas que não tinham surgido na minha geração, mas que me diziam muito. No ano em que iniciei a Faculdade de Letras, resolvi prestar mais atenção na banda que projetou Ney para os quatro cantos deste planeta. Descobri o Secos & Molhados e me tornei não apenas fã, como pesquisador deste fenômeno meteórico que foi sinônimo de ousadia, liberdade e música de primeiríssima qualidade. Concluí a graduação, a pós-graduação (não, necessariamente!) e minha paixão por este grupo continua... Por isso, não poderia deixar de fazer meu tributo ao Secos & Molhados e o que este grupo significou/significa para mim.

** Este texto foi publicado há exatamente cinco anos no site oficial de Ney Matogrosso. Na época, eu estava em fase de conclusão de minha Dissertação de Mestrado sobre o Secos & Molhados e fiz um breve perfil do grupo que tomou o Brasil inteiro de assalto entre 1973 e 1974. A versão que aqui apresento foi devidamente atualizada de acordo com o novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa. Nada foi acrescentado ao conteúdo do texto. Afinal de contas, time que está ganhando não deve ser alterado, não é verdade?

Aquelas noites de dezembro de 1972 jamais teriam sido as mesmas se um grupo musical composto por três rapazes não tivesse se apresentado na Casa de Badalação & Tédio, uma espécie de anexo do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Surgia, naquele palco, ao lado de João Ricardo e Gerson Conrad, uma criatura bem estranha: um rapaz bigodudo requebrando provocativamente, com uma voz incomum e insólita para alguém do sexo masculino, vestido com uma calça de cetim e uma grinalda na cabeça, bastante maquiado e repleto de purpurina. Não parecia nem homem nem mulher, nem rumbeira nem cigana, nem animal nem ser humano. Era Ney Matogrosso que vinha a público com todo o seu fogo cênico e desaforado, acalentado por anos e anos de teatro.
Graças ao empenho do empresário Moracy do Val, que decidira contratar o grupo assim que o assistiu pela primeira vez, a temporada de shows no Ruth Escobar rendeu uma série de apresentações em outros locais, transformando o Secos & Molhados em uma sensação das noites paulistanas como num passe de mágica. Poucos meses depois de sua estreia nos palcos, o grupo entrou no estúdio Prova (SP) para as gravações de seu primeiro disco. Entre maio e junho de 1973, o álbum foi gravado.

João Ricardo (violão) e Ney Matogrosso durante ensaio para um show do Secos & Molhados
A capa do primeiro disco do Secos & Molhados foi fotografada e produzida por Antônio Carlos Rodrigues, que, ao tomar conhecimento do nome do grupo, decidiu criar uma mesa de jantar com produtos perecíveis normalmente vendidos em um armazém (um nome genérico para secos e molhados). Porém, o prato principal do banquete consistia simplesmente das cabeças de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias (baterista que não aceitou integrar o grupo).
Ao lançar o álbum, a gravadora Continental produziu apenas 1.500 cópias do primeiro trabalho do Secos & Molhados. No entanto, a aparição do grupo em rede nacional na estreia do programa Fantástico, da Rede Globo, provocou uma enorme curiosidade por parte do grande público em relação à novidade que surgia. Em aproximadamente uma semana, os 1.500 discos já tinham sido vendidos. Os executivos da indústria fonográfica se viram obrigados a derreter vinis de outros artistas que não vendiam tanto para fabricar mais álbuns do Secos & Molhados, uma vez que faltava matéria-prima disponível para prensar mais discos. Enquanto isso, as rádios tocavam sucessos como “O Vira” (João Ricardo – Luhli), “Sangue latino” (João Ricardo – Paulinho Mendonça) e “Rosa de Hiroshima” (Gerson Conrad – Vinícius de Moraes).
Os shows de lançamento do primeiro disco foram no Teatro Itália, em setembro de 1973, rendendo uma série de lembranças inesquecíveis para os que estiveram lá para assistir o grupo nos palcos. A partir daí, Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso começaram a se apresentar por todo o Brasil, causando frenesi por onde passavam. Um exemplo deste fato se deu no Rio de Janeiro em novembro do mesmo ano, numa temporada no Teatro Tereza Rachel: o assédio dos fãs era tão grande que filas e filas se formavam na expectativa de ver o Secos & Molhados no palco!
Era evidente que uma manifestação tão rica e intensa como o Secos & Molhados incomodava a ditadura militar que castigava o Brasil no início da década de 70. O incômodo não se justificava por algo político sem querer ser (o Secos não era um grupo politicamente engajado), mas por possuir uma irreverência que afrontava a moralidade de muitas famílias brasileiras. Abordar a falta de liberdade e expor a sexualidade incomum (até então) provocava a inquietação nas altas patentes do governo. Entretanto, censurar um fenômeno maciço de crítica e público era tarefa impossível.
A aparição de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso no Rio de Janeiro foi tão bem-sucedida que eles foram convidados para uma temporada de um mês no Tereza Rachel, com direito a uma censora dentro do camarim de Ney o tempo todo. O sucesso foi tamanho que eles decidiram fazer um show de encerramento no Ginásio do Maracanãzinho, em 13 de fevereiro de 1974. Muitos acharam o convite um absurdo, pois nenhuma atração brasileira tinha tido a oportunidade de se apresentar naquele palco apenas com seu próprio espetáculo. Outros temiam que Ney fosse agredido pelo público. Havia expectativas de que não haveria pessoas suficientes para preencher o local.

Gerson Conrad, Ney Matogrosso e João Ricardo em ação...
A receptividade dos mexicanos também foi muito positiva. Em pouco tempo, a postura ousada e provocante do Secos & Molhados deixou o país em polvorosa, com direito a uma foto deles na capa da famosa revista norte-americana Billboard. Segundo os membros do grupo, empresários norte-americanos, fascinados com o impacto visual provocado pela maquiagem de Ney, João e Gerson, convidaram-nos para apresentações nos Estados Unidos. Ney Matogrosso relatou, certa vez, que um destes executivos lhe propôs a abandonar o Secos & Molhados e fazer uma carreira solo na terra do Tio Sam com um repertório mais pesado e mantendo sua indefectível presença de palco. A possibilidade de se transformar em uma versão glitter e caricatural de Carmen Miranda em um território cuja língua jamais dominara não o animou, para o alívio de muitos brasileiros...
Em pouco mais de um ano, o primeiro LP do Secos & Molhados vendeu cerca de um milhão de cópias, concorrendo com o maior vendedor de discos do Brasil em todos os tempos, Roberto Carlos. Pela primeira vez em sua história, o “Rei” se viu obrigado a dividir seu trono com corujas, pirilampos, sacis e fadas.
O sucesso do primeiro LP do Secos & Molhados foi tamanho que a gravadora Continental precisou derreter vinis de outros artistas para fabricar LPs deste fenômeno de vendas.
          Ao retornarem do México, iniciaram-se as sessões de gravação do disco sucessor ao álbum das cabeças cortadas. As turbulências internas entre os integrantes do Secos & Molhados provocaram rumores de sua dissolução antes do início das gravações. Ney Matogrosso já tinha optado por abandonar o grupo, decisão que só seria oficialmente tomada assim que o segundo disco fosse para as lojas. João Ricardo assumiu a produção do trabalho, função que antes cabia a Moracy do Val, que, nesta altura dos acontecimentos, não era mais empresário do Secos. As gravações do segundo álbum do Secos & Molhados se deram em meio a uma atmosfera de desentendimentos, disputas e crises.
Previa-se que o lançamento do segundo disco do Secos & Molhados seria o principal acontecimento fonográfico de 1974, mas as notícias da separação de seus integrantes chegaram aos jornais antes da primeira semana de agosto. Muitos compraram o novo álbum com um sabor de tristeza ao saber que Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso já não eram mais um único grupo. Os três decidiram sair em carreira solo a partir da dissolução do fenômeno: Gerson Conrad se uniu a Paulinho Mendonça (co-autor de “Sangue latino” e “Delírio...”, do segundo disco) gravou um álbum em parceria com a cantora e atriz Zezé Motta no ano seguinte e depois fez um trabalho solo em 1981 (Rosto marcado); João Ricardo se dividiu em projetos solo e em formações alternativas do Secos & Molhados; Ney Matogrosso, por sua vez, seguiu em carreira solo e estreou em 1975 com o show Homem de Neanderthal e o disco Água do Céu-Passaro.
Contrariando todas as previsões, o Secos & Molhados não só conseguiu a façanha de ser a primeira atração nacional a lotar o Maracanãzinho (20 mil pessoas foram assisti-los e eles ainda deixaram outras milhares de pessoas do lado de fora!), como teve a sua apresentação transmitida pela Rede Globo para todo o Brasil. Tal acontecimento rendeu em uma das noites mais importantes da História da Música Popular Brasileira e foi fundamental para que o grupo seguisse rumo a uma turnê de duas semanas pelo México, tempos depois. Em 1980, foi lançado o LP Secos & Molhados Ao vivo no Maracanãzinho, com supervisão de Gerson Conrad e com os melhores momentos daquele show. Este trabalho nunca foi lançado oficialmente em CD por não possuir uma boa qualidade técnica e problemas de som.
Brigas e farpas à parte, a carreira do Secos & Molhados marca um dos momentos mais importantes da música popular brasileira. Seus discos e suas apresentações ao vivo renderam legiões de fãs e admiradores até os dias de hoje. Falar sobre a magia em torno do Secos & Molhados não é apenas se referir à trajetória de nossas artes, mas é também recorrer à memória coletiva de muitos brasileiros.

Acessem:

A fonte original deste texto, retirada do site oficial de Ney Matogrosso - http://www2.uol.com.br/neymatogrosso/show01_t01.html
O link de minha Dissertação de Mestrado, O Doce & O Amargo do Secos & Molhados, defendida a ferro e fogo por mim, em 2007 - http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2009-07-27T143936Z-2143/Publico/Vinicius%20Silva-Dissert.pdf

Vejam:

19 de janeiro de 2012

TROVA # 1


ALGUMAS COISAS DO MUNDO DE NARA LEÃO


“Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí
Levando o violão debaixo do braço”
Diz que fui por aí” – Hortênsio Rocha & Zé Kéti
Canção gravada por Nara Leão em seu disco de estreia, de 1964.
Um sentimento de amargor sempre toma conta de mim quando o dia 19 de janeiro se aproxima. Meus motivos são apenas dois, porém bastante convincentes: em 1943, nasceu Janis Joplin, a “pérola negra do Texas” (morta, precocemente, aos 27 anos de idade); em 1982, o Brasil chorava copiosamente a morte de sua cantora maior, a “Pimentinha” Elis Regina (falecida aos 36 anos de idade, no auge de sua forma vocal).
Por outro lado, 19 de janeiro também foi uma data marcante para outra estrela de nossa canção popular. Sim, refiro-me à Nara Leão que, se estivesse entre nós, completaria 70 anos de idade no dia de hoje.
Quando ouço essas cantoras brasileiras de atitude e sabor cool (Adriana Calcanhotto, Tiê, Céu, Nina Becker, Fernanda Takai, etc. etc. etc.), é impossível não reconhecer a influência de Nara. A filha do casal Jairo Leão e Altina Lofêgo Leão foi, desde muito jovem, uma alma à frente de seu tempo. Recebeu uma educação liberal (o que era incomum para as meninas brasileiras dos anos 1950) e fugiu do arquétipo da “menina rica de Copacabana”.

Sua relação com a música começou ainda menina quando começou a fazer aulas de violão com um dos maiores Mestres no assunto, o violonista Patrício Teixeira (1893-1972). Com o passar do tempo, Nara passou a fazer aulas acompanhada de um amigo, (depois, futuro namorado) que, como ela, tinha o desejo de aprender a tocar um instrumento. O nome do rapaz? Roberto Menescal! Uma duplinha e tanto, não?

As aulas de violão logo evoluíram para reuniões musicais que tinham como sede a residência da família Leão, na Avenida Atlântica, Posto 4 da Praia de Copacabana – um dos lugares mais privilegiados do Rio de Janeiro. Aos poucos, o tal cômodo se transformou em um dos polos criativos de uma nova maneira de se fazer música, a chamada “música de apartamento”. Nascia, a Bossa Nova, graças a um desejo coletivo de vários jovens em querer fazer uma arte que se diferenciava dos dramalhões que a Rádio Nacional veiculava diariamente. Vinícius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto transformaram-se na Santíssima Trindade do movimento. Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli passaram a atuar como arautos da Bossa que se anunciava para o Brasil inteiro. Nara, já namorada de Bôscoli, foi eleita a musa do movimento.

No entanto, Nara Leão não queria apenas ser a musa de uma vertente musical. Queria se comunicar com um Brasil que fervilhava cada vez mais na medida em que a primeira metade da década de 1960 avançava com suas mudanças nos planos político, social e cultural. A moça acreditava que a música popular deveria se comunicar diretamente com a sociedade e com as transformações que surgiam com o passar dos tempos. Seu primeiro disco, lançado no início de 1964 já atestava isso: Nara gravou, em seu trabalho de estreia, clássicos de Carlos Lyra, Baden Powell, Vinícius de Moraes (autores que já estavam ligados à chamada Canção de Protesto), além de nomes consagrados do samba como Cartola e Nelson Cavaquinho. Alguns especialistas apontam este trabalho como o primeiro disco de uma nova ordem musical que logo foi chamada de “MPB”.
E os pioneirismos de Nara não ficaram por aí. Tornou-se um dos principais expoentes da Canção de Protesto ao estrelar os musicais Opinião e Liberdade, Liberdade!; descobriu cantores e compositores que foram definitivos para a formação da música brasileira contemporânea como Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Sidney Miller, Jards Macalé, Raimundo Fagner, dentre outros; reconheceu a importância estética do Iê-Iê-Iê dos Beatles, Stones e do programa Jovem Guarda, além de ter dado chancela a um dos movimentos culturais mais importantes de todos os tempos, o Tropicalismo – sua participação no disco Tropicália ou Panis et Circensis interpretando “Lindoneia” (Caetano Veloso / Gilberto Gil) foi fundamental para que Caetano e Gil estabelecessem as propostas estéticas do movimento; além disso, foi uma das primeiras cantoras do mainstream brasileiro a gravar um disco de duetos e a dedicar trabalhos exclusivos ao cancioneiro infantil e às líricas de Roberto & Erasmo Carlos e Chico Buarque de Hollanda. Realmente, os serviços que esta mulher prestou para nossa música não foram de pouca qualidade!
           Um tumor no cérebro foi o responsável da ausência de Nara entre nós. Quando a Musa se foi, em 1989, o Brasil começava a viver a democracia depois de 21 anos de uma ditadura ferrenha que esta artista tanto combateu. Se tivéssemos o privilégio do convívio desta grande mulher, ela teria tido a oportunidade de ver uma mulher Presidente da República e de ter obtido o reconhecimento devido por parte da crítica e do público. Por isso, esta primeira trova é dedicada aos 70 anos do nascimento de Nara Lofêgo Leão. Faz escuro, mas nós ainda cantamos sua magnífica obra.
Acessem:
Site oficial de Nara Leão, mantido por sua filha, Isabel Diegues - http://naraleao.com.br/index.php
Um artigo acadêmico sobre as relações de Nara Leão e o Tropicalismo, escrito por mim em 2008 - http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/030/VINICIUS_SILVA.pdf
Um texto sobre Nara escrito por Rafael Cortez -  http://rafael.cortez.zip.net/arch2008-04-27_2008-05-03.html

Vejam: