28 de junho de 2015

TROVA # 50

A NUDEZ ARTÍSTICA DE NINA SIMONE





“You can’t help it. An artist’s duty, as far as I’m concerned, is to reflect the times.”
(Nina Simone)

         
      Quando li no jornal que o documentário What Happened, Miss Simone?, de Liz Garbus, iria estrear no Brasil via Netflix, já fiquei com urticária para assistir o legado de uma das artistas mais importantes de todos os tempos. Nina Simone não foi apenas uma artista negra que tinha uma voz lindíssima e tocava um piano de primeiríssima. Ela foi um ser humano que lutou por aquilo que acreditava e que refletiu as mudanças de um tempo extremamente nefasto para a história do planeta, os anos 1960.

A artista aos 14 anos de idade.
Nina na capa de seu último álbum de estúdio, lançado em 1993.

Nascida em Tyron, Carolina do Norte, em 21 de Fevereiro de 1933, Eunice Kathleen Waymon (seu nome de batismo) era filha de uma pregadora evangélica e, como TODAS as cantoras de sua geração, teve seus primeiros contatos musicais dentro da comunidade religiosa.  Começou a tocar piano aos 4 anos de idade e foi preparada para ser a primeira concertista negra dos Estados Unidos da América. Se o Curtis Institute of Music não tivesse recusado o talento de uma jovem tão virtuosa pelo descarado motivo de racismo, ela certamente teria sido uma pioneira na música clássica na terra de Uncle Sam. Com a impossibilidade de dar continuidade aos seus estudos em piano clássico, Eunice Waymon precisou começar a trabalhar para manter sua família e deixou de existir para virar a lendária Nina Simone, nome que adotou para que sua mãe não soubesse que a filha cantava a “música do demônio” nos palcos dos nightclubs da Philadelphia.


O estilo musical de Nina era uma mistura de Jazz, Blues e o virtuosismo de um Bach e de um Mendelssohn combinados com uma fulgurante voz de contralto. A música popular foi elevada para um patamar muito mais sofisticado graças aos dedos mágicos e ao timbre incomum de Miss Simone e na virada dos anos 1950 para os anos 1960, Nina já era uma das artistas mais festejadas dos EUA com uma série de discos gravados ao vivo e em estúdio. Sua interpretação para os standards da canção norte-americana e para os compositores de sua geração é marcada por uma classe e por um requinte que a coloca ao lado de musas do Jazz como Billie Holliday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.


Dentre todos os artistas que lutaram a favor das minorias, pouquíssimas o fizeram com tanta veemência como Nina. Sua participação na luta pelos direitos civis foi decisiva para que os EUA enfrentassem de vez a questão do racismo e deixassem as diferenças entre brancos e negros serem varridas para debaixo do tapete. Como não podia pegar em armas (vontade não lhe faltou) sua arma era o piano e a canção era o seu rastilho de pólvora para que vislumbrássemos a importância de sua luta pelos direitos dos afro-americanos. Foi uma das amigas pessoais de Malcolm X e conheceu muitos integrantes da intelligentsia negra norte-americana.

Nina Simone e sua única filha, Lisa Simone Kelly.

Liz Garbus expõe estas e outras questões no irrepreensível documentário What Happened, Miss Simone?.  Ao eleger a única filha da artista, Lisa Simone Kelly, como a narradora do filme, ela não só consegue retratar um dos nomes mais intrigantes da música do planeta a partir de uma ótica bastante pessoal e peculiar, como também não deixa de expor as contradições e as tragédias pessoais que rondaram a vida e a arte de Nina Simone. O relacionamento conturbado com o marido Andrew Stroud (pai de Lisa e ex-empresário da artista, de quem apanhava constantemente), o prestígio e o declínio de popularidade devido aos seus posicionamentos radicais no tocante aos direitos civis, os ataques de fúria causados por seu humor extremamente instável e volátil – Nina foi diagnosticada no final dos anos 1980 com transtorno bipolar, o que explicava muito em relação à sua instabilidade – e a reclusão e o ostracismo a partir dos anos 1970 foram pontos que não deixaram de ser tocados no filme de Garbus.


What Happened, Miss Simone? consegue a proeza de revelar a essência de uma das maiores artistas de todos os tempos. Expõe a nudez de uma artista que soube refletir a ferocidade de seu tempo não apenas pela luta de seus ideais, mas principalmente por ter sido alguém que lutou contra seus demônios mais ocultos, mais pessoais, tão intensos quanto o sofrimento de muitos negros que perdemos na luta pelo racismo. A luta principal de Nina era maior do que o embate que buscava direitos civis para em um país fundado em segredos, mentiras e repressão: era uma guerra contra si mesma. O filme de Liz Garbus expõe esta nudez com extrema delicadeza e com uma intensidade feroz, da mesma maneira que Nina Simone agiu na arte e na vida.



VEJA O TRAILER DO FILME “WHAT HAPPENED, MISS SIMONE?”, DE LIZ GARBUS





E VEJA 15 MOTIVOS PARA VOCÊ SE APAIXONAR POR NINA SIMONE:


1) My Baby Just Cares for Me



2) Feeling Good



3) The Work Song



4) Don’t Let Me Be Misunderstood



5) Why (The King of Love is Dead)



6) Mississippi Goddam



7) The Times They Are A-Changin’



8) Young, Gifted and Black



9) I Loves You Porgy



10) I Want a Little Sugar in My Bowl



11) Nobody’s Fault But Mine



12) I Put A Spell on You



13) Backlash Blues



14) Ne Me Quitte Pas


15) Little Girl Blue



8 de junho de 2015

TROVA # 49

OS PECADOS DOS OUTROS


Nilton Serra, obrigado pelo mote!
"Jesus morreu pelos pecados dos outros, não pelos meus..."
Patti Smith


Sinceramente, não gosto muito da Parada LGBT que toma a Paulista de assalto todo ano. Não sou fã de aglomerações em lugares públicos. Tampouco me sinto atraído por eventos públicos que mais parecem comemorações de Carnaval fora da época. Na décima nona edição do evento que ocorre aqui em São Paulo, não me fiz de rogado e não deixei de expressar o meu mau humor público em relação à parada e fiquei em casa e me preparei para ir ver um show com menos gente.


As polêmicas em relação ao evento são intermináveis: seja em relação à exuberância das travestis, seja no tocante às declarações de alguém ou até em relação aos delitos cometidos durante um dos eventos que mais atrai turistas para a cidade de São Paulo. Os reacionários de plantão sempre aproveitam as suas plataformas discursivas para atacar um movimento que já é extremamente desunido.


No entanto, a décima nona edição da parada do orgulho LGBT nos ofereceu uma imagem para reflexão. Uma transexual apareceu crucificada como Jesus em alusão aos crimes de homofobia cometidos no Brasil. Estatísticas dizem que ocorre uma morte a cada 28 horas. Muitas brutais. E vale ressaltar que os números, infelizmente, tem aumentado. A reação dos radicais religiosos conservadores foi não apenas de orquestrar uma série de calúnias e ofensas ao movimento, como também aproveitaram para disseminar imagens de outros protestos com o intuito de descredenciar ainda mais a legitimidade da luta.



Patti Smith: sabedoria, poesia e contestação
Neymar: um mártir da publicidade?

Diante das reações extremadas e hipócritas em relação à transex que decidiu elevar sua voz de uma maneira muito inteligente, volto a me lembrar de várias manifestações de liberdade e contestação diante dos símbolos religiosos... Patti Smith deve ter chocado (e creio que ainda choca!) o mundo inteiro em 1975 quando disse que "Jesus morreu pelos pecados dos outros, não pelos meus". Madonna beijou um santo negro, colocou cruzes em chamas e dançou freneticamente em frente destas em "Like a Prayer" e deixou a sociedade global em polvorosa. A mesma Madonna apareceu crucificada com direito a uma coroa de espinhos na Confessions Tour e ainda conseguiu deixar mais alguns de queixo caído.



A imagem da crucificação é utilizada a torto e a direito e com fins publicitários, ou seja, religiosamente escusos. E em 2015 uma parte da sociedade brasileira resolve se chocar por causa de uma transexual crucificada? Em tempos de heteronormatividade e homofobia que ignora que o Brasil é um Estado Laico, demonstrar indignação em relação à moça da Parada LGBT é, no mínimo, uma demonstração de retrocesso e burrice. Parafraseio mais uma vez minha amada Patti Smith, se Jesus morreu pelos pecados dos outros que aí se indignam, certamente não foi pelos meus que ele morreu...




E vamos tirar Jesus da cruz, minha gente?