31 de julho de 2016

TROVA # 78

A SEDUÇÃO ILIMITADA DO MAESTRO DO AMOR
(ou algumas de minhas memórias sobre Barry White)

Amado Maestro

There's people making babies to my music. That's nice.
(Barry White)


         Música sempre foi um assunto sério lá em casa: ela se fazia presente desde a sala de estar até os quartos de dormir e passava pelos demais cômodos do já saudoso apartamento em que vivíamos na Ilha do Governador. Por outro lado, tenho recordações bastante especiais do que ouvíamos nos automóveis que o Sr. Orlando, meu velho e bom pai, teve no decorrer da vida: The Police, Simply Red, Rod Stewart, Phil Collins, Genesis e outros nomes de peso do Pop Rock internacional eram super habituais nas caixas de som dos Fuscas, Passats, Gols, Fiats que eram os veículos da família. Nenhuma destas minhas memórias são tão repletas de afetividade quanto a audição dos clássicos de Barry White, que embalou os momentos mais comuns dos meus pais e, por tabela, os meus.


Barry White no programa de TV Soul Train, em 1973.
         White, que na verdade se chamava, Barry Eugene Carter, nasceu na cidade texana de Galveston, em 1944. A música não foi apenas a fonte de suas paixões, mas foi a sua verdadeira tábua de salvação de um futuro que não lhe prometia sucesso e glória. Ao ouvir a gravação antológica de Elvis Presley para “It’s Now or Never” em uma prisão (o jovem Barry tinha sido condenado por roubo qualificado), viu que o seu caminho para encontrar o seu pote de ouro simbólico era trilhando os passos do Rei do Rock, cujo topete carcaterístico imitava aberta e descaradamente no decorrer dos enlouquecidos anos 1970. Começou sua vida artística como homem de Artistas & Repertório (A&R) em uma pequena gravadora na década anterior. Pouco tempo depois, tornou-se um respeitado produtor musical e revelou talentos musicais maravilhosos como o trio vocal feminino Love Unlimited e a fantástica Love Unlimited Orchestra, que fez sons inesquecíveis para quem teve os seus dias de juventude em meio a penteados afro/black power e calças boca de sino.


         Barry White se lançou como cantor em 1973 e logo se popularizou com um repertório romântico e dançante que misturava Soul, Funk, Disco e Latin Music embalados por uma voz de baixo-barítono que voava feito um foguete sonoro que desbravava nuvens e céus com as meninas do Love Unlimited e as cordas e sopros da Love Unlimited Orchestra como tripulantes de um voo do amor. O tom sussurrado e falado utilizado por Barry se alternava com os agudos potentes tornaram sua voz em uma marca registrada e em um padrão de referência para vários homens que decidissem se aventurar pelos caminhos da canção popular. Os esforços de White, sua abordagem incomum para emplacar hits nas paradas de sucesso e um som que era fruto da influência de gênios do porte de Ray Charles, Aretha Franklin, o som da gravadora Motown lhe renderam mais de 100 milhões de discos vendidos em mais de três décadas de carreira.



         Um dos meus álbuns preferidos de Barry White é o obscuro Beware!, lançado em 1981. Lançado após um período de imenso sucesso – que lhe rendeu sucessos monstruosos como “Let the Music Play” e a sua versão inesquecível para “Just the Way You Are”, de Billy Joel e os smash hits “You’re the First, the Last, My Everything” e “Can’t Get Enough of Your Love, Babe”, este trabalho marca o flerte intenso do músico texano com o sabor caliente dos sons latinos que vinham do Brasil. Sua canção dedicada ao Rio de Janeiro é um dos maiores hinos de amor ao povo carioca e marcou o início de suas várias idas e vindas pela Cidade Maravilhosa. A gravação da faixa-título, da autoria de JoAnn Belvin, é um dos momentos mais emocionantes da carreira de White. “I Won’t Settle for Less than The Best (for You Baby) e “Let Me In and Let’s Begin with Love”, parcerias de Barry com Vella M. Cameron, são dois retratos intensos do que podemos fazer de mais honesto e apaixonado em uma relação a dois. Os vocais açucarados embalados por excelentes músicos e cantores de apoio, além dos sopros e cordas da Love Unlimited Orchestra são de deixar qualquer músico e ouvinte sem fôlego.

A capa de Beware! (1981)

         As poucas informações disponíveis acerca da discografia de Barry White nos levam a crer que Beware!, apesar de ter feito relativo sucesso no Brasil, não teve uma boa acolhida pela crítica especializada e pelo público do maestro. Talvez a presença de carga erótica e latinidade do disco não tenham agradados aos que se animavam com a chamada New Wave. O que me importa é que este trabalho de Barry – lançado no mesmíssimo ano em que eu nasci – faz parte da minha discoteca básica há mais de 20 anos. Ao ouvir p álbum recentemente (desta vez no HB20 de minha mãe, que tinha as canções do CD em uma seara de arquivos em MP3 que alimentam o carro de D. Elizabeth), senti que a beleza desta obra-prima continua intacta.

A capa de Just Another Way to Say I Love You (1975)

         Retomar o contato com a música de Barry White não é apenas um convite para retomar as memórias familiares mais escondidas em meu recôndito pessoal. É recordar a origem de minha paixão por vozes grandiosas, arranjos orquestrados e os balanços e embalos das velhas canções de amor que (ao contrário do que dizem por aí...) jamais envelhecem. Creio que foi aquele veludo vocal que me ajudou a ter esta vontade louca e incontrolável de querer cantar por aí. Enquanto muitas mulheres devem ter se rendido aos encantos de Mr. White, eu me deixei seduzir pelo talento musical ilimitado do Maestro do Amor. E assim tem sido e há de ser por muitos anos...


BARRY WHITE’S TOP 10

1. You’re the First, the Last, My Everything


2.   Can’t Get Enough of Your Love, Babe


3.   Honey Please, Can’t Ya See


4.   I’ve Got So Much to Give


5.   Don’t Make Me Wait Too Long


6.   Let the Music Play


7.   Your Sweetness is my Weakness


8.   It’s Ecstasy when You Lay Down Next to Me


9.   I’ll Do Anything You Want Me To


10.    How Did You Know It Was Me?



BONUS # 1: Around the World (Lisa Stansfield & Barry White)


BONUS # 2: Under the Influence of Love (Love Unlimited Orchestra)


25 de julho de 2016

TROVA # 77

A HONESTIDADE NA TERRA DA CONFUSÃO

Grande Otelo como Macunaíma no filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade 



O seu dinheiro nasce de repente
E embora não se saiba se é verdade
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e felicidade

(...)

E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?
(Noel Rosa, 1933)
“There’s too many men, too many people
Making too many problems
And there’s not much love to go around
Can’t you see this is a land of confusion?

This is the world we live in
And these are the hands we’re given
Use them and let’s start trying
To make it a place worth living in”
(Tony Banks, Phil Collins & Mike Rutherford, 1986)

Se Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade vivesse por aqui em 2016, ele iria vociferar e repetir sem pestanejar: “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. A vida política brasileira sofreu um abalo sísmico profundo com o golpe que destituiu Dilma Rousseff no segundo ano de seu segundo mandato. Os responsáveis? As formigas comilonas que sempre busca(ra)m saciar a sua eterna gula.


Quem são as tais saúvas que seriam citadas por Macunaíma hoje? Os políticos desonestos e golpistas eleitos por nós para nos apunhalar abertamente no exercício de seus mandatos, um judiciário corrupto e conivente com a injustiça deste país e a grande mídia, pertencente às oligarquias econômicas brasileiras que distorcem os fatos e exploram a população. Estou bem longe de ser uma formiguinha gulosa: não pertenço ao rol daqueles que tiveram o privilégio de ter nascido em berço de ouro, tampouco fui vítima da ascensão social que me trouxe estabilidade financeira e ausência de senso crítico. Sou um trabalhador que ouve e pensa basicamente através da música que ouço e dos livros que leio. Mesmo assim, sei que sou, dentre a realidade de grande maioria dos brasileiros, um afortunado, por ter curso superior, pós-graduação em uma universidade federal e ter uma parcela considerável de conforto sem ter que roubar, enganar poucas pessoas ou desejar o mal de quase ninguém. Procuro ostensivamente por uma virtude que raramente se vê no Brasil: HONESTIDADE.


A inimiga número 1 da honestidade é a hipocrisia. As saúvas que devoram o nosso país todo dia são hipócritas por excelência. Vide o exemplo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, majoritariamente investigada por crimes de corrupção, julgando um processo de impeachment de uma governante eleita com 54 milhões de votos e que não enriqueceu, nem possui dinheiro público em paraísos fiscais na Suíça ou nas Ilhas Cayman. Membros do STF são acusados de receberam propina do PSDB e seus colegas juízes estão sempre dispostos a protegerem os malfeitos dos tucanos e maximizarem os erros de membros do PT, às vezes, sem provas concretas. A polícia reprime negros, pobres e honestos indiscriminadamente enquanto milhares de bandidos estão tranquilamente soltos por aí. Tudo isso recebe a bênção do quarto poder: a nata da imprensa brasileira – ou o GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão), uma nomeação alternativa cunhada por mim para que o renomado jornalista Paulo Henrique Amorim chama de PiG (Partido da Imprensa Golpista) – defende os interesses de uma dúzia de famílias oligarcas (Marinho, Civita, Frias e Mesquita entre elas) ao se revelar tendenciosa e afirmar descaradamente que o jornalismo que pratica é justo e imparcial.


A hipocrisia que se faz soberana em muitas salas de jantar deste país faz com que uma expressiva parcela da sociedade ignore as suas verdadeiras prioridades. Remover os petistas do governo federal (um projeto obsessivo e antigo das elites) tornou-se mais importante do que combater a crescente cultura do estupro e da homofobia, que faz milhares de vítimas enquanto uma agenda político-social conservadora toma conta do Brasil, majoritariamente orientada por políticos evangélicos. A privatização das Universidades públicas com a desculpa de que são um alto custo para os governos locais não merecem a mesma atenção do que o projeto de lei estapafúrdio de uma “escola sem partido” – lembremos, mais uma vez da frase antológica de Darcy Ribeiro: “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” – enquanto o legado de Paulo Freire é amaldiçoado por vários brasileiros enquanto o autor de Pedagogia da Autonomia é respeitadíssimo no exterior. Corruptos muito mais nocivos foram postos no poder no lugar de um grupo político supostamente desonesto. Enquanto o Rio de Janeiro está moral e financeiramente falido, um falso clima de euforia é embutido na rotina da população através de uma tocha olímpica que recebe mais atenção policial do que muitos criminosos à solta por aí. Delações premiadas se tornaram mais valorizadas do que demonstrações cabais de honestidade. Os hipócritas seguem animados com o seu projeto: o de inverter os valores mais básicos para nós.


Ao contrário do que aconteceu por aqui pós-1964, o Brasil ficou insuportavelmente polarizado entre “coxinhas” e “mortadelas”, deixando a inteligência literalmente de lado. O debate intelectualizado e qualificado foi substituído por ataques verbais (físicos, às vezes) de todos os tipos. A capacidade de análise tem sido sumariamente delegada aos meios de comunicação, que trazem seus juízos de valor para uma extensa parcela de indivíduos que mal leem ou interpretam e vestem a camisa da CBF para bater panelas em suas varandas gourmet, destilar seu fascismo contido dentro de si e protestar nas ruas e avenidas aos domingos. O resultado desta catástrofe? Grande parte da classe média e trabalhadora, que deveria litar pelos seus princípios e necessidades (educação e saúde de qualidade, segurança pública decente, meios de transporte dignos e decentes, etc.), passa a defender o discurso dos mais ricos (a não criação da CPMF, que atingiria diretamente quem tem mais dinheiro, não os mais pobres!) ao serem induzidos pela irresponsabilidade e conivência do GAFE. É a supremacia da hipocrisia. A honestidade se torna cada vez mais um mito a ser devorado pelas saúvas.


As redes sociais se converteram no palco principal de debates, agressões e busca de informações relevantes sobre políticas nos últimos anos, visto que órgãos de imprensa alternativa encontraram no Twitter e no Facebook terrenos férteis para a disseminação ética e responsável de notícias. Cabe ao usuário educar o seu olhar para “filtrar” o que lê para ter uma visão menos tendenciosa dos fatos ocorridos em nosso país. Com o intuito de ser mais uma alternativa de propagação responsável da informação, de protestar contra o golpe, a corrupção e a hipocrisia, além ser uma oposição irreverente ao GAFE e outros pilares da hipocrisia brasileira, Nilton Serra e eu idealizamos um “evento” fictício chamado Constantino, nos inclua na sua lista, baseado na lista “caça às bruxas” criada pelo macarthista anêmico Rodrigo Constantino, antigo pau mandado da revista Veja e do jornal O Globo. O sucesso da página nos surpreendeu imensamente, pois muitos de nós queríamos ser “boicotados” ao lado de gente ilustríssima como Chico Buarque e muitos outros. Compramos algumas brigas e fizemos novas amizades. Passamos a dividir a moderação do “evento”, pois não tínhamos tempo hábil (e ainda não temos, porque as salas de aula demandam muito de nossa vida útil) para dar conta de tudo sozinhos.


Às vésperas do golpe que tirou Dilma Rousseff do poder, o Cafeína – página coletiva de amantes de café da qual participamos desde sua criação e brilhantemente capitaneada por nossa querida amiga Ana Paula Raulickis, em 2006 – publicou uma carta de repúdio à crise política em nossa página no Facebook. Apesar de alguns protestos coxinhas bem agressivos dizendo que iriam “descurtir” nossa  página por causa de nossa virada à esquerda (que Dilma deveria ter dado assim que foi reeleita, mas não deu!), milhares de adesões ocorreram nos dias seguintes à publicação de nosso protesto coletivo. As explicações para isso? Café também rima com mortadela. Necessitamos de discussões de fôlego nas redes sociais, apenas isso.


Por fim, decidimos criar uma page para todos os que queriam ter seu nome na lista negra do anêmico MacCarthy à brasileira. Cerca de 17 mil pessoas acompanham as postagens do Coletivo Vozes Dissonantes – nome adotado por nós, após um longo período de discussões –, enquanto cerca de 132 mil já deram o seu “Like” na página do Cafeína. Já o evento fictício Constantino, nos inclua na sua lista possui em julho de 2016 a adesão de 20 mil revoltados genuínos com a situação calamitosa que o Brasil se encontra. Algo impressionante para quem luta contra o GAFE e outros “movimentos” de direita que distribuem suas “revoltas” online e são financiados pelo que existe de pior na política conservadora brasileira.



Ao ler uma das crônicas de Fernanda Torres incluídas em Sete Anos, encontrei algo bem interessante e que diz bastante acerca do momento político-cultural brasileiro no século XXI: “(...) eu guardo a suspeita de que o Brasil é um país que se situa entre a Veja e a CartaCapital”. Em outras palavras, nosso país está entre um filme de catástrofe e uma produção de ficção científica. Em uma época extremamente confusa e delicada politicamente, sinto cada vez mais a necessidade de parar de ler jornais e seguir rumo à ignorância para o que mais de honesto em mim não me leve ao encontro da loucura. No entanto, o desejo recorrente de me resguardar é apenas benéfico para os hipócritas de plantão. Graças à hipocrisia, assistimos a olhos vistos a mitificação da honestidade na terra da confusão. Enquanto eu puder cantarolar o samba do Noel e o rock do Genesis sem correr risco à minha integridade, haverá luta permanente contra a injustiça.


PÁGINAS:

Cafeína – 


Constantino, nos inclua na sua lista https://www.facebook.com/events/939298339519775/



19 de julho de 2016

TROVA # 76

AS VERDADES DE JANIS JOPLIN
(o que o documentário Janis: Little Girl Blue, de Amy J. Berg, nos revela sobre a pérola negra do Texas)


Ah, ah, don’t you forget me Lord
Well I don’t think I’m any very special
Kind of person down here, I know better,
But I don’t think you’re gonna find anybody,
Not anybody who could say that they tried like I tried,
The worst thing you can say all about me
Is that I’m never satisfied…
(“Work Me, Lord”, de Nick Gravenites, eternizada por Janis Joplin em I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama! em 1969)


Para Lilian Severino, que sobreviveu alegremente a quase duas horas de documentário

         O bom das férias de julho para mortais como eu é poder ter a liberdade de reencontrar velhos e queridos amigos sem pensar na tarefa insana de conciliar as obrigações profissionais com o lazer de que muito precisamos. Ah, e assistir aos filmes que estávamos loucos para ver na tela grande do cinema, felicidade extrema deste incorrigível fã de música... e de Janis Joplin!
         Não me contive de tanta alegria e excitação quando meus amigos concordaram em ir ao cinema para assistir o premiado documentário Janis: Little Girl Blue, de Amy J. Berg. Fruto de décadas de pesquisas e entrevistas, a película percorreu festivais renomados como os de Toronto, Veneza e Rio de Janeiro antes de entrar em cartaz pelo circuito nacional brasileiro. Em uma época repleta de documentários musicais de extrema qualidade, artistas como os Rolling Stones, John Lennon, Bob Dylan e Amy Winehouse receberam tributos fabulosos da sétima arte. Janis Joplin merecia algo que estivesse à altura de sua grandiosidade artística.


*

         O principal trunfo de Amy J. Berg reside no fato de que ela conseguiu retratar com a exatidão a essência da pérola negra do Texas: Janis Joplin não era simplesmente uma garota que falava alto, bebia, fumava, transava e se drogava desenfreadamente. A filha mais velha do casal Seth e Dorothy Joplin foi alguém que enfrentou milhares de dificuldades de relacionamento com o mundo por ser inteligente, contestadora e fora dos padrões de beleza tiranos do Meio Oeste dos EUA. Little Girl Blue foi o elemento que apimentou o Verão do Amor que varreu San Francisco e o resto do planeta de jeito. Além disto, ela viveu a liberdade sexual em seu pleno esplendor – a entrevista de Jae Whitaker, ex-namorada de Janis no início dos anos 1960 é um dos pontos altos do filme; Peggy Caserta, outro affair de Janis, aparece apenas com sua voz em “off” e nos deu uma bela explicação a respeito do temperamento melancólico da estrela.

Janis ouvindo um segredo de Peggy Caserta nos bastidores de Woodstock

         Janis não era uma mulher envolvida pela ambiciosa vontade de ser rica e famosa. Pelo contrário: sua música era uma expressão livre de sua dor e do seu desejo de amar e de ser amada por todos. Tudo o que ela queria era fazer com que as pessoas que iam aos seus shows se divertissem tanto quanto ela se doava a partir do momento em que o microfone estava em suas mãos para que o verbo fosse rasgado através de gritos, ganidos, sussurros, miados, guitarras em fúria e metais em brasa. Miss Joplin não falava necessariamente de amor a partir de uma perspectiva romântica: Janis falava de tesão e solidão como ninguém falou. Algo nada comum inclusive para mulheres dos anos 1960, o que lhe rendeu um altíssimo preço por sempre buscar sua liberdade e integridade artística.


A infante Janis Lyn Joplin


         O filme de Amy J. Berg mostra a rápida e sensacional escalada de Janis Joplin como artista popular: de uma mera cantora de bares e pés-sujos (incapacitada em se tornar uma estrela de Folk por ter influências musicais de enorme peso como Odetta e Bessie Smith), à tímida vocalista do Big Brother & The Holding Co. e, posteriormente, à uma das maiores estrelas de Rock de todos os tempos. A mítica aparição no Monterey Pop Festival (com direito à boca aberta de Cass Elliot, do The Mamas & The Papas, que estava no gargarejo da plateia) e a fama estrondosamente repentina deram à filha mais ilustre de Port Arthur uma popularidade tão grande que literalmente extrapolou os limites do próprio Big Brother – um grupo formado por músicos amadores e autodidatas por excelência. Cheap Thrills (1968), com suas distorções, dissonâncias e desafinações, foi um álbum muito bem recebido pela crítica e pelo público. A estreia solo de Janis, I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama! (1969) foi extrema e duramente criticado pelos jornalistas da época. Miss Joplin, por ser inexperiente e por não ter condições de liderar uma banda, foi injustamente comparada pelo fato de querer soar como cantoras do porte de Aretha Franklin e Tina Turner – afinal, uma branca que soasse como negra ainda era um crime artístico inafiançável nos States dos libertários anos 1960.



Janis à frente do Big Brother & The Holding Co.


Janis à frente da Kozmic Blues Band

         A Kozmic Blues Band ainda precisava de uma série de ajustes que estavam fora do alcance de uma jovem cantora que não tinha a qualificação de uma Band Leader, tampouco conseguia controlar a sua voz de trovão com a precisão necessária – Woodstock, por exemplo, apesar de ter sido um evento importante e memorável, não trouxe Janis em sua melhor forma artística. Apesar das críticas ferozes e injustas, I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!, estreia solo de Janis Joplin, é um dos documentos mais belos e intensos das agruras sentimentais do ser humano e um dos itens essenciais e prediletos de minha coleção de discos.



         A década de 1960 não acabaria bem para Janis, tal qual nos mostrara Amy J. Berg em seu filme. O vício crescente em heroína e álcool foi a reação de Little Girl Blue às críticas violentas que a imprensa norte-americana (tão cruel quanto seus ex-colegas de colégio e faculdade, que a taxavam de “feia”). Sua capacidade de trabalho estava cada vez mais comprometida pela ilusão da fama e as desilusões amorosas frequentes. A pérola negra do Texas precisava de um refúgio longe dos EUA para que pudesse, enfim, se ver livre das drogas. O local escolhido para a rehab de Miss Joplin foi o Brasil – com direito a estadias no Rio Janeiro e Salvador, viagens pela Floresta Amazônica, alguns barracos em público, um pouco de samba e a um novo amor surgido na Praia de Ipanema, David Niehaus.

Janis e David Niehaus (dir.) curtindo o verão de 1970 no Brasil

         Ao retornar aos EUA, as pressões e a necessidade de bisar o sucesso de Cheap Thrills fizeram com que Little Girl Blue voltasse a consumir heroína em doses industriais. O relacionamento com Niehaus não sobreviveu ao vício de sua namorada famosa – ele a abandonou e voltou a viajar pelo mundo, mas prometeu retomar contato se Janis largasse a heroína. Em decisão conjunta com seu empresário, Albert Grossman, Miss Joplin decidiu desfazer a Kozmic Blues Band e recomeçar do zero. O ex-produtor do The Doors, Paul Rothchild, foi convocado para produzir o sucessor de I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama! e convocar os músicos que formariam a Full Tilt Boogie Band, última banda que acompanhou Janis Joplin. Ao oferecer a orientação técnica de que a ex-vocalista do Big Brother & The Holding Co. tanto necessitava, ela passou a cantar de um jeito que jamais cantou antes – sua voz estava mais leve, mais controlada, praticamente limpa da heroína mas não menos intensa.

Janis durante a sessão de fotos de Pearl


Janis ao lado de Paul Rothchild, produtor de Pearl

       Janis Joplin, por ter sofrido tanto com a agressividade de seus pares no passado e por ter uma necessidade incontrolável de ser amada, não sabia lidar com a solidão. Estar sozinha lhe deixava vulnerável a ponto de duvidar de sua autoestima e dar abertura para que os fantasmas que tanto lhe assombravam voltassem para lhe infernizar. Sua última turnê, o lendário Festival Express, reuniu Janis com seus indefectíveis boás no cabaelo ao lado de grandes nomes do Blues e do Rock como Buddy Guy, The Band e o Grateful Dead entre os EUA e o Canadá durante 28 de junho e 4 de julho de 1970. Paul Rothchild relatou que sua pupila odiava os intervalos de gravação do disco porque ela sabia que teria de voltar sozinha para o seu quarto de hotel de Los Angeles enquanto seus companheiros de trabalho sempre teriam alguém que os acompanhassem assim que o expediente se encerrasse. Little Girl Blue, solitária e desesperada, foi procurar em sua última dose de heroína a companhia que David Niehaus (ou talvez Peggy Caserta) não poderia lhe dar.


O encontro, como sabermos, foi fatal e abalou os rumos da vida, da carreira de Janis Joplin e da música a partir de então: uma das maiores estrelas do Rock foi morta por uma overdose aos 27 anos de idade e no auge de sua forma artística. A amante apaixonada que, infelizmente, não leu o telegrama enviado por Niehaus a tempo de dar o rumo necessário para que sua vida, enfim, adquirisse o sentido que buscava. Miss Joplin estava finalmente livre, pois definitivamente não tinha mais nada a perder.

Família Joplin - Seth, Dorothy, Laura, Janis e Michael Joplin 


Os emocionantes depoimentos de seus irmãos, Laura e Michael Joplin, dos ex-companheiros de banda Sam Andrew e David Getz e de John Byrne Cooke (ex-road manager de Janis) ajudam a compor o vasto quebra-cabeça das verdades de Janis Joplin. Enquanto os créditos começam a subir com a releitura avassaladora de “Little Girl Blue” (de Richard Rodgers e Lorenz Hart), somos surpreendidos pela aparição de um vídeo do início da década de 1970 que mostrava Dorothy Joplin lendo uma carta de uma fã saudosa de sua filha mais velha que dizia que Janis era sua melhor amiga, nos trouxe lágrimas de imensa tristeza: a amizade platônica suscitada pela estrela de Rock era tão intensa e verdadeira quanto as ofensas e xingamentos recebidos pela personalidade mais ilustre de Port Arthur. O brilhante documentário de Amy J. Berg consegue reconstituir o brilho, a tristeza, a intensidade (graças à voz linda de Cat Power, que interpretou as cartas escritas pela pérola negra do Texas com tanta perfeição que tínhamos a sensação de estarmos diante da filha primogênita do casal Dorothy e Seth Joplin) e a tragédia de uma das artistas mais visionárias do século XX: uma mulher diferente, intensa, à frente de seu tempo e que se transformou em um dos símbolos mais evidentes de liberdade.


P.S.: Há um fato que aparece em Janis: Little Girl Blue que chamou muito minha atenção: o encontro de Bob Dylan em ascensão com uma de suas maiores fãs, Janis Joplin. Ao dizer para seu ídolo de que um dia seria uma cantora muito famosa, Mr. Zimmermann fez pouco da texana com quem ele conversava e disse que todos teriam direito aos seus minutos de fama. Cinco anos depois, Janis gravaria “Dear Landlord”, canção de Dylan que infelizmente ficou fora de I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!...


We love you, Pearl!