Se você está lendo este texto na noite de 31 de dezembro de
2016, receba os meus parabéns! Você e eu sobrevivemos a este ano de cão! Muitos
de nós não conseguiram isso. Mais um motivo para celebrar a vida e agradecer à
vida por podermos dormir e acordar com um mínimo de saúde e energia.
2016 não foi um ano fácil para a música do Brasil e do mundo.
Tampouco, não foi um ano fácil para a política de nosso país. Muita patrulha,
muita bagunça. Poucas alegrias, muitas lágrimas de tristeza. Mudanças
profissionais ao lado das mesmices gritantes e avassaladoras do cotidiano de
professores de educação básica.
No plano pessoal, amizades se desfizeram, outras foram para a
geladeira por dentro indeterminado, novos amigos se fizeram, os mais antigos e
fiéis permaneceram. Reencontros felizes, desencontros necessários. Frustrações
sem fim, decepções clássicas, oportunidades perdidas...
Por outro lado, continuamos com a divulgação de meu primeiro
livro, O Doce & O
Amargo do Secos & Molhados. Fizemos três noites de autógrafos - uma em São Paulo, duas
noites no Rio de Janeiro. Foram momentos de muita alegria e algumas surpresas
bastante agradáveis. Dentre estes episódios especiais, destaco a noite em que
Ney Matogrosso veio prestigiar o livro, para total surpresa minha e de todos os
presentes. Prometo que tratarei deste assunto em futura outra crônica.
2016 foi o ano em que decidi que este Blog iria se posicionar
a respeito dos rumos que a democracia do país estava tomando. Nossas ideias
sobre política deram o tom de várias postagens por aqui. Não foi fácil assistir os atos que resultaram
no Golpe de Estado que retirou Dilma Rousseff do poder. Não tem sido fácil
assistir as decisões tomadas pelo governo golpista de Michel Temer e sua corja
pelos noticiários. Nesta página, há uma incansável resistência contra tamanhos
desmandos e, em 2017, não será diferente.
Dentre as mudanças estruturais do Blog, tenho procurado
deixar ele visualmente mais atraente para a leitura - na medida em que o site
do Blogger me permite. As atualizações semanais - às
quartas, um texto da série DISCOS DE
VINIL; aos domingos, uma crônica musical inédita - tem sido um desafio
abraçado com muito prazer e orgulho.
Aproveito está ocasião para dizer que alcançamos uma marca
inédita no Trovas de Vinil: 40 mil visualizações de posts. 10 mil em um período de dois meses. 27 mil visualizações em um ano! Nada mal para um projeto que começou
como uma simples terapia e hoje já possui mais de 120 textos sobre música e
outras searas, não?
Gostaria de agradecer, mais uma vez, a cada um que comentou
nossas postagens e a todos que compartilharam nossos textos nas redes sociais
com seus amigos. Muito muito muito obrigado de coração!
Aproveito para deixar o link de nossa página no Facebook para que vocês possam saber sobre as
atualizações do nosso Blog: https://m.facebook.com/TrovasDeVinil/
Desejo em 2017 muito sucesso, saúde e boa música e ótimas
energias para cada um de nós. Que possamos encontrar na música conforto e
alento para tolerar os percalços de nossa rotina!
Um beijo e um abraço
do
Vinícius
P.S.: Enquanto a redentora intervenção
alienígena não vem, faço minhas as palavras de Rita Lee & Roberto de
Carvalho na voz da saudosa Elis Regina:
(algumas palavras sobre o filme Elis,
de Hugo Prata)
“Quando
pensam que eu estou verde, eu já estou madura. Sou a Elis Regina Carvalho Costa
que poucos vão morrer conhecendo.”
(Elis Regina)
Nunca
tive a menor dúvida de que os 36 anos e 10 meses de vida de Elis Regina
renderiam um belo filme. Li quase todas as biografias de Elis com a mesma
avidez e curiosidade de um romance de Aluísio Azevedo ou uma crônica de Nelson
Rodrigues e sempre imaginei que a Pimentinha um dia iria chegar às telas de
cinema. Em primeiro lugar, porque poucas tramas de Hollywood conseguiriam
pensar em uma história que aliasse anonimato, luta, fama, amor, ódio, glória,
tragédia e música com tamanha perfeição. Em segundo lugar, porque a saga de
Elis se confunde com uma era fabulosa da música popular brasileira.
Quando
soube que o diretor Hugo Prata, notável por dirigir videoclipes de sucesso,
estava levando a história de Elis Regina para os cinemas, não escondi a
excitação. Por outro lado, vi com desconfiança de que o projeto tinha sido mais
uma realização da Globo Filmes. Quando soube que a Andréia Horta tinha recebido
o prêmio de Melhor Atriz no Festival
de Cinema de Gramado, fiquei mais animado a ver o filme logo na estreia.
Não
consegui ver Elis
logo quando chegou aos cinemas por motivos de força maior. Como as redes
sociais são um termômetro fiel da qualidade dos filmes através da impressão das
pessoas, vi que o meu pé atrás com o filme fazia sentido. Vários elogios à
atriz, poucos elogios à película. Alguns gostaram, poucos odiaram, muitos
revelaram indiferença. Precisava ver o filme não apenas pelo meu amor e
admiração pela a mulher e artista Elis Regina, como também precisava dar meu
parecer sobre o assunto.
Depois de convencer um grupo de amigos a irem
ao cinema comigo, conseguimos comprar os ingressos e seguir rumo a uma sala do
Espaço Itaú. Ao assistir a sequência de abertura de Elis – a Pimentinha cantando a para lá de óbvia “Como Nossos
Pais” (Belchior) – já tinha visto que meus amigos teriam muito mais a maldizer
do que falar bem do filme. Hugo Prata foi extremamente competente ao dirigir um
extenso videoclipe de cerca de 1h30 contando alguns episódios da vida de Elis
Regina, com direito a reconstituições de entrevistas e de números importantes
da carreira da Pimentinha e... só! O roteiro assinado por Prata, Luiz Bolognesi
e Vera Egito é de uma superficialidade absurda ao encurtar e condensar
passagens importantes e ignorar personagens fundamentais da vida e obra de Elis.
Antes
que possíveis detratores meus e defensores da película preparem suas pedras,
dou alguns nomes que sequer constaram na chamada: D. Ercy (Mãe de Elis), Rogério Costa (Irmão de Elis), Ângela Maria, Edu Lobo, Maysa, Milton
Nascimento, Gilberto Gil, Antônio Carlos Jobim, Wilson Simonal, Ivan Lins, Fernando
Faro, Chico Buarque, João Bosco, Renato Teixeira, Rita Lee, Clara Nunes, Gal
Costa, Guilherme Arantes, Samuel MacDowell (que aparece apenas como advogado, não
como namorado de Elis) e tantos outros... E vários outros que não foram sequer
mencionados por falta de espaço.
O
problema de Elis ronda em torno do velho clichê de qualquer
filme produzido pela Globo Filmes: é uma obra feita simplesmente para agradar o
público. Apesar do roteiro ter se baseado na biografia Elis
Regina - Nada Será Como Antes,
do jornalista Júlio Maria, uma fonte de informação bastante confiável sobre a
artista, ele não consegue nos oferecer contar uma história fiel e completa de
quem a Pimentinha realmente foi. Grandes histórias como a de Elis Regina não devem
ser contadas em apenas uma hora e meia para poderem ser exibidas entre o
intervalo do Vídeo Show e a Malhação. Elas merecem ser contadas no
horário nobre para que todo mundo saiba do peso e da importância da personagem
principal para as nossas artes.
Apesar
das críticas, a escolha da jovem e bela Andréia Horta para viver o papel de
Elis Regina foi extremamente acertada. Andréia não se limitou a simplesmente
imitar a artista - ela conseguiu a proeza de viver Elis a partir de suas
características mais importantes: a intensidade e o carisma. Viver a Pimentinha
com medo de quaisquer espécies de medos e riscos foi um ato de coragem de uma
atriz bastante corajosa, sem se preocupar com as reações dos amantes da
lendária cantora. Não queria estar na situação de Andréia durante a realização
da película, pois imagino a dificuldade e a(s) cobrança(s) diante do fato de
viver um mito no cinema, por isso ela merece toda a minha admiração por ter
feito um trabalho irretocável.
Se
eu um dia encontrasse Andréia Horta, faria questão de elogiá-la pelo belíssimo trabalho,
gostaria de perguntar como foi gravar algumas das cenas externas no Beco das
Garrafas, local onde Elis surgiu de vez para o estrelato no Rio de Janeiro, e o
que ela sentia na hora de gravar cada número musical, etc. Por outro lado, não deixaria
de lhe dizer que ambas (Andréia e Elis) mereceriam um filme melhor – ou de umas
três horas de duração ou um belo documentário – para que a devida justiça em
relação à Pimentinha fosse, enfim, feita.
Andréia Horta em uma cena gravada no lendário Beco dos Garrafas, onde Elis Regina fez história
Por
ora, deixemos que as novas gerações que se interessem em ver alguns flashes da
vida de Elis Regina no cinema façam de Elis a porta de entrada para o universo musical brilhante
de uma das artistas mais sensacionais dos últimos tempos. Que os mais jovens
possam se encantar pela Pimentinha da mesma maneira que eu o fiz aos 11 anos quando
ouvi “Águas de Março” pela primeira vez...
JONI MITCHELL – THE HISSING OF SUMMER LAWNS (1975)
Joni Mitchellproduzia intensamente durante a década de 1970 – oito
álbuns em um espaço de 10 anos e que apresentam o que houve de melhor em toda a
sua obra musical. Entre o reconhecimento pleno do público e a aclamação da
crítica com o irretocável Court and
Spark(1974) e o conceitual-existencial Hejira(1976),
está um dos trabalhos mais belos, enigmáticos e profundos de Mitchell, o denso
e ousado The Hissing of Summer Lawns. Lançado em novembro de 1975, este álbum completou quatro
décadas de surgimento em 2015 sem muito alarde e ainda oferecendo um grande
desafio para todos os que decidem ouvir e desvendar este verdadeiro clássico de
Ms. Mitchell, pouquíssimo comentado por aí.
Um acontecimento que gostaria de
compartilhar antes de começar a trazer algumas análises sobre o disco foi de
que este foi o título de Joni que me deu mais trabalho para encontrar e
adquirir. Minha coleção ficou incompleta por um bom tempo graças a este
raro The Hissing of Summer Lawns, que deixou de ser uma raridade inalcançável para mim há cerca de uns
dois anos graças a um santo vendedor de uma loja de discos da Galeria do Rock
que conhecia a obra de Mitchell e me ajudou a ir em busca do clássico perdido.
Se não fosse por aquele santo (e raro!) vendedor de discos – profissão que deve
estar prestes a inexistir nos dias de hoje –, minha discografia de Joni
Mitchell jamais estaria completa!
O álbum que Mitchell lançou em 1975
era, definitivamente, estranho e perde disparado em matéria de estranheza
para Don Juan’s Reckless Daughter(1977) – a tradução livre do
título The Hissing of Summer Lawnspara o
português seria algo como “O Sussurrar das Gramas Verdejantes do Verão”. Porém,
as escolhas incomuns da artista não repercutem na falta de beleza das suas
obras: é um disco belíssimo e que tem o poder de encantar o ouvinte já na primeira
audição. Joni manteve a parceria com o baterista de Jazz John Guerin (seu namorado, na época), que já tinha dado
certo não apenas em Court
and Spark, como também no ótimo disco ao
vivo Miles
of Aisles, retrato sonoro da turnê que a
autora de “Both Sides, Now!” fez com o grupo L.A. Express (grupo do qual Guerin
fazia parte) no decorrer de 1974.
Além disto, Joni Mitchell contou com
as valiosas colaborações de James Taylor (violão e backing vocais), da dupla
Graham Nash – David Crosby (backing vocais), Robben Ford, Jeff Baxter e Larry
Carlton (guitarras e violões), Victor Feldman e Joe Sample (teclados, piano
Rhodes e piano acústico), dos baixistas Max Bennett e Wilton Felder, dos sopros
de Chuck Findley e Bud Shank e da especialíssima aparição dos Drummers of
Burundi. A produção, mais uma vez, foi fruto de mais uma colaboração entre a
artista canadense e o engenheiro de som Henry Lewy, parceiro de trabalhos
anteriores.
Sonoramente, Hissing manteve a equilibrada e ousadíssima fusão entre Folk, Jazz, World Music e Rock que rendeu popularidade e
respeito a uma das artistas femininas mais importantes da história da música.
As 10 canções do disco não apenas revelam uma artista que estava no auge da
forma enquanto cantora, compositora e instrumentista, mas também apontam o
olhar sagaz e atento de Mitchell em relação ao mundo que ela via em 1975: o
tom mais confessional e várias referências pessoais, ostensivamente
marcantes em álbuns como Clouds (1969), Blue (1971) e For
the Roses(1972)
saía de cena paulatinamente para dar espaço a uma poética marcada pelo que se
convencionou como “filosofia social” e o sarcasmo explícito, já presente em
algumas canções de Court
and Spark(1974).
No entanto, as mudanças musicais e líricas surgidas na obra de Joni Mitchell em
meados dos anos 1970 não deixaram de lado a sensibilidade e a complexidade de
seus versos, característica que sempre encantou e intrigou os críticos de
música dos mais progressistas aos mais conservadores.
A penúltima faixa do disco, “Sweet
Bird” ainda possui alguns traços de confissão e algumas referências
extramusicais (no caso, a peça Sweet Bird
of Youth, do dramaturgo norte-americano Tennesse Williams), porém os versos
que Joni escrevia a partir de meados dos anos 1970 foram contagiados pelo seu
olhar de uma cronista a fim de fazer uma filosofia dos costumes através do
prisma da pintura:
“Sweet Bird
you are
Briefer than a falling star
All these vain promises on beauty jars
Somewhere with your wings on time
You must be laughing
Behind our eyes”
A quarta faixa do álbum, “Don’t
Interrupt the Sorrow”, também aponta a visão cáustica de uma habitante de Bel-Air através das rimas arquitetadas por Joni Mitchell com extremo apuro e
riqueza:
“Truth goes
up in vapors
The steeples lean
Winds of change patriarchs
Snug in your bible belt dreams
God goes up the chimney
Like childhood Santa Claus
The good slaves love the good book
A rebel loves a cause”
Entretanto, é em “Shades Of Scarlett
Conquering” que observamos com mais atenção a influência das artes plásticas e
do cinema na música de Joni Mitchell. Ao descrever a personagem Scarlett (uma
referência direta a Gone with the Wind?)
entre cores e alusões à sétima arte em meio a um arranjo de cordas melancólico,
a artista tenta traçar um retrato detalhado da alma feminina dos tempos de
outrora, com suas ambições e desejos em um mundo dominado por homens:
“Out of the
fire like Catholic saints
Comes Scarlett and her deep complaint
Mimicking tenderness she sees
In sentimental movies
A celluloid rider comes to town
Cinematic lovers sway
Plantations and sweeping ballroom gowns
Take her breath away”
Sempre engajada em relação a cada
detalhe relativo às suas obras, Joni Mitchell se responsabilizou também pela
capa deste disco, baseada em mais uma de suas notáveis ilustrações e pinturas.
Suas canções deste período sempre refletiram o olhar criativo de uma pintora
que traça um retrato paisagístico, não necessariamente de uma poetisa que
descreve estados de sentido. A faixa de abertura do disco, o rock-jazz matador “In France They Kiss
on Main Street”, traça um olhar sobre os amores, paixões e os clichês da
juventude dos anos 1950 de maneira muito afetiva e bem-humorada:
“Downtown
In the pinball arcade
With his head full of pool hall pitches
And songs from the hit parade
He’d be singing “Bye, Bye, Love”
While he’s snacking up the free play
Let those Rock ‘n’ Roll choir boys
Come and carry us away”
“In France
They Kiss on Main Street” foi o único hit single de The Hissing of Summer Lawns. A canção chegou a desfrutar um relativo sucesso entre o final de 1975 e
o início de 1976, teve um vídeo exibido no programa inglês Old Grey Whistle
Test (com direito a uma apresentação elogiosa do host, Bob Harris) que deixa
bem claro para o fã de Mitchell que sua música havia mudado para melhor:
Em meados da década de 1970, Joni se
mudou para uma bela casa em Bel-Air, bairro chique de Los Angeles no qual já
viviam várias celebridades do momento. A sagacidade de Mitchell se alimentava
justamente dos clichês e da superficialidade das relações humanas que permeavam
o high society de Beverly Hills. Os
versos de “The Boho Dance”, por exemplo, salientam o não-lugar de uma artista
sensível em meio ao universo frívolo dos ricos e famosos:
“Like a
priest with a pornographic watch
Looking and longing on the sly
Sure it is stricken from your uniform
But you can’t get it out of your eyes
Nothing is capsulized in me
On either side of town
The streets were never really mine
Not mine these glamour gowns”
Já a segunda faixa do disco, “The
Jungle Line”, é uma homenagem ao pintor Henri Rousseau, um dos ícones do
pós-impressionismo. Mitchell descreve o work
in progress de um artista com inquietações tão genuínas quanto as dela e
conta com a participação dos percussionistas Drummers of Burundi. A presença
das batidas tão marcantes, semelhantes a um ritual tribal, deve ser fruto da
influência sofrida por Joni e John Guerin ao Brasil durante o Carnaval de 1975
– o casal passou pelo Rio de Janeiro e pela Bahia e ficaram encantados com a
cultura local. Os versos da canção refletem a agressividade do tribalismo de
povos remotos, não muito diferente das selvas urbanas com as quais a artista
também mantinha contato:
“In a low-cut
blouse she brings the beer
Rousseau paints a jungle flower behind her ear
Those cannibals – of shock and jive
They’ll eat a working girl like her alive”
As canções de Hissing falam bastante de opressão feminina, de casos amorosos insólitos e
malfadados, geralmente escondidos para debaixo do tapete ou passíveis de serem
desvelados em meio à beleza verdejante da grama em pleno verão. “Edith and the
Kingpin”, terceira faixa do álbum, tornou-se uma das canções mais conhecidas do
repertório de Joni Mitchell, descreve a relação improvável de uma jovem, bela e
inocente com um mafioso perigoso. Os opostos se atraem com tanta volatilidade
que chega até a surpreender a descrição da própria Joni, cujos versos dizem,
com precisão cinematográfica:
“Edith and
the Kingpin
Each with charm to sway
Are staring eye to eye
They dare not look away”
A oitava faixa do disco, o medley que une “Harry’s House” (de Joni)
a “Centerpiece”, canção de Jazz escrita
por Harry Edison e Jon Hendricks em 1958, também revela um relacionamento
tenso. A canção de Mitchell expõe o distanciamento entre os dois amantes, para
que, logo em seguida, os versos do standard
jazzístico adquiram uma acidez mortal na voz de uma cantora que sempre
expôs suas paixões em forma de versos e sons. Embalada pelos solos de piano
incandescente de Joe Sample, pelos sopros e pela bateria de Guerin, Joni
Mitchell destila suas emoções sem o menor traço de censura:
“Yellow checkers
for the kitchen
Climbing ivy for the bath
She lost in House and Gardens
He’s caught up in Chief of Staff
He drifts off into the memory
Of the way she looked in school
With her body oiled and shining
At the public swimming pool”
(Harry’s House)
“The more I’m
with you pretty baby
The more I feel my love increase
I’m building all my dreams around you
Our happiness will never cease
Cause nothing’s any good without you
Baby, you’re my centerpiece”
(Centerpiece)
A crueldade maior operada pelo olhar
sagaz de Joni Mitchell está registrada na faixa-título de seu álbum de 1975.
“The Hissing of Summer Lawns” é uma parceria dela com John Guerin que versa
sobre sexismo, luxúria, solidão obtidos através da dominação mantida pelo poder
financeiro. O luxo e a riqueza podem garantir conforto e status (ou uma
mulher-objeto, tal qual apontam os versos da canção), mas não necessariamente
nos garantem um amor verdadeiro:
“He bought
her a Diamond for her throat
He put her in a ranch house on a hill
She could see the valley barbeques
From her window sill
See the blue pools in the squinting sun
And hear the hissing of summer lawns”
A faixa que encerra The Hissing of Summer Lawnsresume
com a precisão desesperadora de um chiaroscuro a fúria do olhar
panorâmico de Joni Mitchell sobre as relações humanas descritas por ela neste
álbum tão complexo. “Shadows and Light” chega a soar como uma criação
litúrgica, na qual as vozes que se ouvem são as da própria cantora e
compositora multiplicadas com o intuito de simular um coro acompanhado por um
órgão Fafisa. A canção chegou a dar nome a um de seus álbuns mais aclamados
cinco anos depois, baseado na turnê do disco Mingus (1979). De certa maneira, os versos que encerram Hissing dão um bom resumo das dualidades que permeiam as 10 canções que se
alternam em 40 e poucos minutos de duração ao álbum:
“Every
picture has its shadows
And it has some source of light
Blindness blindness and sight
The perils of benefactors
The blessings of parasites
Blindness blindness and sight
Threatened by all things
Devil of cruelty
Drawn to all things
Devil of delight
Mythical devil of the ever-present laws
Governing blindness blindness and sight”
A crítica especializada não poupou
críticas negativas a The Hissing of Summer Lawns na ocasião de seu lançamento, o que chegou a enfurecer Joni na
época. Dentre os pontos negativos que chamaram a minha atenção, foi a
espinafrada do renomado jornalista e escritor Stephen Holden que disse que este
era um disco que deveria ser “lido” para que depois fosse finalmente “ouvido”.
Se levarmos em consideração as considerações de Holden para um mero disco de
música Pop, seu argumento estaria irrefutavelmente correto; porém, ao se tratar
de uma artista extremamente inteligente e provocadora como Joni Mitchell, que
nunca fez música para mero deleite e/ou entretenimento passageiro ou momentâneo
– o que faz com que as afirmações do crítico caírem literalmente por água
abaixo… Apesar da má recepção da crítica, Hissingchegou
a ser indicado ao Grammy do ano seguinte por Melhor Perfomance Vocal Feminina.
Ao completar 40 anos de
surgimento, The Hissing of Summer Lawns merecia um relançamento com versões remasterizadas ou uma edição
especial com sobras de estúdio e/ou faixas demo, que, inclusive, estão
disponíveis pelo YouTube para quem
quiser ouvir. Seria interessante ouvir a própria Joni Mitchell dar um
depoimento sobre um de seus discos mais estranhos e mais simbólicos de sua obra
musical, no entanto o estado de saúde precário da artista (sabe-se que Joni
teve um aneurisma cerebral e ficou entre a vida e morte no decorrer do primeiro
trimestre de 2015 e é só!). Porém, como este é um genuíno Lado B de Ms.
Mitchell, resolvemos resgatá-lo para que você, leitor, possa ouvi-lo e ficar
tão intrigado quanto eu ao reouvir este disco para escrever estas tão suadas
linhas.
Se você ainda não conhece este álbum,
clique no link abaixo e faça uma boa viagem pelos recantos verdejantes e
inquietos de Ms. Roberta Joan Anderson…