26 de fevereiro de 2017

TROVA # 113

FOSSA ENSOLARADA
(meu apreço e minha inveja do lendário Solar da Fossa)


     

       A partir da segunda metade da década de 1960, a expressão “estar na fossa” adquiriu um sentido distinto do original, ou seja, nada a ver com desilusão amorosa. Tudo isso ocorreu graças a um lendário casarão convertido em uma suntuosa pensão que abrigou a nata da arte, do pensamento da cultura do Brasil daquele período. A Pensão Santa Terezinha, mais conhecido como Solar da Fossa, foi moradia de artistas e intelectuais antenados e engajados do porte de Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Ruy Castro, Naná Vasconcellos, Sueli Costa, Tim Maia, Maria Gladys, Aderbal Freire Filho, Jards Macalé, Antônio Pedro, Zé Kéti, Abel Silva e mitos outros antes de alcançarem o reconhecimento e a fama.

Paulinho da Viola em frente ao portão principal do Solar da Fossa na capa de seu disco de 1971

         Se eu pudesse pegar o Delorean dos meus sonhos e voltar ao ano de 1967, eu faria questão de passar uns dias no Solar da Fossa depois de negociar minha estadia por um precinho bem bacana com D. Jurema Cavalcanti, a administradora da pensão. Poderia tomar um copo de uísque e trocar algumas figurinhas com meu amado mestre Ruy Castro sobre música, literatura e jornalismo. Teria a chance de ouvir Caetano Veloso e Paulinho da Viola cantarem “Alegria, Alegria” e “Sinal Fechado”, dois clássicos da música brasileira pela primeira vez. Conheceria o talento imortal de Zé Rodrix, Tim Maia e de Guarabyra em início de carreira. Assistiria a um show gratuito de Naná Vasconcellos e seus batuques inconfundíveis no meio do quintal da pensão. Viveria o deslumbre das belezas juvenis de Gal Costa, Darlene Glória, Maria Gladys, Betty Faria e Ítala Nandi. E, por fim, poderia xeretar os relacionamentos amorosos nada discretos de Zé Kéti e Antônio Pedro durante o meu tempo livre.




      O principal celeiro da intelligentsia carioca da época foi eternizado pelo jornalista Toninho Vaz em Solar da Fossa: um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias, publicado em 2011 pela Editora Casa da Palavra. Neste livro, o biógrafo de Torquato Neto e Paulo Leminski conta como o lendário casarão de Botafogo se tornou tão conhecido através de centenas de depoimentos de ex-moradores (ilustres ou não) do Solar da Fossa. Uma leitura deliciosa, que acendeu ainda mais minha vontade de ter sido um jovem nos anos 1960 só para poder “estar na fossa”.


        Infelizmente, a história do Solar da Fossa teve os seus altos e baixos, tal qual a trama de qualquer novela global: as disputas judiciais entre Frederico Mello, o arrendatário do casarão e dos terrenos e os proprietários do imóvel renderam longas batalhas nos tribunais, deixando as vidas de várias pessoas em um limbo de incertezas. A guerra entre Mello, Jurema Cavalcanti, os moradores e os donos do imóvel se findou em 1971 quando a justiça determinou que todos deveriam ser despejados da pensão sob escolta policial.


         Pouco tempo depois, o Solar da Fossa foi demolido para dar início à construção do Shopping Rio Sul, um dos maiores templos de consumo da Zona Sul carioca. Era o encerramento de mais um capítulo das batalhas entre liberdade e capital, entre o conservadorismo da direita elitista e o sentimento libertador das esquerdas do período, entre a ditadura militar e a intelligentsia disposta a resistir contra o regime de exceção. A demolição do casarão e o não-tombamento pelo patrimônio histórico-cultural do Rio de Janeiro é mais um exemplo de que nossa tradição em renegar nossa história é muito maior do que o instinto de preservá-la.



         Por outro lado, nem a ditadura, nem os paladinos do capitalismo, tampouco os militares xucros que comandaram o Brasil por mais de 20 anos conseguiram que a história do Solar da Fossa fosse legada ao esquecimento. Afinal, é impossível demolir os edifícios da memória de quem viveu um momento histórico tão significativo para a história da humanidade como foi a segunda metade da década de 1960. Para aqueles, a fossa sempre será libertadora e ensolarada...


23 de fevereiro de 2017

DISCOS DE VINIL # 21

NEIL YOUNG – TONIGHT’S THE NIGHT (1975)

Não creio na existência de alguém mais produtivo e criativo na história do Rock do que o Sr. Neil Percival Young: são mais de quarenta álbuns em cinco décadas de atividades musicais ininterruptas. Dentre os títulos mais expressivos de sua ampla discografia, estão os três álbuns que compõem a chamada Ditch Trilogy (em português: Trilogia do Fundo do Poço): o ao vivo Time Fades Away (lançado em 15 de outubro de 1973), o irrepreensível On the Beach (lançado em 16 de julho de 1974) e o sombrio Tonight’s the Night (lançado em 20 de junho de 1975).


Apesar de ter desfrutado de enorme (e surpreendente) sucesso com o belíssimo álbum Harvest (1972), Neil Young vivia momentos de profunda tristeza e desespero em meados dos anos 1970: seu relacionamento com sua namorada na época e mãe de seu primeiro filho, a atriz Carrie Snodgress, estava em frangalhos e próximo do fim; Danny Whitten, ex-guitarrista da Crazy Horse (banda que acompanha o cantor e compositor canadense nos palcos até hoje), morrera de uma overdose de heroína no início da década; Bruce Berry, roadie e amigo pessoal de Neil fora encontrado morto por abuso de drogas em junho de 1973, completando o círculo de tragédias pessoais que rondavam o artista. Em meio a tantas notícias ruins, o autor de “Heart of Gold” abusava dos limites de seu organismo ao consumir toda espécie de narcóticos para aliviar toda a dor e o sofrimento, enquanto compunha e produzia com um fervor impressionante.
Último dos três títulos da Ditch Trilogy a vir a público Tonight’s the Night, na verdade, foi o primeiro dos três álbuns a ser produzido. As sessões de gravação que geraram mais de 80% das canções do disco foram realizadas por Neil e os músicos do Santa Monica Flyers (Ben Keith – Guitarra / Nils Lofgren – Piano e Guitarra / Billy Talbot – Baixo / Ralph Molina – Bateria) em Hollywood entre agosto e setembro de 1973. As demais faixas foram gravas entre março de 1970 e dezembro de 1973 no Broken Arrow Ranch (propriedade particular de Young localizada em Redwood City, California, EUA) e em uma apresentação ao vivo feita em Nova York. No entanto, o álbum levou mais de um ano para ser lançado graças a uma decisão tomadas em conjunto por Neil Young e sua gravadora, a Reprise.
Os motivos que devem ter feito com que Tonight’s the Night levassem tanto tempo para ser lançado são plenamente compreensíveis: trata-se da coleção de canções mais pesadas (no sentido psíquico do termo) que um artista jamais poderia ter lançado. A ilustração da capa mostra um Neil Young morbidamente retratado em preto e branco, envolto em um mar de sombras com pouquíssimas (ou nenhuma) chances de encontrar a redentora luz no fim de um infindável túnel de sofrimento. Neil escreveu para este disco os retratos mais cruéis de sua desilusão com os dias pós-movimento hippie, nos quais o idealismo da Contracultura tornou-se uma utopia sem fim. As mortes dos amigos Whitten e Berry fizeram com que as letras fossem influenciadas pela depressão daquele que sobreviveu para testemunhar o desaparecimento repentino de seus pares.
Os versos de “Mellow my Mind”, canção gravada pelo grupo inglês Simply Red no final da década de 1990, resumem com perfeição o espírito depressivo de Tonight’s the Night:

I’ve been down the road
and I’ve come back
Lonesome whistle
on the railroad track
Ain’t got nothing on those feelings
That I had.



A canção que dá o nome ao sétimo álbum solo de Neil Young recebeu duas versões e são elas que aparecem como primeira e última faixas do disco. Neil faz uma ode para o recém-partido Bruce Berry, relatando um episódio típico da rotina corriqueira e cansativa da estrada:

Well, late at night
when the people were gone
He used to pick up my guitar
And sing a song in a shaky voice
That was real as the day was long.


A quinta faixa de Tonight’s the Night foi gravada de um trecho de um show de Neil Young com a Crazy Horse no lendário Fillmore East, casa de shows situada em Nova York, realizado em março de 1970. Neil divide os vocais de “Come on Baby, Let’s Go Downtown” com Danny Whitten (homenageado pelo compositor canadense em uma das mais belas faixas de Harvest, “The Needle and The Damage Done”), canção que expõe as mazelas do vício em drogas, ignorando qualquer possibilidade de diversão:

Sure enough,
They’ll be sellin’ stuff
When the moon begins to rise
Pretty bad when
you’re dealin’ with the man
And the light shines in your eyes.



Em meio à solidão inevitável de um sobrevivente que segue seu caminho sem encontrar nenhuma espécie de amor, Neil Young deixa bastante evidente a sua necessidade de falar, de forma que ele possa expor seus conflitos e encará-los frente a frente. “Speaking Out”, segunda faixa do álbum, trata justamente deste fato:

I’ve been a searcher, I’ve been a fool
But I’ve been a long time comin’ to you
I’m hopin’ for your love to carry me through
You’re holdin’ my baby, and I’m holdin’ you
And it’s all right.


No entanto, viver em um mundo completamente tomado pela dor e pela melancolia tornou-se uma tarefa extremamente dolorosa para Neil Young na primeira metade da década de 1970. “World on a String” e “Borrowed Tune” (terceira e quarta faixas de Tonight’s the Night) apontam a ausência de esperanças em um momento de plena exaustão, de crise desesperadora, na qual a música dos Rolling Stones serve de inspiração para combater a solidão reinante:

It’s not all right
to say goodbye,
And the world on a string
Doesn’t mean a thing.
(“World on a String”)


I’m singin’ this borrowed tune
I took from the Rolling Stones,
Alone in this empty room
Too wasted to write my own.
(“Borrowed Tune”)


“Lookout Joe”, gravada em dezembro de 1972, é um encontro de Neil Young com o grupo The Stray Gators, que participou das gravações de Harvest. As guitarras em fúria de Neil e de Ben Keith encontram os pianos do tecladista e arranjador Jack Nitzche, resultando em uma das melhores faixas de Tonight’s the Night. A letra elenca típicos personagens junkies em uma tragédia pós-hippie (“a hip drag queen”, “a side walkin’ streetwheeler”, “Millie from down in Philly” e “Bill from up the hill”) que parecem ter saído do universo de sexo, drogas e paranoias ilusórias tão bem cunhadas por Lou Reed em Transformer (1972). Se, em certos momentos, Reed optou por um olhar paródico-corrosivo do underground, Young estilhaça sem dó o saudosismo em acordes furiosos de guitarra:

Lookout Joe, you’re comin’ home
Old times were good times
Old times were good times.


Neil ao lado da Crazy Horse em 1975

Ao ouvirmos as canções do sétimo álbum de Neil Young, temos a impressão de que ele não apenas possuía o desejo de prestar um tributo aos que foram embora cedo demais por causa das drogas, como também era um pedido de socorro ou um alerta aos ainda presentes de que havia perigos implacáveis a nos espreitar. “Tired Eyes”, a penúltima faixa de Tonight’s the Night, versa sobre este conflito:

Well, it wasn’t
supposed to go
down that way
But they burned his brother,
you know,
And they left him lying
in the driveway.
They let him down with nothin’
He tried to do his best
but he could not.


A saída para os conflitos e o sofrimento, de acordo com Neil Young, consiste em colocar o pé na estrada, fugir das tentações e sair em busca do tão cobiçado conforto nos braços da pessoa amada ou na independência tão desejada. “New Mama”, “Roll Another Number” e “Albuquerque” são exemplos dos quais Neil parece ir em busca de um idílio em meio à loucura inevitável:

New Mama’s got a sun in her eyes
No clouds are in my changing skies
Each morning when I wake up to rise
I’m livin’ in a dreamland.
(“New Mama”)


It’s too dark
to put the Keys
in my ignition,
And the mornin’ sun is yet
to climb my hood ornament.
But before too long I might
see those flashing red lights
Look out, mama,
‘cause I’m comin’ home tonight.
(“Roll Another Number”)



I’ve been flyin’
down the road
And I’ve been starvin’ to be alone,
And independent from the scene
that I’ve known
Albuquerque.
(“Albuquerque")



O disco se encerra com a segunda versão de “Tonight’s the Night”, que chega a ser ainda mais pesada do que a versão da abertura. Podemos interpretar esta escolha de Neil como um exemplo de que a vida é feita de círculos que repetem a mesma série de conflitos e fantasmas a nos assombrar intensamente. O testemunho musical oferecido por Neil Young aponta um beco com pouquíssimas saídas, entretanto ainda existe beleza em meio a dor e ao sofrimento que brotam das trevas e da escuridão.



Para que você, leitor e ouvinte, possa desfrutar de tudo isto, ouça abaixo Tonight’s the Night e embarque na noite sem fim de Neil Percival Young, um dos músicos mais brilhantes da história do Rock.



19 de fevereiro de 2017

TROVA # 112

TEMPESTADES & FORTALEZAS


Para Ciça Carvalho, uma das fortalezas que me inspiram

Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
(Clarice Lispector)


         Desde que a vida começou a me ensinar as lições mais amargas da existência que eu ouço o velho e surrado ditado: “Após a tempestade, vem a bonança”. Apesar de sempre carregar uma pontinha de otimismo dentro de mim, sempre odiei chuvas – as verdadeiras e as simbólicas. O desconforto se sente no corpo e na alma, todavia só construímos nossas fortalezas depois de muitas crises e sem direito a sombrinha ou guarda-chuva para nos reconfortar.


  Tempestades são cursos intensivos de aprendizagem e autoconhecimento, pois nos ensinam a juntar os cacos de mundos que são desfeitos com a agressividade do vento e dos raios. Tempestades nos fazem aprender sobre a importância da dor e do sofrimento para cada um de nós. Tempestades são dolorosamente necessárias, pois são instrumentos de amadurecimento.


        As intempéries doem simplesmente pelo fato de que não possuem tempo determinado para acabar: podem durar minutos, horas, dias, anos ou uma vida inteira. No entanto, sempre haverá o momento no qual o frio passa e o céu se abre para que tudo se renove, se transforme e novos caminhos se abram. Nem sempre as trilhas são lógicas. As trilhas nunca são em linha reta. Porém, elas nunca falham. E, por isso, devemos sempre agradecer aos astros por cada coisa boa e ruim que nos acontece.


   Sempre me julguei uma pessoa forte. No entanto, ao tomar conhecimento da vida de uma de minhas amigas, concluí de que preciso de muito arroz, feijão e experiência de vida para ter metade da força que ela tem. Minha amiga é uma verdadeira fortaleza: sempre disposta a superar seus próprios limites, é corajosa, determinada, guerreira e dona de uma gargalhada inconfundível. Mãe coragem, profissional dedicada e sempre aberta ao aprendizado. Vítima do mal que assola milhares de brasileiras, foi vítima de violência de um antigo companheiro. Tem expiado a dor e a decepção se mostrando ainda mais forte por dentro, mesmo que fragilíssima por fora e sem se esquecer de seu belo sorriso. E ainda consegue tempo para participar de uma bateria de um bloco de Carnaval.


       Já que falei de festividades, os dias de fevereiro são geralmente de bastante celebração por causa do Carnaval que arrasta milhões de pessoas para as ruas de todo o Brasil. Ótima oportunidade não apenas para deixar nossos dilemas de lado, como também é um momento e tanto para exorcizar nossos demônios e protestar contra o que existe de mais torto em matéria de política neste país. E, em meio ao calor acachapante do verão brasileiro, a chuva que cai nas nossas costas é sinal de refresco e de purificação.



   Este Vinícius que vos escreve, hoje tão avesso aos excessos carnavalescos (calor e muita gente não me fazem bem!), pede ao Rei Momo para que muitas pessoas se animem a pular, dançar e cantar o Carnaval a São Pedro para que muita chuva seja enviada para as terras de cá. Afinal de contas, promessas de vida são precisas para que as fortalezas humanas floresçam e resistam diante das tempestades que vem por aí...    


16 de fevereiro de 2017

DISCOS DE VINIL # 20

TULIPA RUIZ – DANCÊ (2015)


Desde que ouvimos os anúncios de que o terceiro álbum de Tulipa Ruiz já estava a caminho, criou-se um tremendo frisson nas redes sociais em torno da questão da velha e batida questão “será que este álbum vai superar o anterior?” que estamos enfastiados em ter que ler e responder.
Para os ouvintes que agiram como abelhas atentas do pólen musical deixado por Tulipa após os cultuados álbuns Efêmera (2010) e Tudo Tanto (2012), não ficaram muito surpresos com os rumos musicais que a cantora decidiu trilhar em seu terceiro CD. O single “Megalomania” e o EP Tulipa Ruiz Remixes já eram pistas claríssimas de que a flor cantante iria fazer como David Bowie fez conosco em 1983 e iria literalmente colocar a gente para dançar…
Sejamos diretos ao assunto: Dancê (2015), como diz o título, é um CD para o ouvinte bater o pé, tirá-lo do chão, mexer a cabeça de um lado para o outro e sair dançando, embarcando na levada loucamente musical (Sorry, Ivete!) para a qual Tulipa nos convida, sem deixar de nos fazer refletir em uma série de coisas, tal qual em “Prumo”, faixa de abertura do disco, assinada por ela em parceria com Gustavo Ruiz:


Começou
Agora você vai tomar conta de si

Das tuas minhocas, caraminholas,
das encucações, dos teus pepinos
Das pérolas, das abobrinhas,
dos abacaxis, dos nós, dos faniquitos.

Se você está na dúvida se ouvir o CD realmente vale a pena ou não, Dona Tulipa e banda enviam um recado muito claro para os indecisos em “Reclame” (Tulipa Ruiz, Gustavo Ruiz, Caio Lopes, Marcio Arantes e Luiz Chagas):


Trato azedume, mau-olhado, ‘quebrante’, vício
Trato treta de trabalho
Trabalho com amarração
Resolvo o seu problema com baralho, com pôquer, bingo
Pra bituca de cigarro eu tenho a solução
Trago seu amor de volta se me fizer uma visita
A gente faz uma combinação, você acerta e acredita
No duro, dá certo
Nunca houve reclame.

Enquanto bailamos entre sons de metais e brasa e acordes de guitarra capitaneados por Luiz Chagas e Gustavo Ruiz, Tulipa segue disparando seu arsenal de provocações aos ouvintes de Dancê. “Jogo do Contente”, outra parceria dela com Gustavo, traz uma sequência interessante de cutucadas àqueles que insistem em viver dentro de uma determinada zona de conforto:


Todo motivo te leva a querer
Todo querer te faz ter vontade
Toda vontade te faz ter impulso
Todo impulso sempre me estimula

Toda sequência tem uma rotina
Toda rotina te causa estrago
Todo estrago merece um conserto
Todo conserto te modifica.


“Proporcional” questiona, com bom humor, as diferenças entre as medidas das pessoas e aponta que não existem (ou deveriam existir) obstáculos entre as diferenças:


Cada um tem seu formato
Apertado, colado, justo
Largo, folgado, amplo, vasto
Cheio, graúdo, forte, farto
Esguio, fino, compacto.

Visto GG, você P
Você P, eu GG
Visto GG, você P
Você P, eu GG.


“Expirou”, mais uma parceria dos irmãos Tulipa e Gustavo Ruiz, traz a nostalgia de eventos dos quais não tivemos a oportunidade de participar pelo simples fato de que ainda não vivíamos por estas bandas. Alguns exemplos: os barulhentos festivais da canção brasileira nos anos 1960 e 1970, São Francisco, Woodstock e a Swinging London, “Carcará”, “Aquele Abraço” e “Divino Maravilhoso”, os Novos Baianos, as Dunas da Gal, FA-TAL e Cantar, Itamar Assumpção e a Isca de Polícia, Grupo Rumo, Madame Satã são apenas alguns exemplos de coisas que nós, nascidos após 1975, faríamos de um tudo para ter ouvido e vivido na época de seu surgimento. Embalada pela guitarra mítica de Lanny Gordin (que acompanhou Gal Costa em sua também mítica turnê de 1971-72), Tulipa Ruiz saúda a alquimia dos mestres com o devido respeito:


Sinto falta de um tempo que ouvi dos amigos
Tava escrito num livro
Tocou numa vitrola
Foi dançado, cantado, recitado, falado
Publicado, sentido, decupado, contado
Mas eu não tava ali

Quando é que a saudade daquilo que a gente não viveu passa?
Se passa, parece que já foi, mas quando você vê volta
Volta porque tem a sua cara, tem a ver com a sua história.


“Elixir”, quarta faixa do disco, é um petardo para uma sociedade que acorda com Prozac e dorme com Rivotril e acredita que vive um fluxo extremamente natural de sua existência. Fruto de uma noite em claro da própria Tulipa, a canção nos indica o sonho dourado de muitos notívagos angustiados por aí:


Apaga, filtra, manera
Massageia o esqueleto
A cuca, a cabeça, a traqueia
Cotovelo do esqueleto
A lombriga, clavícula, pé e a costela do esqueleto

Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir
Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir

Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
E entra no estado zen.

Uma das faixas mais divertidas de Dancê é “Físico”, mais uma parceria de Tulipa e Gustavo assumidamente inspirada no hit “Physical”, eternizado por Olivia Newton-John em 1981. Para resgatar a sonoridade disco do início dos anos 1980, a trupe contou com a participação especial de Kassin, que tocou baixo, guitarras e sintetizadores. O desejo de Tulipa Ruiz, ao contrário do que sugere a tendência apontada pela estrela de Grease e por pessoas obcecadas em viver relações baseadas somente em atributos físicos, descreve alguém que vai além do que é obviamente esperado nas típicas atrações sexuais:


Tudo que eu gosto tá em você
É puramente físico
(…)

O formato do nariz
Osso pontudo do pescoço
Lóbulo da orelha
Desenho da sobrancelha
Pintas pela pele
Pelos, tornozelo
Dedo, nuca, calcanhar, cabelo
Da boca pra fora
Fora de fora pra dentro
(…)
Você veio assim sem defeito.


“Old Boy”, décima faixa do disco, fala sutilmente sobre a importância do viver com a certeza de que teremos um aprendizado em relação ao que foi vivido. Em outras palavras: uma bela canção sobre a morte, com versos singelos e uma interpretação sóbria de Tulipa:


Vai ter tempo de sobra
Mesmo sendo velho, sabe sobre tudo
Sempre pra valer
Volta e meia, cê volta
Nunca é tarde, pelas tantas recomeça
Vence em convencer
Não tem fim, nem começo
O agora é agora, voa
Já passou, olha, passou
E fica também na sua memória
Sempre você
O tempo e você.


O brilho de Dancê também está nos convidados especiais que participam do disco. A elegância e a jovialidade de João Donato fazem de “Tafetá” um dos momentos mais belos do disco. Balada ao estilo do balancê inconfundível do criador de “A Rã” sem deixar de incorporar o balancê frenético das produções musicais da flor cantante, a faixa é uma ode à beleza masculina capitaneada pelos vocais em canto e contracanto Donato e Tulipa, pontuados pelos metais, violão, percussão e pelo piano fender rhodes em menos de 4 minutos de duração:


Fino
Só você
Elegante
Sabe bem
Muito trato
Combinar
Na lapela
Tem o dom
Tem um padrão
Já que tem
Desenhado
Sabe usar
Tem casaco
Dégradé
Engomado
Tafetá


“Virou”, parceria de Tulipa Ruiz com Felipe Cordeiro, Gustavo Ruiz, Manoel Cordeiro e Luiz Chagas, é uma colaboração que contou com a participação de Felipe Cordeiro, dividindo os vocais com Tulipa e de Manoel Cordeiro (pai de Felipe) que tocou guitarra na faixa. Os versos do refrão já garantem a memorização do ouvinte já a partir das primeiras audições de uma das faixas mais alegres de Dancê:


Era pra ficar no chão
Deu pé, decolou
Era pra ter sido em vão
Como é que durou?
Era pra ficar ali e por aí caminhou

Era pra ser menos sério
Mais cara-de-pau
Era para ser só nuvem e precipitou
Podia não ter dado em nada
Então como é que virou?


No entanto, a participação especial mais intrigante de Dancê foi a do Metá Metá (Juçara Marcal – Voz, Kiko Dinucci – Guitarra, Marcelo Cabral – Baixo, Sergito Machado – Bateria, Thiago França – Sopros em “Algo Maior”, parceria de Tulipa Ruiz, com Gustavo Ruiz e Luiz Chagas. As vozes fortíssimas e distintas de Tulipa e Juçara resultam na sensação angustiante de uma tormenta que está a caminho, mas nunca chega – algo típico para uma interpretação de um grupo de balé contemporâneo, com coreografias típicas de Deborah Colker:


Tá pra nascer algo maior
que vá tirar do lugar as coisas que cismam em não andar
Tá pra nascer algo maior
que tudo o que você já viu, leu, sentiu, soube ou ouviu
Não sinta medo nem dó de ser feliz e se soltar,
de saber bem o que lhe convém
Tá pra nascer quem viva só,
pois de me, myself and I já basta eu, você e nada mais.

Ao ser encerrado com este épico de cinco minutos e trinta e nove segundos, Dancê deixa muito claro que Tulipa Ruiz não é uma cantora que segue os caminhos óbvios já traçados pelo Pop e pela MPB recentes. Também revela um grande disco, feito com inteligência acima do comum. E o melhor de tudo: ele consolida de vez a parceria Tulipa Ruiz – Gustavo Ruiz, que tem um potencial gigantesco para já constar no rol de parceiros célebres de nossa música como Marina Lima – Antonio Cícero (irmãos e parceiros, tal qual Tulipa e Gustavo), Roberto Carlos – Erasmo Carlos e tantas outras…



Enquanto isso, aproveite para afastar os móveis da sala, abrir um espaço bem amplo para que você dar o play e colocar Dancê para rodar na sua cabeça e sair bailando sem a menor vergonha de dançar alegremente. Se Tulipa nos diz que um bom estímulo pode nos trazer boas influências, deixe-se levar por este CD que, para nós, já nasceu clássico.