19 de maio de 2017

RECESSO

Olá a todos,
Por motivos médicos, o blog Trovas de Vinil ficará fora do ar por algumas semanas.
Espero retornarmos em breve com novas crônicas musicais e novos textos sobre os discos que tanto amamos.
Saudações musicais do
VINIL

17 de maio de 2017

TROVA # 125

MINHA TV FOI PARA SANTANA DO AGRESTE
(OU assistindo as reprises de Tieta)
(OU a única coisa 100% relevante em matéria de teledramaturgia no momento)


Tieta do Agreste
Lua cheia de tesão
É lua, estrela, nuvem
Carregada de paixão
Tieta é fogo ardente
Queimando o coração
Seu amor mata a gente
Mais que o solo do sertão
(Luiz Caldas, 1989)


         O lado bom de você se mudar para um novo lar é que você fica inteiramente responsável pela programação da casa: como eu me recuso a assistir aos noticiários e à teledramaturgia paupérrima e fútil que a Rede Globo transmite hoje em dia, a TV fica desligada boa parte do dia. Abro uma única exceção para assistir alguns programas do GNT e às reprises dos humorísticos e das novelas que são transmitidas pelo Canal Viva.


         Quando fiquei sabendo que o Viva iria reprisar Tieta (1989), novela de Aguinaldo Silva baseada no romance de Jorge Amado, ganhei um motivo e tanto para ligar minha Sony Bravia velha de guerra. Tenho uma lembrança clara da época em que a produção foi ao ar pela primeira vez – Betty Faria como Tieta e Joana Fomm na pele de Perpétua ainda impressionaram o Vinícius de oito anos de idade de tal maneira que era impossível desgrudar os olhos da TV em um horário no qual os desenhos e os programas infantis não eram mais transmitidos em cadeia nacional.

Betty Faria & Joana Fomm faziam as irmãs Tieta e Perpétua - duas atuações inesquecíveis...

A Santana do Agreste criada por Jorge Amado era um microcosmo de um Brasil machista, corrupto, atrasado e hipócrita. Rever Tieta em 2017 só me faz ter a certeza de que pouca coisa mudou em nosso país de três décadas para cá: a velha mania das pessoas em tirar vantagens umas das outras, por exemplo, nunca se alterou. A corrupção e o coronelismo de nossos políticos também não. O machismo e a homofobia não deixaram de ser características marcantes dos homens brasileiros.

Ary Fontoura, Betty Faria, José Mayer e Arlette Salles
José Mayer, Miriam Pyres e Arlette Salles

Com muito humor, a trama trata de tabus e temas espinhosos para o cotidiano brasileiro, tais como: corrupção, machismo, pedofilia, religiosidade e diversidade religiosa, homofobia, questões de gênero e diversidade sexual. A protagonista, escorraçada por Pai sexista e opressor e uma irmã carola ultraconservadora quando muito jovem, resolve retornar para a sua cidade natal para se vingar de todos aqueles que a humilharam publicamente.

Yoná Magalhães, Cláudio Correia e Castro, Rosane Goffman e Lilia Cabral
Ary Fontoura interpretava o coronel pedófilo Artur da Tapitanga e as suas "rolinhas"...

O retorno de Tieta ao Agreste deixa claro uma série de convenções que serão enfrentadas a ferro, a fogo e irreverência – a relação incestuosa de tia e o sobrinho seminarista, a homofobia e a perseguição de uma travesti pelas beatas da cidade, a pedofilia de um coronel que alicia menores indiscriminadamente, viúvas carolas que escondem uma lascívia sem ter fim (quem não lembra dos ataques de luxúria da dupla dinâmica Cinira-Amorzinho e da lendária caixa de Perpétua), o desejo de um filho ilustre em levar a sua terra natal para os avanços tecnológicos do século XX e se vê diante de um provincianismo tacanho e brutal. A protagonista é o retrato não apenas de uma parcela de um Brasil mais avançado, como também é uma afronta a toda espécie de atraso moral de Santana do Agreste.

Cássio Gabus Mendes & Betty Faria protagonizaram uma relação incestuosa na trama que deu muito o que falar...

O que Perpétua escondia de tão valioso e escabroso em sua tão falada caixa branca?


Rever as reprises de Tieta durante às noites me dá algumas saudades de parte da minha infância em Porto Alegre, como também tem me feito dar boas risadas das estripulias da personagem de Betty Faria e do cotidiano besta do Agreste de Jorge Amado. Se eu pudesse escolher um programa de TV para que o Brasil inteiro assistisse, escolheria a novela adaptada por Agnaldo Silva: a teledramaturgia daquela época tem muito a dizer para os brasileiros do século XXI em matéria de arte e dos fatos corriqueiros do nosso dia-a-dia. Enquanto a novela ainda estiver sendo reprisada pelo Viva, minha TV continuará andando pelas dunas da praia de Mangue Seco e pelas ruas de Santana do Agreste ouvindo os “bééééééé” da protagonista, querendo saber quem é a tal “mulher de branco”, acompanhando a Marinete de Jairo e louca para saber o que Perpétua guarda de tão escabroso em sua caixa branca...


OUÇA UMA SELEÇÃO DA TRILHA SONORA DE TIETA:








12 de maio de 2017

DISCOS DE VINIL # 31

THE BLACK CROWES – THE SOUTHERN HARMONY & MUSICAL COMPANION (1992)


Dizem que o segundo disco de uma banda nunca consegue ser tão bom quanto o álbum de estreia. No entanto, quando nos referimos aos rapazes do Black Crowes, este clichê da crítica musical cai completamente por terra. The Southern Harmony and Musical Companion, segundo trabalho da banda, é uma enorme homenagem às origens surgido o estado da Georgia, sul dos EUA: o título é o mesmo do livro de partituras e cânticos compilados por William Walker em 1835, uma bela homenagem ao lado mais oprimido da terra do Uncle Sam.


Lançado em 12 de maio de 1992, Southern Harmony traz os irmãos Chris Robinson (vocais) e Rich Robinson (guitarras) à frente de um time de músicos extraordinários: Marc Ford assumiu as guitarras solo no lugar de Jeff Cease, que tinha sido dispensado da banda em 1991. Os outros companheiros de bordo eram a cozinha competentíssima formado por Johnny Colt no baixo e Steve Gorman na bateria e o auxílio ultra-luxuoso de Ed Harsch nos teclados.
 
Chris Robinson e Rich Robinson

Southern Harmony conseguiu um feito inédito até então: emplacar quatro hit singles - "Remedy", "Thorn in My Pride", "Sting Me" e "Hotel Illness" - no primeiro lugar na parada de sucessos da revista Billboard. O recorde anterior pertencia a Tom Petty, que tinha emplacado três sucessos no topo das paradas em 1989. Além das quatro canções citadas, o Black Crowes conseguiu lançar mais dois singles de menor sucesso, mas que eram obrigatórias em todas as apresentações do grupo: a balada "Bad Luck Blue Eyes Goodbye" e a belíssima "Sometimes Salvation".


 


O segundo álbum de estúdio do Black Crowes é um retrato da banda no auge de sua forma artística: o vocalista Chris Robinson nos ofertou, com influências de Jagger, Plant e do que havia de melhor no Glam Rock; já Rich Robinson criou riffs de fazer inveja a Keith Richards que contracenavam com a classe dos solos lancinantes de Marc Ford; Harsch, Colt e Gorman faziam um som luxuoso e distinto do Grunge que tomava as rádios e os canais de entretenimento da época. "Remedy", o melhor número do disco, contava com todos estes elementos, a presença das vocalistas de apoio Barbara e Joy, duas negras de responda que interagiam com Chris R. a ponto de nos lembrarmos dos melhores números de Soul ou de Exile On Main St., dos Rolling Stones, lançado 20 anos antes de Southern Harmony.




"Sting Me", o número de abertura de Southern Harmony, é uma canção que recebeu um andamento rápido, quase frenético. O videoclipe baseado neste número mostra os integrantes do Black Crowes em seu habitat mais autêntico e natural: o palco! As canções da banda da Georgia eram para serem tocadas em alto e bom som e, de preferência, para multidões dispostas a cantar, dançar e se deliciar com o som retrô (hoje, classificado como "vintage") que eles criavam.


O álbum possui 10 canções: nove com assinatura dos irmãos Chris e Rich Robinson e a décima faixa é uma releitura de "Time Will Tell", faixa original composta e gravada por Bob Marley em seu álbum de 1978, na qual o Sul dos EUA encontra a Jamaica do Rei do Reggae. O gosto de ouvir Southern Harmony 25 anos após o seu lançamento é que se trata de um disco que sobreviveu muito bem com as tendências musicais de cada momento e que ainda tem muito a dizer para gerações jovens e nem tão jovens assim...



É uma pena que os Black Crowes não estejam mais tocando para que possamos ouvir este clássico na íntegra por aí. Certamente eles teriam um público garantido e novos fãs se encantando com a magia musical dos rapazes do Sul dos EUA...



LEIA MAIS SOBRE O DISCO:

9 de maio de 2017

TROVA # 124

CONSTRUÇÃO & RUÍNA


        
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
(Caetano Veloso, 1991)


O Brasil comemora o chamado Dia do Índio todo dia 19 de abril. Diante de mais cinco séculos em que nossos nativos são massacrados pelo homem branco, me pergunto o porquê das escolas ainda insistirem em fantasiar as crianças pequenas de cocar e tapume. Ao ver fotos do meu sobrinho carioca vestido de indígena ao voltar da escolinha, não deixo de esconder meu encantamento, pois Arthurzinho é o maior orgulho que este Tio babão poderia ter – afinal, em matéria de criança, não consigo ser tão amargo assim. Por outro lado, ao assistir as notícias pela TV e pelas redes sociais, meu encantamento ao ver os pequenos fazendo as “devidas homenagens” vai por água abaixo.
Tudo começou com um sim. Os nativos brasileiros foram encontrados por Pedro Álvares Cabral e sua turma e aceitaram o primeiro contato pacífico com os lusitanos achando que tudo seria uma verdadeira maravilha. Ao aceitarem espelhos e outras iguarias em troca das riquezas que esta terra tinha a oferecer, deu-se início a uma série de barbárie contra o povo indígena que não teve mais fim: é de conhecimento público que os índios foram saqueados, escravizados, explorados e mortos. Além disso, suas terras foram roubadas para garantir o progresso da pátria que florescia para os olhos da Coroa. Diante do genocídio da população indígena, fica até difícil acreditar que todo dia era realmente dia de índio.


A chamada nação brasileira foi construída a partir da ruína do povo indígena e da ruína moral daqueles que passaram a comandar esta terra infeliz. Os políticos brasileiros não têm tratado os indígenas com o devido respeito: enquanto celebridades da extrema direita alegam que os índios são improdutivos em relação à produção agrícola brasileira, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) sequer defende os nativos dos ruralistas que impedem a reforma agrária e concentram uma quantidade indescritível de riquezas.


 Diante da violência contra o seu povo, o índio não quer apito não, ele apenas quer a terra, o seu direito de existir sem ter sua integridade em risco. Em uma recente manifestação em Brasília, o comitê de recepção aos protestantes indígenas foi composto por cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo. Com a nomeação do novo presidente da FUNAI em maio de 2017, a bancada ruralista do Congresso Nacional encontrou um representante e tanto para a garantia dos interesses dos latifundiários. Ao viver em uma democracia cada vez mais combalida e doente, tentei até chorar de ódio pelos indígenas, mas não consegui.


Uma campanha que ainda pode trazer esperança para os poucos índios que ainda sobraram para contar história chama-se “Demarcação Já!", uma homenagem realizada por mais de 25 artistas da música brasileira aos povos indígenas do Brasil. A letra de Carlos Rennó, a música de Chico César e a direção de André D’Élia ressaltam que os nativos merecem os mesmos direitos que os demais cidadãos brasileiros merecem: ter a sua terra e ter o seu direito à vida garantido.



Caso estes direitos sejam extintos, a única coisa pela qual eu possa desejar é o surgimento de um índio tal qual a canção emblemática de Caetano Veloso: que ele venha de uma estrela colorida, brilhante em uma velocidade estonteante, preservado em pleno corpo físico, impávido como Ali, apaixonado como Peri, tranquilo e infalível como Bruce Lee. Que ele nos ensine e nos diga o necessário para que os brasileiros vivam em estado de igualdade, o que deveria ser claro ou exótico e nunca esteve oculto, o que deveria ser óbvio, mas que infelizmente não é...




7 de maio de 2017

70.000 visualizações + OUTRAS LEITURAS


Olá a todos!

O Trovas de Vinil já teve mais de 70.000 visualizações! Atingimos a marca no final da manhã de 5 de maio de 2017. 

É uma honra sem tamanho saber que os textos que levo ao ar são visualizados não apenas pelos amigos, como também por pessoas que eu não conheço. Principalmente por se tratar de um projeto tão pessoal e tão querido por mim. Gostaria de agradecer a todos que leem, que comentam e que compartilham nossos textos pelas redes sociais.


E gostaria de aproveitar para falar de dois projetos "paralelos" que eu gostaria de apresentar para os que ainda não os conhecem: o primeiro deles é o meu livro O Doce & O Amargo do Secos & Molhados, que publiquei no final de 2015. Neste trabalho, baseado em minha Dissertação de Mestrado, fiz uma análise da trajetória e das canções do lendário grupo Secos & Molhados a partir de um levantamento histórico da canção brasileira contemporânea. Conheça um pouco mais sobre o meu livro através da página do Facebook: https://www.facebook.com/odoceeoamargodossecosemolhados/?ref=bookmarks


O segundo projeto do qual eu gostaria que vocês conhecessem é Mutações, livro de estreia de Renata Emily Fonseca Rodrigues, cujo prefácio é de minha autoria. Neste livro, a autora (que é a irmã que a vida me deu), reuniu textos poéticos, aforismos e crônicas e breves contos sobre o cotidiano dos seres humanos em pleno século XXI. Renata Emily tem muito a nos dizer. Conheça mais sobre a obra na página do Facebook: https://www.facebook.com/mutacoes2016/


Recados dados, pessoal! Espero que vocês continuem curtindo nosso Blog e se interessem pelas duas leituras que apresentei aqui para vocês. 
Muito obrigado a todos!


Beijos e abraços musicais do
VINIL

5 de maio de 2017

DISCOS DE VINIL # 30

RAUL SEIXAS – KRIG-HA, BANDOLO (1973)


 


Em um de seus sucessos mais expressivos na década de 1970, Rita Lee dizia que “um tal de Raul Seixas vem de disco voador”. Se levássemos em conta a música, a aparência, o estilo e a ambição de Raul dos Santos Seixas, poderíamos ter certeza de que Ritz estava nos dizendo a mais pura verdade. No entanto, os fatos dizem o contrário… Em seu primeiro sucesso, “Let Me Sing, Let Me Sing” dizia, descaradamente, miusturando Rock e Baião:


“Não vim aqui tratar dos seus problemas
O seu Messias ainda não chegou
Eu vim rever a moça de Ipanema
E vim dizer que o sonho
O sonho terminou
Eu vim rever a moça de Ipanema
E vim dizer que o sonho
O sonho terminou”

Pelo simples fato de não se tratar de um mero Messias do Rock, Raul também avisava que não estava aqui para agir e cantar como as belas cigarras, que encantam e seduzem a todos:

“Tenho 48 quilos, certo?
48 quilos de baião
Num vou cantar como a cigarra canta
Mas desse meu canto eu não lhe abro mão
Num vou cantar como a cigarra canta
Mas desse meu canto eu não lhe abro mão”

Quando Mestre Raul começou a tocar incessantemente entre nós a partir de 1973, já pudemos ver de cara que o baiano fã de Elvis Presley não tinha vindo para este mundo de estrelas musicais a passeio. Raulzito veio para fazer muito, mas muito barulho! Deixou para trás uma respeitada carreira de produtor musical, para dar início a uma carreira individual vitoriosa e brilhante. O título de sua estreia musical: Krig-Ha, Bandolo (título retirado de uma história de quadrinhos) quer dizer, nada mais nada menos do que, “Cuidado, lá vem o inimigo!”. Na foto da capa do disco, vemos um cantor que contraria toda a lógica do star system da Música Brasileira de 1973 – Raul se mostra magro, esquelético, de olhos entreabertos (efeitos da cannabis?), uma tatuagem na mão e um cordão dourado no centro do peito.
Definitivamente, Raul Seixas veio para ser um inimigo: da moral tradicionalista que regia o Brasil dos militares, dos bons costumes que nossos pais pregavam e nos obrigavam a seguir, ao bom gosto musical, dos velhos e novos baianos e sua música que deixava de ser contracultura para ser apropriada pelo sistema em meados da década de 1970.
Consequentemente, Raul Seixas se tornou um dos inimigos musicais mais perseguidos da ditadura militar entre 1973 e 1975 não pelo fato de assumir um discurso político, mas por assumir uma postura cáustica, irreverente e libertária perante o Brasil e o mundo que vivíamos nos anos 1970. Por outro lado, Raulzito se tornou o Rockstar brasileiro mais importante de nosso país graças à autenticidade de seu talento, de uma obra musical que se consolidou ao longo de duas décadas de sucesso e, principalmente, à sua estreia arrebatadora em disco.
Krig-Ha, Bandolo se inicia com uma belíssima introdução: Raulzito cantando “Good Rockin’ Tonight”, sucesso de Elvis Presley, deliciosamente desafinado aos nove anos de idade, revelando uma ambição de ser um astro que não se vê mais por aí em pleno século XXI. Para os que pensavam que estávamos ouvindo um disco de Rock, a faixa que se segue é um tapa muito bem dado nos ouvidos de pouca imaginação: “Mosca na Sopa” é um ponto de umbanda misturado com Rockabilly com um refrão tão empolgante e de uma ousadia tão gigantesca (Quem mais pensaria em misturar Macumba com Rock em 1973? Quem?!). Já avisava o baiano, com seu sotaque arrastado:


“Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar”

Raul Seixas não queria ser uma unanimidade. Queria conquistar o mundo com suas ideias, com seu ideal, com sua sociedade alternativa. Queria ser, como diz um de seus maiores clássicos, uma “Metamorfose Ambulante” ao invés de ‘ter aquela velha opinião formada sobre tudo’. Queria provocar a moral e os bons costumes do Brasil de 1973 com a sua “Dentadura Postiça” ao anunciar que ‘Vai subir / O preço do horror’. Queria nos avisar, via “As Minas do Rei Salomão”, que ‘Do passado me esqueci / No presente me perdi’ e que ‘Se chamarem diga que eu saí’.
Em “Al Capone”, avisa personalidades de peso como Frank Sinatra, Jesus Cristo, Júlio César e o velho mafioso de Chicago que em algum momento a picaretagem tem o seu fim, afinal, o velho Raulzito (que iria anunciar em pouco menos de uma década que tinha nascido há 10 mil anos atràs) era o astrólogo que conhecia os percalços da ‘história do princípio ao fim’. Na belíssima “Cachorro Urubu”, concluía que ‘A história é a mesma / Aprendi na quaresma / Depois do Carnaval / A carne é algo mortal / Com multa de avançar sinal’. E já em “Rockxixe”, enfim, avisava, sem a menor dó dos medíocres:


“Você é forte, mas eu sou muito mais lindo
O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné
Não tenho pressa, tenho muita paciência
Na esquina da falência que eu te pego pelo pé”

Apesar de se revelar uma persona um tanto complexa de se compreender, Raulzito conseguia ter os seus momentos de lirismo e romantismo. Em “A Hora do Trem Passar”, ele suplica à mulher amada: ‘Diga meu amor, pois eu preciso escolher / Apagar as luzes, ficar perto de você’. Em “How Could I Know?”, pergunta, em inglês: ‘Como eu iria saber / que os meus olhos podiam ver no escuro?’, contrariando todas as expectativas de que era impossível distinguir o joio do trigo em tempos de trevas e escuridão.
No entanto, a canção mais emblemática de Raul Seixas foi escolhida para ser a última canção de Krig-Ha, Bandolo. “Ouro de Tolo” é uma crítica monumental ao pequeno burguês que sonhava com o sabor artificial do bolo solado do Milagre Econômico brasileiro, que esconde injustiças sociais, econômicas através de um viés político autoritário. Raulzito alega que deveria estar contente em meio ao seu Corcel 73, ao seu emprego que lhe faz um cidadão responsável, por ter tido sucesso, por deixar de passar fome no Rio de Janeiro, por ter o domingo para passear no zoológico e outras pequenices que fazem a vida de qualquer burguesia.
Eterno insatisfeito, porém, Raul acha que ‘vencer na vida’, seguindo a cartilha do sistema, é uma piada de péssimo gosto, por ser decepcionante, limitado, medíocre. Afinal de contas, nós, humanos, somos grandessíssemos idiotas que usam apenas 10% de nossas cabeças e que sendo doutores, padres ou policiais que contribuem para um ‘belo quadro social’ que não existe, que é falido desde a sua instituição via argumentos falaciosos. Diante da mediocridade que nos ronda, o que não precisamos fazer para nos livrar de uma existência comum. Deixemos a resposta para Mestre Raul:



“Eu é que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador”


Para Raul Seixas, a fuga desta realidade absurda era o disco voador que, como o Godot de Samuel Beckett, nunca veio. Para a nossa felicidade, já que os extraterrestres deixaram Raulzito conosco cantando e tocando até o final da década de 1980, quando a Morte veio lhe buscar depois de anos e anos de abusos de álcool e drogas. No entanto, a mulher misteriosa com a foice na mão não nos levou a música. 
Por tudo isto, o momento pede que revisitemos Krig-Ha, Bandolo e possamos entender mais uma vez o porquê de Raul Seixas ser um dos artistas mais geniais do planeta. 


3 de maio de 2017

TROVA # 123

O INCÊNDIO DOS VAGABUNDOS


Workers can you stand it?
Oh, tell me how you can
Will you be a lousy scab
or will you be a man?

Which side are you on boys?
Which side are you on?

Don't scab for the bosses
Don't listen to their lies
Poor folks ain't got a chance
Unless they organize

Which side are you on boys?
Which side are you on?
(Florence Reece na voz de Natalie Merchant, 2003)



Fogo, fogo, fogo, água
Incêndio nas ruas
bomba, bomba, bomba, praça
Vielas, ratos, figuras, nuas

Plástico, jornal, rajada
Contagem, atraso
Pânico, pulseira, brinco, colar
Carteira, rádio, anel, sacola

Incêndio nas ruas
Incêndio nas ruas
Incêndio nas ruas
Incêndio nas ruas
(Pedro Luís na voz de Ney Matogrosso, 2013)


         Quer queira, quer não, o Brasil parou no dia 28 de abril de 2017. A greve geral, originalmente convocada pelas centrais sindicais, teve a adesão de professores das redes pública e privada, metroviários, condutores e cobradores de ônibus e outros grupos de trabalhadores. O GAFE tentou desqualificar e descaracterizar o movimento através de uma cobertura jornalística parcial e descaradamente tendenciosa. O alto empresariado, as elites e os pobres de direita se sentiram aviltados por terem tido o seu direito de ir e vir abalado por “baderneiros defensores do Lula”. A classe política governista minimizou os protestos, mas se manteve em pânico ao constatar que aproximadamente 35 milhões de brasileiros literalmente cruzaram os braços.


         Para mim, a fala mais estarrecedora sobre a greve geral foi a do Prefeito de São Paulo e de um de seus subprefeitos. Ambos qualificaram os manifestantes de “vagabundos”, alegando que sexta-feira é dia de trabalho, ameaçaram os servidores públicos municipais e cortaram o ponto dos funcionários que não compareceram aos seus postos de trabalho naquele dia. Exemplo este seguido pelo Presidente da República, Michel Temer, em relação aos funcionários públicos federais, cujo dia também foi descontado – afinal de contas, o melhor dia para realizar uma greve deveria ser o domingo, pois, assim, não atrapalha o direito alheio de ir e voltar para onde desejasse. O povo lhes informou, sem o menor pesar, de que domingo é o dia das elites protestarem; a classe trabalhadora batalha por seus direitos durante a semana mesmo.


         No entanto, a mais genuína prova de vagabundagem não vem daqueles que cruzaram os braços e foram às ruas protestar contra as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo Governo Temer: os verdadeiros desocupados são os representantes da elite e do empresariado, donos das grandes corporações que devem bilhões de reais à Previdência Social e demais órgãos oficiais ao sonegarem encargos e tributos que resolveriam os problemas econômicos do país em um estalar de dedos. A ganância, a arrogância, a avareza e a hipocrisia destas pessoas nos obrigam a pagar taxas cada vez mais exorbitantes, pois elas se recusam em dividir as fortunas e os lucros de seus dividendos com o restante da sociedade. Com isso, a paciência dos contribuintes é carcomida e incendiada pelo cinismo de fazer inveja ao próprio Tio Patinhas.


         Os 4% de aprovação de Temer na Presidência da República evidenciam que o povo está farto da hipocrisia e da ganância de uma classe política que tem feito pouquíssimo para solucionar as questões endêmicas do Brasil. Some-se a este caldeirão fumegante 14 milhões de desempregados e uma grande mídia irresponsável e tendenciosa, a quem “carinhosamente” chamamos de GAFE. A revolta das pessoas nas ruas e nas redes sociais protestando, atravancando vias públicas e proferindo palavras de ordem para quem quiser ouvir é genuína, pois só a classe trabalhadora sabe o preço e a dor da ausência de direitos trabalhistas. Por outro lado, a reação dos policiais diante dos protestos (não-)pacíficos foi agressiva e truculenta, como sempre: milhares de cassetetes em riste, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo foram utilizados para reprimir os manifestantes de maneira vil e covarde.




         A imprensa estrangeira, ao contrário do GAFE, não escondeu a greve geral para debaixo do tapete dos fatos e acontecimentos do dia. A comunidade internacional tomou conhecimento não apenas da crise política que tem assolado o Brasil há anos, como também da revolta dos “vagabundos” que incendiaram as principais ruas, estradas e avenidas do Brasil. Afinal, ainda persiste a esperança de que o incêndio promovido pelo povo seja uma resposta à altura do retrocesso pelo qual ele passa e sente na pele.