31 de agosto de 2017

DISCOS DE VINIL # 40

PATTI SMITH – HORSES (1975)


Jesus died for somebody’s sins, but not mine.
(Patti Smith, 1975)

Na primeira metade da década de 1970, Patricia Lee Smith era uma jovem de 20 e poucos anos que morava em Nova York e já tinha feito um pouco de tudo: posou nua para fotógrafos, atuou em uma peça de teatro, iniciou amizades e teve relacionamentos amorosos com o ator, roteirista e dramaturgo Sam Shepard e com Allen Lanier (tecladista do Blue Öyster Cult). Além disso, viveu e amou intensamente seu melhor amigo, o aspirante a artista plástico e (posteriormente) fotógrafo renomado Robert Mapplethorpe em lugares dos mais remotos da Big Apple – dentre estes, o lendário Chelsea Hotel, que já abrigou ilustres como Bob Dylan, Tom Waits, Janis Joplin, Leonard Cohen, Iggy Pop e Arthur C. Clarke. Enquanto não estava envolvida nas criações artísticas ao lado de Mapplethorpe, Patti escrevia poemas e críticas de música para as revistas Creem e Rolling Stone e ainda tinha acesso ao círculo restrito de “contatos” de Andy Warhol.

Patti ao lado de Robert Mapplethorpe

Patti Smith acreditava que seria revelada para o universo através da poesia ou via artes plásticas. No entanto, quando recebeu um convite para recitar seus poemas em público ao lado do guitarrista Lenny Kaye, viu que poderia escrever ser uma estrela do Rock sem deixar de fazer poesia. O duo Smith-Kaye logo se tornou um trio com a chegada do pianista e tecladista Richard Sohl, o que automaticamente trouxe uma delicadeza para a aspereza do som e fúria que Patti e Lenny geravam em cena. Pouco depois, vieram o baterista Jay Dee Daugherty e o baixista Ivan Kral para completar o grupo. Em pouco tempo, estes jovens eram tão requisitados pelas pessoas que iriam ao CBGB quanto os Ramones, os Talking Heads e o Blondie.

Patti ao lado de Sam Shepard

O sucesso de Patti Smith na cena novaiorquina fez com que o executivo Clive Davis prestasse mais atenção naquele som e contratasse aquela jovem de 28 anos petulante e repleta de cara de pau para gravar um disco em meados de 1975. Para a produção do disco, foi recrutado o cantor, compositor e ex-membro do Velvet Underground John Cale. Apesar de ter recebido críticas excelentes, a produção de Horses foi turbulenta, com desentendimentos constantes entre Patti e Cale. Era notável que o produtor e a artista eram representantes de duas forças completamente antagônicas, tais quais Vênus e Marte ou Apolo e Dionísio, o que não interferiu no fato do debut album de Patti Smith ser considerado sua obra-prima até hoje.

Patti ao lado de Bob Dylan

A imagem de capa do disco, clicada por Robert Mapplethorpe, merece um parágrafo à parte, por mostrar uma cantora que foge a todos os padrões de feminilidade e beleza: o cenário era o apartamento de cobertura de Sam Wagstaff, companheiro de Robert, no Greenwich Village, número 1 da Fifth Avenue, com Patti Smith vestindo uma camisa social branca com o paletó pendurado no ombro esquerdo, como uma versão punk e lésbica de Frank Sinatra. Por ser uma imagem tão autêntica e tão intensa no que diz respeito à integridade artística que Patti sempre ambicionou e o jogo de luz e sombras em preto e branco que Mapplethorpe sempre realizou enquanto fotógrafo, a capa de Horses tornou-se uma das mais emblemáticas de toda a história da música recente. A intelectual Camille Paglia declarou certa vez que aquela foto é uma das melhores imagens jamais feitas de uma mulher. No entanto, Patti escreveu em seu primeiro livro de memórias, Só Garotos, que a foto é fruto do amor dela e de Robert pela arte: “Até hoje quando olho para essa foto, nunca me vejo. Vejo nós dois”.





Horses possui apenas oito faixas e uma bonus track (uma releitura veloz e furiosa de “My Generation”, do The Who), que foi incorporada a uma reedição em CD a partir de 1996. No entanto, cada uma destas faixas revela não apenas a fúria, o lirismo e a imensa ousadia de Patti Smith, como também evidencia o talento indiscutível de Lenny Kaye, Richard Sohl, Jay Dee Daugherty e Ivan Kral como músicos. A faixa de abertura, o medley “Gloria” juntava trechos do poema “In Excelsis Deo”, de Patti com uma releitura frenética da canção de mesmo nome composta e gravada por Van Morrison e pelo The Doors anos antes. A faixa seria apenas mais uma canção de rock entoada por uma mulher se Smith não tivesse cantado literalmente que “Jesus died for somebody’s sins, but not mine” (Jesus morreu pelos pecados dos outros, mas não pelos meus). Na medida em que a voz deixa de sussurrar ao som do piano de Sohl para se tornar em gritos e berros do desejo uma vez escrito por Morrison, Patti retorna ao trecho mais controverso de seu poema e não deixava dúvidas de que veio para o mundo do Rock para fazer muito barulho e confusão.

Patti no colo de Clive Davis

O disco segue com “Redondo Beach”, um misto de Rock e Reggae baseado em um poema escrito por Patti Smith em 1971 e que foi musicado por Richard Sohl e Lenny Kaye anos depois. A canção narra uma briga de Patti com uma de suas irmãs mais novas, Linda, que, por sinal, jamais chegou a cumprir o destino trágico descrito pelos versos da older sister. Um fato interessante é que Morrissey chegou a gravar um cover inusitado deste clássico e que saiu no álbum Live at Earls Court (2005). Já “Kimberly” (Patti Smith, Allen Lanier & Ivan Kral), quinta faixa de Horses, é uma homenagem da cantora à sua irmã caçula e narra episódios ao som da batida sincopada de Jay Dee e da marcação do órgão Hammond B3 de Sohl.


Patti ao vivo em San Francisco - 1975

Uma das canções mais populares de Horses é a deliciosamente frenética “Free Money”, no qual Patti debocha descaradamente da importância do vil metal em meio aos delírios de uma sociedade pautada pelo consumo – e olha que ela já nos dizia isso desde os anos 1970. O que chega a ser mais surpreendente é que esta parceria de Smith e Lenny Kaye recebeu algumas releituras, inclusive uma feita por Sammy Hagar (segundo vocalista do Van Halen). O fato é que o espírito desta canção, por exemplo, fez de Patti Smith a madrinha do movimento Punk, amada por músicos das mais distintas tribos. Outro exemplo deste frenesi que era característico da música que se produzia em Nova York em meados dos anos 1970 é o insano medley “Land” (sétima faixa do disco), dividido em três partes: o poema “Horses” (Patti Smith), uma releitura de “Land of a Thousand Dances” (Chris Kenner & Fats Domino) e o poema “La Mer(de)” (Patti Smith). Os “puristas” do movimento debochavam dos versos smithianos, claramente influenciados por Jim Morrison, Bob Dylan e (principalmente!) Arthur Rimbaud; porém, o fato é que poucos tinham a competência de desconstruir uma artista de envergadura tão incomum – afinal de contas, Patti Smith conseguia ser mais agressiva do que Morrison, Hendrix e Dylan juntos




“Birdland”, a terceira faixa do disco, tem uma influência mais jazzística graças ao dedilhar do piano de Richard Sohl. Enquanto a improvisação corria solta pelos Electric Lady Studios, Patti tentava evocar o espírito de Jimi Hendrix e se inspirava nas memórias de Wilhelm Reich escritas por seu filho Peter para atingir o grau máximo da sensibilidade. Já “Break it Up”, um dos momentos mais emocionantes de Horses, é uma parceria de Patti Smith com o guitarrista Tom Verlaine (Television). A inspiração para esta canção surgiu de um sonho da autora de Só Garotos com Jim Morrison – neste episódio, o eterno vocalista do The Doors aparece com asas angelicais, mas preso em um umbral de mármore que o impedia de voar. O pedido de Jim era simplesmente de que a moça saísse de seu estado de letargia e quebrasse o mármore para que, enfim, o cantor de “Light My Fire” pudesse seguir sua jornada rumo à eternidade: “Snow started falling / I could hear the angel calling / We rolled on the ground, he stretched out his wings / The boy flew away and he started to sing / He sang, “Break it up, oh, I don’t understand / Break it up, I can’t comprehend / Break it up, oh, I want to feel you / Break it up, don’t look at me”.


A faixa que encerra Horses, “Elegie”, é uma singela homenagem feita por Patti Smith e Allen Lanier para aqueles que já partiram desta vida. O mais interessante é que a canção se tornou um número cada vez mais emocionante na medida em que ele é tocado ao vivo e mostra Patti em meio a lamentos de dor e saudade para que, ao final, ela recite os nomes daqueles que nos deixam saudades. Em uma edição especial comemorativa de 30 anos de seu disco de estreia, que contém uma gravação de um show gravado em Londres, os nomes de Jimi Hendrix, Jim Morrison, Robert Mapplethorpe, Todd Smith (irmão da cantora) e Fred “Sonic” Smith (líder do MC-5 e marido da madrinha do Punk) e Richard Sohl (falecido aos 37 anos por um ataque do coração, em 1990) foram lembrados. Já na última noite de apresentações do lendário clube CBGB, Patti Smith fez questão de relembrar de todos os mitos do Punk Rock que já não estavam mais entre nós naquela fatídica noite de 2006 – os acordes de “Elegie” foram exatamente os últimos que ecoaram pelas paredes imundas do templo do Punk nova-iorquino antes de Hilly Kristal fechar as portas. Torna-se impossível não se emocionar com as perdas de Smith, visto que elas são perdas musicais que repercutem em cada um de nós…



Horses chegou aos 40 anos de idade no dia 13 de dezembro de 2015, com direito a uma turnê comemorativa de aniversário. Queria ter sido uma mosquinha para ter assistido e ver que Patti Smith poderia até ter envelhecido um pouquinho, mas sua música continua ousada e agressiva como sempre foi no decorrer destas últimas quatro décadas. Enquanto vou juntando dinheiro ou me conformando com frustração de ficar por estas bandas mesmo, o jeito é celebrar o legado atemporal deste disco maravilhoso…

27 de agosto de 2017

TROVA # 134

OS RATOS DA CAPITAL FEDERAL



Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Frequenta agora as festas do ‘Grand Monde’

Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
(Cazuza, 1988)


Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão
(Chico Buarque & Edu Lobo, 2001)


         Se Cazuza estivesse vivo em 2017, ele estaria em estado de choque tão grande, mas tão grande com as notícias de política, que ele teria vergonha de ter escrito canções tão emblemáticas como “Ideologia”, “Brasil”, “Burguesia” ou “O Tempo Não Para”. Pelo simples fato de que, três décadas após o fim da Ditadura Militar, pouco se aprendeu a respeito desta elite que nos governa.


         A eleição de petistas para o Governo Federal – apesar do fato do PT sempre ter dado as mãos para o “centrão” e o empresariado – jamais esteve nos planos das oligarquias que sugam as riquezas e as forças de trabalho deste país. A realização de políticas públicas voltadas para o social sempre foi motivo de ojeriza imensa por parte das famílias bem-nascidas e alimentadas do bom e do melhor, afinal, o desmantelamento de serviços como a educação pública, lembrando o sábio e saudoso Darcy Ribeiro, sempre foi um antigo projeto.
         Nos últimos meses, a Câmara dos Deputados se tornou em um verdadeiro balcão de negócios de um Presidente golpista, desesperado em manter o seu cargo para poder desfrutar dos benefícios da cadeira que tomou na base do tapetão. 200 milhões de brasileiros assistiram bilhões de reais serem liberados através de emendas parlamentares para que Michel Temer não fosse julgado pelo STF por crime de corrupção passiva. Enquanto 300 e poucos deputados comemoravam as maracutaias praticadas por eles em plena luz do dia, os servidores do Rio de Janeiro padeciam por falta de salário...


     Não nos enganemos: o Governo Temer é um vassalo do empresariado, do GAFE e do capital estrangeiro. A aprovação da reforma trabalhista é um dos maiores presentes que a elite tanto ansiava, afinal, as dívidas dos cachorros grandes com a Justiça Trabalhista (para citar apenas um exemplo) eram estratosféricas. Além disto, as altas cúpulas do Judiciário brasileiro (sem citar nomes, para não dar processo) sempre estão prontas para livrar os “compadres” ricaços da cadeia através de uma simples canetada. Justiça é luxo de quem está de posse do vil metal e não é pobre...
          O mantra dos golpistas neste momento não é “reformar” o Estado Brasileiro. Consiste em colocar o Brasil a venda mesmo. Sem pensar duas vezes, sem regatear, sem sequer consultar a sociedade. Em 23 de agosto de 2017 tornaram público de que cerca de 57 privatizações seriam realizadas para poder diminuir o déficit nas contas públicas. Se a venda de serviços públicos para a iniciativa privada fosse garantia de qualidade, teríamos excelentes serviços de telefonia e desastres ecológicos como o ocorrido em Mariana jamais teria acontecido.


          No entanto, o que mais me causou espécie foi a desapropriação da Reserva Nacional do Cobre, uma área na região da Amazônia correspondente ao território da Dinamarca, para exploração mineral. Se o Governo Temer deseja uma nova corrida ao ouro como nos velhos tempos de Serra Pelada, conseguiu. O único problema é que a área está repleta de vegetação nativa e de indígenas. Um mero detalhe a ser resolvido pela turminha do agronegócio.



     Diante dos acontecimentos mais recentes, pouco mudou nos últimos 30 anos: Brasília está cheia de ratos. Se ratoeiras ou venenos para roedores fossem dispostas pelo Congresso, pelo Senado ou pela Esplanada dos Ministérios ou no Palácio do Jaburu, não teríamos nenhum para contar história. Enquanto isso, a bandeira do Brasil é roída como se fosse a roupa do Rei de Roma...     


24 de agosto de 2017

DISCOS DE VINIL # 39

CAUBY PEIXOTO – CAUBY INTERPRETA ROBERTO (2009)


         A dupla Roberto & Erasmo é composta por dois dos compositores mais queridos da música de todo o Brasil: desde os anos 1960, são autores das canções mais amadas pelo público brasileiro em todos os tempos. Nara Leão e Maria Bethânia foram as primeiras intérpretes de peso do nicho da MPB que gravaram álbuns dedicados ao repertório gravado por Roberto Carlos. Nara fez uma releitura personalíssima do repertório do Rei. Bethânia, por sua vez, fez um álbum clássico, com direito a arranjos grandiloquentes de cordas e metais.



         Cauby interpreta Roberto, lançado por Cauby Peixoto no final de 2009, transita por estas duas tendências. Ao mesmo tempo que possui releituras nada convencionais do repertório de El Rey, há (bastante) espaço para arranjos de cordas, metais conduzidos por músicos competentíssimos – Hanilton Messias (piano e flauta), Ronaldo Rayol (violão e guitarra ), Eric Budney (baixo acústico) e Nahame Casseb (bateria) –, fazendo com que a voz de Cauby reverberasse com a intensidade de seu talento.



         A voz de Cauby Peixoto, apesar de não estar mais viçosa e com o mesmo brilho dos anos em que esteve no auge de sua carreira musical, ainda soava muito bem aos 78 anos de idade  ano em que gravou e lançou este disco. Senhor pleno de seu ofício, valorizou os tons graves em cada interpretação das canções de Roberto e Erasmo (de apelo extremamente popular) com enorme sutileza e elegância. “Proposta”, lançada por Roberto Carlos em 1973, abre o disco e atesta o talento e a vasta experiência de Cauby na arte da interpretação musical.


  “De Tanto Amor” (1971) recebeu uma releitura bastante “econômica”: sem arranjos de cordas ou metais e sem os vibratos e dós de peito tão característicos do intérprete de “Conceição”. A emoção da dor de versos como “Eu nada vou dizer, perdoa se eu chorar” está, justamente, no fato de ser entoada de maneira sincera e contida e Cauby o faz com uma precisão quase cirúrgica. É uma das melhores faixas de Cauby interpreta Roberto. Outra faixa na qual o talento de Cauby Peixoto se destaca foi para a releitura de “Olha” (1975), na qual o cantor é acompanhado apenas pelo piano de Keco Brandão. Sugestão do próprio Roberto Carlos para ser gravada por Cauby neste projeto, é outro momento de brilhantismo deste CD.


A terceira faixa do CD, “A Volta”, foi composta por Roberto e Erasmo para o repertório da dupla Os Vips em 1966 e gravada pelo Rei em seu disco de 2005, recebeu um arranjo sóbrio, bem ao estilo bossanovístico, algo não muito comum para Cauby. A quarta faixa do disco é “Sentado à Beira do Caminho”, gravada originalmente por Erasmo Carlos no final da década de 1960 e regravada pelo Tremendão ao lado de El Rey para o álbum Erasmo Carlos Convida... (1980). Levemente dramática e com arranjo de cordas, é a única canção não incluída nas tracklists de álbuns de Roberto. Certamente, uma das escolhas menos óbvias do repertório gravado por Cauby neste disco.


As demais canções escolhidas para Cauby interpreta Roberto são clássicos absolutos na voz de Roberto Carlos. A sexy e lasciva “Os Seus Botões” (1976) recebeu um belo arranjo de sax tenor de Ubaldo Versolato; “Música Suave” (1978), gravada originalmente com uma big band, ganhou contornos jazzísticos, típicos de uma gafieira elegante embalados pela interpretação sutil de Cauby; “Desabafo” (1979) se tornou em um tango argentino elegantíssimo, com um arranjo de cordas contundente de Cintia Zanco; “As Flores do Jardim da Nossa Casa” (1969), “À Distância” (1972) e “Não Se Esqueça de Mim” (1977), como não poderia ser diferente, ganharam releituras românticas, com violinos, cellos e violas para acentuar o trabalho competente da banda e da voz belíssima de Cauby Peixoto.


O encerramento de Cauby interpreta Roberto se dá com uma das canções mais emblemáticas do repertório de Roberto Carlos: “O Show Já Terminou” (1973) poderia ser uma marca tão registrada de Cauby (“O show já terminou / vamos voltar à realidade / Não precisamos mais / usar aquela maquiagem”) quanto “Bastidores” – composta por Chico para a voz de sua irmã, Cristina Buarque – sempre o foi. A produção sóbria de Thiago Marques Luiz faz justiça às canções da dupla mais românticas do Brasil e ao talento de uma das vozes mais belas que o mundo já conheceu: a de Cauby Peixoto.




Cauby interpreta Roberto merece ser ouvido e (re)descoberto por ouvintes e estudiosos da música brasileira. É um álbum que jamais sairá dos autofalantes daqui de casa, muito menos de minha memória afetiva. Uma pena que o show deste trabalho nunca gerou um DVD para que um registro audiovisual atestasse a prova de que Cauby Peixoto era um artista extraordinário... 


20 de agosto de 2017

TROVA # 133

MÊS DO GOSTO E DO DESGOSTO
(amando e odiando o mês de agosto)



Esse papo já tá qualquer coisa
Você já tá pra lá de Marrakesh
Mexe qualquer coisa dentro, doida
Já qualquer coisa, doida, dentro mexe
Não se avexe não, baião de dois
Deixe de manha, 'xe de manha, pois
Sem essa aranha, sem essa aranha, sem essa aranha!
Nem a sanha arranha o carro
Nem o sarro arranha a Espanha
Meça: tamanha!
Meça: tamanha!
Esse papo seu já tá de manhã!

Berro pelo aterro
Pelo desterro
Berro por seu berro
Pelo seu erro
Quero que você ganhe
Que você me apanhe
Sou o seu bezerro gritando mamãe!
Esse papo meu tá qualquer coisa
E você tá pra lá de Teerã!”
(Caetano Veloso, 1975)



Dizem que o mês de agosto é o mais interminável de todo ano. Mês do cachorro louco, de início de semestre em escolas de idiomas (universo do qual eu faço parte há mais de 10 anos), com ausência de feriados, do retorno às aulas. Temporada de cansaço acumulado, de angústias rebocadas e de algumas esperanças pelo caminho. 31 dias que, aparentemente, nunca chegam ao fim.


É no decorrer deste mês que ilustres leoninos e virginianos comemoram os dias dos seus anos. Caetano Veloso, Madonna, Elba Ramalho e Ney Matogrosso fazem aniversário em agosto. Estes quatro artistas sempre estiveram presentes nos meus ouvidos e nos momentos mais marcantes na existência destas retinas ainda não muito fatigadas. Em 2017, por outro lado, vieram me lembrar que Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, não está mais entre nós há exatos 30 anos. Há três décadas que a poesia no Brasil não pode contar com o seu maior poeta para tentar entender esta enorme contradição chamada "sentimento do mundo". O que o Poeta de Itabira teria a nos dizer nos dias de hoje?


A partir de agosto deste ano, descobri que ainda há espaço para desafios na minha vida profissional: iniciei meus trabalhos como Professor da Rede Pública na Cidade de São Paulo, depois de 16 anos de vida profissional e de 13 com registro em carteira. Ser um docente de crianças e adolescentes no ensino público é muito mais do que um mero professional challenge: é trabalhar com uma quantidade limitada de recursos com um público extremamente carente de tudo o que se possa imaginar. É preciso rever expectativas, revisitar conceitos, deixar outros preconceitos de lado, ter a corrente sanguínea de uma barata. Lições de ouro já valiosamente aprendidas no oitavo mês do ano de 2017.


Os noticiários internacionais nos mostraram que o ódio racial não é apenas uma constante na Alemanha de Hitler ou na França segregacionista de Le Pen. Li e assistir com imenso horror as notícias e protestos de ódio racial ocorridos em Charlottesville, EUA. A ideologia rota e imunda da "supremacia branca" tão bem defendida (e aplicada por nazistas e fascistas) em pleno século XXI com o aval do Presidente Trump é um dos maiores sintomas do retrocesso mundial que o terceiro milênio tem vivenciado nos últimos meses. Tenho em comum o mesmo desejo que o Cazuza: "eu queria ter uma bomba, um flirt paralisante qualquer" para poder fazer com que a justiça dos homens valesse alguma coisa...



Como diria o velho (e sábio) Caetano Veloso: "uma canção me consola". No nosso caso: várias canções nos consolam e tive a prova disso em dois shows incríveis que pude assistir. O primeiro deles, Trinca de Ases, contou com um Valete, a Dama Sofisticada de nossa música e o Rei Buda Nagô máquina de mil e um ritmos brasileiros. Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa fizeram da minha noite de 5 de agosto repleta de som e da doce fúria dos Deuses da Música. Uma master class de ritmo, irmandade artística e de musicalidade em um país marcado por uma série de excessos.



O segundo show também não deveu em nada em relação ao anterior. Depois de décadas apurando meus olhos e ouvidos musicais, tomei coragem para sair em uma noite de sábado chuvosa e feia como um cão para assistir a uma apresentação ao vivo de Zé Ramalho em Santo André. Em quase duas horas, Mestre Ramalho cantou a fina flor de seu repertório para uma multidão de admiradores de seu indefectível trabalho. Enquanto Zé cantava clássicos como "Avôhai", "Admirável Gado Novo", "Banquete de Signos" e "Chão de Giz", não deixava de me perguntar o porquê de nunca ter assistido a um show seu antes. Ainda bem que o mês de agosto nos trouxe oportunidades musicais de ver a vida com mais poesia...




Enquanto o mês de agosto de 2017 não chega ao fim, temos mais 11 dias pela frente. Até lá, teremos que conviver com mais um dos desmandos do governo golpista que decidiu reduzir em 10 reais o reajuste do salário mínimo e esperar ansiosamente o lançamento de Caravanas, 23º álbum de estúdio de Chico Buarque. Não tenho do que reclamar do oitavo mês do ano até aqui. Na verdade, tenho muito mais para agradecer. Apesar do mês que parece nunca ter fim...


17 de agosto de 2017

DISCOS DE VINIL # 38

MARISA MONTE – MM (1989)


         Marisa de Azevedo Monte era uma menina graciosa de 21 anos quando desistiu de ser cantora lírica em Roma para se aventurar pelos territórios da música popular. A infância e a adolescência sempre foram marcadas pela música: seu pai, o engenheiro Carlos Saboia Monte foi um dos diretores da Portela, uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio de Janeiro. Além disso, Marisa estudou piano, canto e bateria. Aos 12 anos, participou de uma montagem de Rocky Horror Show dirigida por Miguel Falabella.
         Ao retornar de Roma para a Cidade Maravilhosa, Marisa Monte procurou o produtor e compositor Nelson Motta para montar o seu primeiro espetáculo solo. O repertório escolhido pelos dois era bastante abrangente – de Mutantes a Carmen Miranda, passando por Peninha, Luiz Gonzaga, Kurt Weill, Candeia e Waldick Soriano. A turnê, batizada de Veludo Azul, fez com que Marisa cantasse por várias cidades do Brasil durante o ano de 1988, com direito a aparição na mídia da época e o respeito da crítica. Inclassificável, os meios de comunicação a tacharam como uma artista “eclética”, por ter dificuldade em assimilar a diversidade que sempre foi a marca do trabalho da filha de Carlos e Sylvia Monte.


         Os convites das gravadoras para a realização do disco de estreia não faltaram. Depois de várias propostas rejeitadas, Marisa Monte decidiu assinar com a EMI. Com exceção de uma faixa, MM foi gravado ao vivo durante uma apresentação ao vivo em maio de 1988, sem retoques ou recursos de retoques na voz. Uma medida bastante incomum em termos de marketing estratégico de lançamentos de novos artistas, diga-se de passagem.


      MM é composto de 12 canções – 11 regravações e uma adaptação de um sucesso italiano para o português: Nelson Motta adaptou a letra de “E Po' Che Fa”, do italiano Pino Daniele, para o português. “Bem Que Se Quis” se tornou o primeiro sucesso de Marisa Monte e foi uma das mais tocadas nas rádios brasileiras do ano de 1989 e foi tema da personagem de Lúcia Veríssimo na novela O Salvador da Pátria, da TV Globo. A faixa de abertura é uma versão pungente de “Comida”, de Arnaldo Antunes, Sérgio Britto e Marcelo Frommer, uma das canções mais emblemáticas do repertório dos Titãs. Do universo do Rock nacional, Marisa regravou “Ando Meio Desligado”, de Rita Lee e dos irmãos Sérgio e Arnaldo Dias Baptista, um dos números mais importantes do repertório dos Mutantes.


         A terceira faixa do disco é uma regravação de “Chocolate”, uma das canções mais interessantes do repertório de Tim Maia, por quem Marisa Monte sempre considerou como uma de suas principais influências. O jingle de Tim, uma declaração de amor a um dos doces mais adorados pelos seres humanos, foi uma oportunidade e tanto para que Marisa fizesse um protesto a favor da liberação das drogas através dos versos, inclusos por ela:

“Não quero pó
Não quero rapé
Não quero cocaína
Eu só quero chocolate
Só quero chocolate
(Legalize marijuana!)
Não adianta vir com guaraná pra mim
É chocolate que eu quero beber”


         Do mundo do samba, Marisa Monte resgatou três clássicos do gênero: “Preciso Me Encontrar”, uma das criações mais célebres de Candeia, foi um enorme sucesso na voz de Cartola. “Lenda das Sereias, Rainha do Mar” foi um dos temas de samba-enredo mais populares da história do Carnaval carioca. Por fim, “South American Way” (Al Dublin & Jimmy McHugh) é um dos números mais significativos do repertório que fez de Carmen Miranda uma das maiores lendas do showbiz internacional.
         O trunfo principal de MM é a diversidade de ritmos (Rock, Soul, Samba...). A regravação do Forró “O Xote das Meninas”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, em ritmo de Reggae e a versão espetacular de “Negro Gato” (Getúlio Côrtes) em uma levada Blues com pitadas de Samba evidenciam o quanto Marisa Monte é uma cantora versátil, ousada e marcante. Já as três faixas finais do disco são releituras de clássicos da canção em língua inglesa: “I Heard It Through The Grapevine” (Barrett Strong & Norman Whitfield), um dos números mais importantes do repertório de Marvin Gaye; “Bess, You Is My Woman Now”, um dos números mais belos da ária Porgy & Bess, dos irmãos Gershwin, contou com a participação especial do grupo Nouvelle Cuisine; “Speak Low” (Kurt Weill & Ogden Nash), a única faixa gravada em estúdio, é uma homenagem ao estilo de cantar de João Gilberto.


         O disco de estreia de Marisa Monte é o retrato fiel do talento de uma das artistas mais talentosas da música brasileira. Um trabalho que merece ser reouvido para que sempre possamos nos lembrar da beleza do canto de uma das sereias mais belas do Brasil...