A MAGIA DO SECOS &
MOLHADOS**
* Quando era adolescente, lá pelos idos da
década de 1990, era o típico jovem “aborrecente” que só ouvia música em inglês.
No entanto, apenas três artistas chamavam minha atenção naquela época: Rita
Lee, Ney Matogrosso e Maria Bethânia – artistas que não tinham surgido na minha
geração, mas que me diziam muito. No ano em que iniciei a Faculdade de Letras,
resolvi prestar mais atenção na banda que projetou Ney para os quatro cantos
deste planeta. Descobri o Secos & Molhados e me tornei não apenas fã, como
pesquisador deste fenômeno meteórico que foi sinônimo de ousadia, liberdade e
música de primeiríssima qualidade. Concluí a graduação, a pós-graduação (não,
necessariamente!) e minha paixão por este grupo continua... Por isso, não
poderia deixar de fazer meu tributo ao Secos & Molhados e o que este grupo
significou/significa para mim.
** Este texto foi publicado há exatamente cinco
anos no site oficial de Ney Matogrosso. Na época, eu estava em fase de
conclusão de minha Dissertação de Mestrado sobre o Secos & Molhados e fiz
um breve perfil do grupo que tomou o Brasil inteiro de assalto entre 1973 e
1974. A versão que aqui apresento foi devidamente atualizada de acordo com o
novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa. Nada foi acrescentado ao conteúdo do texto. Afinal de contas, time que está ganhando não deve ser alterado, não é verdade?
Aquelas
noites de dezembro de 1972 jamais teriam sido as mesmas se um grupo musical
composto por três rapazes não tivesse se apresentado na Casa de Badalação
& Tédio, uma espécie de anexo do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo.
Surgia, naquele palco, ao lado de João Ricardo e Gerson Conrad, uma criatura
bem estranha: um rapaz bigodudo requebrando provocativamente, com uma voz
incomum e insólita para alguém do sexo masculino, vestido com uma calça de
cetim e uma grinalda na cabeça, bastante maquiado e repleto de purpurina. Não
parecia nem homem nem mulher, nem rumbeira nem cigana, nem animal nem ser
humano. Era Ney Matogrosso que vinha a público com todo o seu fogo cênico e
desaforado, acalentado por anos e anos de teatro.
Graças ao
empenho do empresário Moracy do Val, que decidira contratar o grupo assim que o
assistiu pela primeira vez, a temporada de shows no Ruth Escobar rendeu uma
série de apresentações em outros locais, transformando o Secos & Molhados
em uma sensação das noites paulistanas como num passe de mágica. Poucos meses
depois de sua estreia nos palcos, o grupo entrou no estúdio Prova (SP)
para as gravações de seu primeiro disco. Entre maio e junho de 1973, o álbum
foi gravado.
João Ricardo (violão) e Ney Matogrosso durante ensaio para um show do Secos & Molhados |
A capa do
primeiro disco do Secos & Molhados foi fotografada e produzida por Antônio
Carlos Rodrigues, que, ao tomar conhecimento do nome do grupo, decidiu criar
uma mesa de jantar com produtos perecíveis normalmente vendidos em um armazém
(um nome genérico para secos e molhados). Porém, o prato principal do banquete
consistia simplesmente das cabeças de Ney Matogrosso, João Ricardo,
Gerson Conrad e Marcelo Frias (baterista que não aceitou integrar o grupo).
Ao lançar
o álbum, a gravadora Continental produziu apenas 1.500 cópias do primeiro
trabalho do Secos & Molhados. No entanto, a aparição do grupo em rede
nacional na estreia do programa Fantástico, da Rede Globo, provocou uma
enorme curiosidade por parte do grande público em relação à novidade que
surgia. Em aproximadamente uma semana, os 1.500 discos já tinham sido vendidos.
Os executivos da indústria fonográfica se viram obrigados a derreter vinis de
outros artistas que não vendiam tanto para fabricar mais álbuns do Secos &
Molhados, uma vez que faltava matéria-prima disponível para prensar mais
discos. Enquanto isso, as rádios tocavam sucessos como “O Vira” (João Ricardo –
Luhli), “Sangue latino” (João Ricardo – Paulinho Mendonça) e “Rosa de
Hiroshima” (Gerson Conrad – Vinícius de Moraes).
Os shows
de lançamento do primeiro disco foram no Teatro Itália, em setembro de 1973,
rendendo uma série de lembranças inesquecíveis para os que estiveram lá para
assistir o grupo nos palcos. A partir daí, Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso
começaram a se apresentar por todo o Brasil, causando frenesi por onde
passavam. Um exemplo deste fato se deu no Rio de Janeiro em novembro do mesmo
ano, numa temporada no Teatro Tereza Rachel: o assédio dos fãs era tão grande
que filas e filas se formavam na expectativa de ver o Secos & Molhados no
palco!
Era
evidente que uma manifestação tão rica e intensa como o Secos & Molhados
incomodava a ditadura militar que castigava o Brasil no início da década de 70.
O incômodo não se justificava por algo político sem querer ser (o Secos não era
um grupo politicamente engajado), mas por possuir uma irreverência que
afrontava a moralidade de muitas famílias brasileiras. Abordar a falta de
liberdade e expor a sexualidade incomum (até então) provocava a inquietação nas
altas patentes do governo. Entretanto, censurar um fenômeno maciço de crítica e
público era tarefa impossível.
A
aparição de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso no Rio de Janeiro foi
tão bem-sucedida que eles foram convidados para uma temporada de um mês no
Tereza Rachel, com direito a uma censora dentro do camarim de Ney o tempo todo.
O sucesso foi tamanho que eles decidiram fazer um show de encerramento no
Ginásio do Maracanãzinho, em 13 de fevereiro de 1974. Muitos acharam o convite
um absurdo, pois nenhuma atração brasileira tinha tido a oportunidade de se
apresentar naquele palco apenas com seu próprio espetáculo. Outros temiam que
Ney fosse agredido pelo público. Havia expectativas de que não haveria pessoas
suficientes para preencher o local.
Gerson Conrad, Ney Matogrosso e João Ricardo em ação... |
A
receptividade dos mexicanos também foi muito positiva. Em pouco tempo, a
postura ousada e provocante do Secos & Molhados deixou o país em polvorosa,
com direito a uma foto deles na capa da famosa revista norte-americana Billboard.
Segundo os membros do grupo, empresários norte-americanos, fascinados com o
impacto visual provocado pela maquiagem de Ney, João e Gerson, convidaram-nos
para apresentações nos Estados Unidos. Ney Matogrosso relatou, certa vez, que
um destes executivos lhe propôs a abandonar o Secos & Molhados e fazer uma
carreira solo na terra do Tio Sam com um repertório mais pesado e mantendo sua
indefectível presença de palco. A possibilidade de se transformar em uma versão
glitter e caricatural de Carmen Miranda em um território cuja língua
jamais dominara não o animou, para o alívio de muitos brasileiros...
Em pouco
mais de um ano, o primeiro LP do Secos & Molhados vendeu cerca de um milhão
de cópias, concorrendo com o maior vendedor de discos do Brasil em todos os
tempos, Roberto Carlos. Pela primeira vez em sua história, o “Rei” se viu
obrigado a dividir seu trono com corujas, pirilampos, sacis e fadas.
O sucesso do primeiro LP do Secos & Molhados foi tamanho que a gravadora Continental precisou derreter vinis de outros artistas para fabricar LPs deste fenômeno de vendas. |
Ao
retornarem do México, iniciaram-se as sessões de gravação do disco sucessor ao
álbum das cabeças cortadas. As turbulências internas entre os integrantes do
Secos & Molhados provocaram rumores de sua dissolução antes do início das
gravações. Ney Matogrosso já tinha optado por abandonar o grupo, decisão que só
seria oficialmente tomada assim que o segundo disco fosse para as lojas. João
Ricardo assumiu a produção do trabalho, função que antes cabia a Moracy do Val,
que, nesta altura dos acontecimentos, não era mais empresário do Secos. As
gravações do segundo álbum do Secos & Molhados se deram em meio a uma
atmosfera de desentendimentos, disputas e crises.
Previa-se
que o lançamento do segundo disco do Secos & Molhados seria o principal
acontecimento fonográfico de 1974, mas as notícias da separação de seus
integrantes chegaram aos jornais antes da primeira semana de agosto. Muitos
compraram o novo álbum com um sabor de tristeza ao saber que Gerson Conrad,
João Ricardo e Ney Matogrosso já não eram mais um único grupo. Os três
decidiram sair em carreira solo a partir da dissolução do fenômeno: Gerson
Conrad se uniu a Paulinho Mendonça (co-autor de “Sangue latino” e “Delírio...”,
do segundo disco) gravou um álbum em parceria com a cantora e atriz Zezé Motta
no ano seguinte e depois fez um trabalho solo em 1981 (Rosto marcado);
João Ricardo se dividiu em projetos solo e em formações alternativas do Secos
& Molhados; Ney Matogrosso, por sua vez, seguiu em carreira solo e estreou
em 1975 com o show Homem de Neanderthal e o disco Água do Céu-Passaro.
Contrariando
todas as previsões, o Secos & Molhados não só conseguiu a façanha de ser a
primeira atração nacional a lotar o Maracanãzinho (20 mil pessoas foram
assisti-los e eles ainda deixaram outras milhares de pessoas do lado de fora!),
como teve a sua apresentação transmitida pela Rede Globo para todo o Brasil.
Tal acontecimento rendeu em uma das noites mais importantes da História da
Música Popular Brasileira e foi fundamental para que o grupo seguisse rumo a
uma turnê de duas semanas pelo México, tempos depois. Em 1980, foi lançado o LP
Secos & Molhados Ao vivo no Maracanãzinho, com supervisão de Gerson
Conrad e com os melhores momentos daquele show. Este trabalho nunca foi lançado
oficialmente em CD por não possuir uma boa qualidade técnica e problemas de
som.
Brigas e
farpas à parte, a carreira do Secos & Molhados marca um dos momentos mais
importantes da música popular brasileira. Seus discos e suas apresentações ao
vivo renderam legiões de fãs e admiradores até os dias de hoje. Falar sobre a
magia em torno do Secos & Molhados não é apenas se referir à trajetória de
nossas artes, mas é também recorrer à memória coletiva de muitos brasileiros.
Acessem:
A fonte original deste texto, retirada do site oficial de Ney Matogrosso
- http://www2.uol.com.br/neymatogrosso/show01_t01.html
O link de minha Dissertação de Mestrado, O Doce & O Amargo do Secos
& Molhados, defendida a ferro e fogo por mim, em 2007 - http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2009-07-27T143936Z-2143/Publico/Vinicius%20Silva-Dissert.pdf
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