O REINO SAGRADO DE MARIA BETHÂNIA
“Há canções e há momentos
Eu não sei como explicar
Em que a voz é um instrumento
Que eu não posso controlar
Ela vai ao infinito
Ela amarra todos nós
E é um só sentimento
Na plateia e na voz”
(“Canções & Momentos”, de Milton Nascimento,
composta especialmente para a voz de Maria Bethânia)
Quando Deus e os orixás pensaram nas constelações de estrelas cantantes
que iriam arrebatar os palcos do Brasil, eles devem ter tido um trabalho
gigantesco para elaborar uma Estrela (sim, com "e" maiúsculo!) do
quilate da moça que assina como Maria Bethânia Viana Telles Velloso - para nós
apenas Maria Bethânia, para outros Berré, para alguns Mary Beth, para quase
todos: Diva! Eu precisei de mais de dois anos de atividades como blogueiro
semi-profissional (uma palavra mais gentil para qualificar o meu amadorismo)
para poder anotar algumas coisinhas sobre esta Senhora. Não porque palavras me
faltam, pois já escrevi sobre Ela em outras ocasiões, mas principalmente porque
me faltava a devida vontade e ânimo para escrever sobre uma das cantorias mais
admiradas deste país.
Minha relação com a arte de Maria Bethânia começou, por mero acaso,
quando ainda era um jovem rapaz que vivia no apartamento de dois quartos dos
meus país na Ilha do Governador. Devia ter uns 13 ou 14 anos quando descobri na
estante que pertencia ao Sr. Orlando e D. Elizabeth uma versão em LP de Mel, álbum que deu a irmã de Caetano
Veloso o apelido de Abelha Rainha graças à popularidade da caribenha faixa-título,
assinada por Caetano e Waly Salomão: "Ó abelha rainha / Faz de mim / Um
instrumento de teu prazer / Sim, e de tua glória, de tua glória...". Na
capa do disco, uma dedicatória de meus tios paternos Silvio e Dagmar aos meus
pais datada de 1979, ano em que meus pais decidiram oficializar sua caminhada
de tantos anos juntos um do outro. Ao descobrir aquele vinil, colocar aquela
agulha para riscar os sulcos pretos e ouvir a voz de Bethânia saudar as
soberanas dos apiários ao som de um slide de guitarra caribenha, descobri
inconscientemente uma maneira de me reconectar com fatos da minha história
que se deram antes de eu nascer.
Por outro lado, pouco depois que descobri aquele LP na casa dos meus
pais, outro vinil de Maria Bethânia chegava na casa da irmã do Sr. Orlando. Só
que este iria atingir minha sensibilidade de tal maneira que eu nunca mais iria
me recuperar daquele impacto. Era o final de 1993 e Bethânia estava lançando um
dos trabalhos mais importantes de sua carreira: As Canções que Você Fez Pra Mim, totalmente baseado em canções
escritas por Roberto Carlos e Erasmo Carlos. O tratamento classe A que ela deu
às canções de Roberto e Erasmo, ao lado de suas interpretações apaixonadas do
cancioneiro do Rei não poderia ter resultado em outra coisa a não ser sucesso.
Naquela época, ainda poderíamos ouvir trechos de "Fera Ferida" na
abertura de uma novela da Globo, de mesmo nome. Enfim, era o auge de uma
artista da MPB que vendia milhares de cópias de seus discos em tempos nos quais
música sertaneja de péssimo gosto era o que dava o tom nas rádios da época, por
exemplo. A partir daquele acontecimento, decidi ficar de olhos bem abertos para
os passos musicais que a irmã de Caetano Veloso estava dando desde então.
Mel abriu as portas para a descoberta dos discos antológicos que Bethânia
gravou nos anos 1970. Aqueles clássicos foram uma enorme revelação musical para
mim: aqueles arranjos requintados e primorosos (capitaneados, em grande parte,
por Perinho Albuquerque, produtor dos baianos) revelavam uma cantora que não
possuía uma técnica de canto tão profissional (tenho um problema meio sério com
as respirações de Mary Beth em vários daqueles discos), mas apontavam uma
artista que exercia o seu ofício com a paixão e a intensidade pouco vista em
muitas colegas de MPB. Rosa dos Ventos:
um show encantado (1971), apesar de ser um disco que não chega a reproduzir
a metade do impacto das canções do espetáculo, redefiniu os conceitos da
relação da cantora com o showbiz ao misturar poesia e música no palco através de
intensa dramaticidade. A tua presença...
(1970), Drama: Anjo Exterminado (1972), Pássaro Proibido (1976), Pássaro
da Manhã (1977) e o indefectível Álibi
(1978) foram os discos de estúdio que fizeram de Maria Bethânia uma das
mulheres que mais venderam discos neste país. Os álbuns ao vivo Drama, 3.° Ato: Luz da Noite (1973) e A Cena
Muda (1974) são retratos sonoros
belíssimos da fúria passional que tomava conta da irmã mais nova de Caetano
Veloso quando ela subia no palco. A parceria da artista com Chico Buarque em
uma mítica temporada no Rio de Janeiro e a sua participação no grupo Os Doces
Bárbaros, somadas à sua extensa discografia - concebida desde a década de 1960
- lhe renderam uma legião considerável de fãs ardorosos, enquanto sua fama de
geniosa, temperamental e indomável reproduzia em vida a postura intensa que se
via no palco.
Confesso publicamente que pertenci a esta legião de fãs devotos de Maria
Bethânia por algum tempo, por sempre achar que ela fosse o tipo de artista que
melhor traduzia minhas paixões, meus sentimentos e minha maneira de ver o
mundo. Fiz alguns amigos bem queridos graças ao "elo bethânico" que
nos reunia e arranjei brigas das mais variadas e surreais pela Internet afora
no embate Elis X Bethânia (uma atualização da guerra Emilinha X Marlene para os
anos mais recentes). No entanto, quando comecei a ler nas entrelinhas que havia
uma diferença entre a pessoa e a artista - algo natural em qualquer um que se
aventura pelos palcos do planeta -, meu endeusamento por Mary Beth se tornou
limitado a quase zero.
Havia (e ainda há) uma série de coisas que me incomoda(va) em relação às
escolhas artísticas de Maria Bethânia: 1) Seus espetáculos, perfeitamente
adequados para teatros, sempre são realizados em casas de shows no eixo RJ-SP
por preços astronômicos e que não valem a qualidade do que se vê: não digo isso
porque os eventos de Bethânia são ruins, mas não dá pra dizer que um show no
qual você tenta ouvir um texto de Pessoa ou Lispector com um garçom passando na
sua frente ou com pessoas tilintando copos e garrafas de cerveja na mesa do
lado foi um acontecimento maravilhoso (a artista deveria se preocupar com a
qualidade do espetáculo que é visto pelos seus fãs ao escolher o seu local de
trabalho!); 2) A falta de renovação de repertório em seus shows é algo que
cansa os desejosos por novidades: ouvir "Explode Coração",
"Negue", "O que é, o que é?" ou "Pedrinha de
Aruanda" com os mesmos arranjos é algo que já me cansou há algum tempo; 3)
Sua postura levemente arrogante, enquanto artista, é outra coisa que me irrita
profundamente: sua (quase) obsessão que é cantora e não intérprete, colocando a
segunda categoria como algo mais importante do que a primeira é descaradamente
pretensioso. Os "pitis" (chiliques, ataques de pelanca, barracos, rebus)
ocorridos em entrevistas e shows são até cômicos para nós, os
"Senhores" que assistem os seus espetáculos, mas não devem ser nem um
pouco engraçados para quem faz parte da Entourage da Diva. Isso sem mencionar
em detalhes as patadas públicas dirigidas à Gal Costa, algumas dignas de
vergonha alheia.
2015 marca o quinquagésimo aniversário de um dos acontecimentos
culturais mais importantes do século XX no Brasil: a substituição de Nara Leão
por Maria Bethânia no elenco do musical engajado Opinião, no qual a cena era
dividida com João do Vale e Zé Kéti. Na ocasião da passagem por Sampa de um
show comemorativo de 50 anos deste fato, Abraçar e Agradecer, decidi que aquele
era o momento certo para refazer minhas pazes com Mary Beth e fui vê-la no palco
depois de quase dez anos. Sua beleza, sua intensidade e seu talento continuam
irretocáveis com o passar do tempo. As "manias" foram perdoadas por
mim diante de um show tão belo. A admiração pela artista continua e continuará
até onde eu deixar de me entender como um ser humano. No entanto, compreendi
que não existe artista que domine tão bem a potencialidade cênica de um show de
música brasileira como Bethânia. O palco é o local onde ela pousa soberana, seu
reino musical sagrado, seu espaço pleno da apoteose de seu dom.
O reino de Maria Bethânia é tão intrigante quanto o de Hamlet: apesar de
sabermos que há algo destoante da beleza que existe por detrás, não podemos
dizer que ele é belo e deixa de nos encantar. Que ela, ao contrário do herói
trágico de William Shakespeare, consiga nos encantar por muitos anos, trazendo
o que existe de melhor em sua profissão.