22 de agosto de 2015

TROVA # 54

O REINO SAGRADO DE MARIA BETHÂNIA


Há canções e há momentos
Eu não sei como explicar
Em que a voz é um instrumento
Que eu não posso controlar
Ela vai ao infinito
Ela amarra todos nós
E é um só sentimento
Na plateia e na voz
(“Canções & Momentos”, de Milton Nascimento,
composta especialmente para a voz de Maria Bethânia)


Quando Deus e os orixás pensaram nas constelações de estrelas cantantes que iriam arrebatar os palcos do Brasil, eles devem ter tido um trabalho gigantesco para elaborar uma Estrela (sim, com "e" maiúsculo!) do quilate da moça que assina como Maria Bethânia Viana Telles Velloso - para nós apenas Maria Bethânia, para outros Berré, para alguns Mary Beth, para quase todos: Diva! Eu precisei de mais de dois anos de atividades como blogueiro semi-profissional (uma palavra mais gentil para qualificar o meu amadorismo) para poder anotar algumas coisinhas sobre esta Senhora. Não porque palavras me faltam, pois já escrevi sobre Ela em outras ocasiões, mas principalmente porque me faltava a devida vontade e ânimo para escrever sobre uma das cantorias mais admiradas deste país.


Minha relação com a arte de Maria Bethânia começou, por mero acaso, quando ainda era um jovem rapaz que vivia no apartamento de dois quartos dos meus país na Ilha do Governador. Devia ter uns 13 ou 14 anos quando descobri na estante que pertencia ao Sr. Orlando e D. Elizabeth uma versão em LP de Mel, álbum que deu a irmã de Caetano Veloso o apelido de Abelha Rainha graças à popularidade da caribenha faixa-título, assinada por Caetano e Waly Salomão: "Ó abelha rainha / Faz de mim / Um instrumento de teu prazer / Sim, e de tua glória, de tua glória...". Na capa do disco, uma dedicatória de meus tios paternos Silvio e Dagmar aos meus pais datada de 1979, ano em que meus pais decidiram oficializar sua caminhada de tantos anos juntos um do outro. Ao descobrir aquele vinil, colocar aquela agulha para riscar os sulcos pretos e ouvir a voz de Bethânia saudar as soberanas dos apiários ao som de um slide de guitarra caribenha, descobri inconscientemente uma maneira de me reconectar com fatos da minha história que se deram antes de eu nascer.


Por outro lado, pouco depois que descobri aquele LP na casa dos meus pais, outro vinil de Maria Bethânia chegava na casa da irmã do Sr. Orlando. Só que este iria atingir minha sensibilidade de tal maneira que eu nunca mais iria me recuperar daquele impacto. Era o final de 1993 e Bethânia estava lançando um dos trabalhos mais importantes de sua carreira: As Canções que Você Fez Pra Mim, totalmente baseado em canções escritas por Roberto Carlos e Erasmo Carlos. O tratamento classe A que ela deu às canções de Roberto e Erasmo, ao lado de suas interpretações apaixonadas do cancioneiro do Rei não poderia ter resultado em outra coisa a não ser sucesso. Naquela época, ainda poderíamos ouvir trechos de "Fera Ferida" na abertura de uma novela da Globo, de mesmo nome. Enfim, era o auge de uma artista da MPB que vendia milhares de cópias de seus discos em tempos nos quais música sertaneja de péssimo gosto era o que dava o tom nas rádios da época, por exemplo. A partir daquele acontecimento, decidi ficar de olhos bem abertos para os passos musicais que a irmã de Caetano Veloso estava dando desde então.


Mel abriu as portas para a descoberta dos discos antológicos que Bethânia gravou nos anos 1970. Aqueles clássicos foram uma enorme revelação musical para mim: aqueles arranjos requintados e primorosos (capitaneados, em grande parte, por Perinho Albuquerque, produtor dos baianos) revelavam uma cantora que não possuía uma técnica de canto tão profissional (tenho um problema meio sério com as respirações de Mary Beth em vários daqueles discos), mas apontavam uma artista que exercia o seu ofício com a paixão e a intensidade pouco vista em muitas colegas de MPB. Rosa dos Ventos: um show encantado (1971), apesar de ser um disco que não chega a reproduzir a metade do impacto das canções do espetáculo, redefiniu os conceitos da relação da cantora com o showbiz ao misturar poesia e música no palco através de intensa dramaticidade. A tua presença... (1970), Drama: Anjo Exterminado (1972), Pássaro Proibido (1976), Pássaro da Manhã (1977) e o indefectível Álibi (1978) foram os discos de estúdio que fizeram de Maria Bethânia uma das mulheres que mais venderam discos neste país. Os álbuns ao vivo Drama, 3.° Ato: Luz da Noite (1973) e A Cena Muda (1974) são retratos sonoros belíssimos da fúria passional que tomava conta da irmã mais nova de Caetano Veloso quando ela subia no palco. A parceria da artista com Chico Buarque em uma mítica temporada no Rio de Janeiro e a sua participação no grupo Os Doces Bárbaros, somadas à sua extensa discografia - concebida desde a década de 1960 - lhe renderam uma legião considerável de fãs ardorosos, enquanto sua fama de geniosa, temperamental e indomável reproduzia em vida a postura intensa que se via no palco.


Confesso publicamente que pertenci a esta legião de fãs devotos de Maria Bethânia por algum tempo, por sempre achar que ela fosse o tipo de artista que melhor traduzia minhas paixões, meus sentimentos e minha maneira de ver o mundo. Fiz alguns amigos bem queridos graças ao "elo bethânico" que nos reunia e arranjei brigas das mais variadas e surreais pela Internet afora no embate Elis X Bethânia (uma atualização da guerra Emilinha X Marlene para os anos mais recentes). No entanto, quando comecei a ler nas entrelinhas que havia uma diferença entre a pessoa e a artista - algo natural em qualquer um que se aventura pelos palcos do planeta -, meu endeusamento por Mary Beth se tornou limitado a quase zero.


Havia (e ainda há) uma série de coisas que me incomoda(va) em relação às escolhas artísticas de Maria Bethânia: 1) Seus espetáculos, perfeitamente adequados para teatros, sempre são realizados em casas de shows no eixo RJ-SP por preços astronômicos e que não valem a qualidade do que se vê: não digo isso porque os eventos de Bethânia são ruins, mas não dá pra dizer que um show no qual você tenta ouvir um texto de Pessoa ou Lispector com um garçom passando na sua frente ou com pessoas tilintando copos e garrafas de cerveja na mesa do lado foi um acontecimento maravilhoso (a artista deveria se preocupar com a qualidade do espetáculo que é visto pelos seus fãs ao escolher o seu local de trabalho!); 2) A falta de renovação de repertório em seus shows é algo que cansa os desejosos por novidades: ouvir "Explode Coração", "Negue", "O que é, o que é?" ou "Pedrinha de Aruanda" com os mesmos arranjos é algo que já me cansou há algum tempo; 3) Sua postura levemente arrogante, enquanto artista, é outra coisa que me irrita profundamente: sua (quase) obsessão que é cantora e não intérprete, colocando a segunda categoria como algo mais importante do que a primeira é descaradamente pretensioso. Os "pitis" (chiliques, ataques de pelanca, barracos, rebus) ocorridos em entrevistas e shows são até cômicos para nós, os "Senhores" que assistem os seus espetáculos, mas não devem ser nem um pouco engraçados para quem faz parte da Entourage da Diva. Isso sem mencionar em detalhes as patadas públicas dirigidas à Gal Costa, algumas dignas de vergonha alheia.



2015 marca o quinquagésimo aniversário de um dos acontecimentos culturais mais importantes do século XX no Brasil: a substituição de Nara Leão por Maria Bethânia no elenco do musical engajado Opinião, no qual a cena era dividida com João do Vale e Zé Kéti. Na ocasião da passagem por Sampa de um show comemorativo de 50 anos deste fato, Abraçar e Agradecer, decidi que aquele era o momento certo para refazer minhas pazes com Mary Beth e fui vê-la no palco depois de quase dez anos. Sua beleza, sua intensidade e seu talento continuam irretocáveis com o passar do tempo. As "manias" foram perdoadas por mim diante de um show tão belo. A admiração pela artista continua e continuará até onde eu deixar de me entender como um ser humano. No entanto, compreendi que não existe artista que domine tão bem a potencialidade cênica de um show de música brasileira como Bethânia. O palco é o local onde ela pousa soberana, seu reino musical sagrado, seu espaço pleno da apoteose de seu dom.




O reino de Maria Bethânia é tão intrigante quanto o de Hamlet: apesar de sabermos que há algo destoante da beleza que existe por detrás, não podemos dizer que ele é belo e deixa de nos encantar. Que ela, ao contrário do herói trágico de William Shakespeare, consiga nos encantar por muitos anos, trazendo o que existe de melhor em sua profissão.