8 de outubro de 2017

TROVA # 139

A DEUSA DE CRISTAL & O ANJO DE FOGO
(uma semana com Ná Ozzetti e Alceu Valença)


         Não tenho tido muita disposição para comparecer a shows ultimamente. Quando penso na distância a percorrer até o local dos eventos, na falta de conforto dos locais e outras chatices mais, fico com a lembrança de que o sofá e a cama são os locais mais confortáveis durante qualquer final de semana. Todavia, há alguns artistas que me fazem burlar a chatice e deixar a preguiça de lado e sair de casa para vivenciar o evento in loco.

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         Ná Ozzetti é uma dessas figuras. Desde o momento em que me mudei para a Terra da Garoa, no início de 2006, eu me sentia envergonhado por não conhecer a musicalidade da chamada “Vanguarda Paulistana”. Comecei a ouvir Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Grupo Rumo, José Miguel Wisnik e outros para tentar entender um pouco mais sobre a música com gosto de concreto que se produzia na cidade que passei a chamar de minha. Não levei muito tempo para descobrir que os talentos da moça que possui o nome de batismo Maria Cristina Ozzetti são os que me encantaram desde o início da minha história de amor com São Paulo.


         Assisti Ná cantando pela primeira vez em um show de Luiz Tatit. Ao interpretar “Minta” (Luiz Tatit & Ricardo Breim) acompanhada apenas pelo piano de Marcelo Jeneci, fiquei petrificado na plateia do SESC Vila Mariana: aquela voz não era uma voz qualquer, era um canto límpido, cristalino, quase lírico, um instrumento musical raríssimo. Ficou lógico e evidente que Lady Ozzetti era a voz mais bonita que São Paulo ofertou ao universo.


         Tempos depois, vi em um cartão desses que uso como marcador de livros de que Ná Ozzetti faria um espetáculo exclusivamente com canções do repertório de Carmen Miranda. Creio que Balangandãs deve ter sido um dos shows que eu mais assisti nestes meus 30 e poucos de retinas não tão fatigadas assim. Ná, em um vestido preto e pulseiras de continhas coloridas, interpretava o repertório da Pequena Notável com toda a brejeirice, a malícia e a doçura que a Brazilian Bombshell ofertou em cada nota que cantou pelos quatro cantos do mundo.


O que mais me cantava é o fato de Lady Ozzetti, uma cantora que já gravou canções profundamente “cerebrais” (seja as do Grupo Rumo, seja as canções de Dante Ozzetti, Tatit, Wisnik ou Itamar) nunca ter cedido a quaisquer pressões de um mercado fonográfico perverso e ser dona de uma discografia muito elegante e independente de qualquer tendência mercadológica. Um feito que pouquíssimas cantoras deste país podem se orgulhar...


Fui assistir Ná Ozzetti em um show que ela dividia com José Miguel Wisnik no início de outubro de 2017 no Teatro do SESC Belenzinho. Apesar de não ter ficado tão animado com a voz e algumas canções de Zé Miguel, eu fiquei ainda mais encantado com a voz de Lady Ozzetti, que conseguia tirar as notas mais insólitas e as interpretações mais belas daquele cancioneiro que, em alguns momentos, me parecia intransponível para os meus ouvidos. Por essas e muitas outras que eu vejo a figura frágil de Ná como a de uma Deusa de Cristal, de cordas vocais perfeitas.


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         Alceu Valença é outra dessas criaturas. Ele já me fez sair do conforto absoluto do meu lar em pleno Sábado de Carnaval só para sair atrás de seu trio elétrico, o Bicho Maluco Beleza. Outra vez, quebrei minha rotina semanal de trabalho só para assistir um show seu de voz e violão na primeira fila de um Teatro Bradesco meio vazio – privilégio de poucos, devo confessar. Passei uma noite inesquecível ao lado de amigos ao som do show comemorativo de 20 anos de O Grande Encontro, espetáculo no qual Alceu dividia o palco com seus comparsas Elba Ramalho e Geraldo Azevedo. Suas canções fazem parte de meu imaginário desde o momento em que me entendo como ouvinte de música brasileira.



         Se existe alguém que transborda a alegria de estar no palco, este ser humano atende pelo nome de Alceu Valença. Sua comunicação e a interação com o público são de uma perfeição sem tamanho: os espectadores, em plena catarse, cantam, pulam, dançam, fazem os movimentos que ele pede. Todo local do espetáculo de Alceu se transforma em uma miniatura das ruas do Carnaval de Recife, para a felicidade geral de toda a massa que possui um ingresso nas mãos.


         A noite de 6 de outubro de 2017 não prometia muito em termos de qualquer coisa: tinha tido uma semana de trabalho extremamente cansativa e estava numa indisposição que parecia não ter fim. No entanto, os ingressos comprados para uma apresentação de Alceu na Casa Natura Musical, 20 minutos de onde moro, me tiraram de casa quase que na base do fórceps.


Ao fazer novas amizades na boca do palco minutos antes do show, tive a certeza de que aquela noite seria mais uma daquelas para serem guardadas no lado esquerdo do peito. Em Anjo de Fogo, Alceu Valença passeou não apenas pelo que existe de melhor nos ritmos nordestinos, como também trouxe as pérolas mais bonitas de seu cancioneiro. A Belle de Jour se encontra com Morena Tropicana em meio à Solidão da lua cheia Como Dois Animais. Um Cavalo de Pau faz a Anunciação das paixões que vêm de dentro para fora do palco e se transformam no que existe de mais belo em matéria de canção. Tudo isso e mais um pouco ocorre no palco de Alceu, para sua consagração e para a realização do público.



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Os contatos imediatos com a Deusa de Cristal e com o Anjo de Fogo são flechadas certeiras para que os nervos de aço deste que vos escreve se recuperem de um cotidiano de sala de aula e continue a buscar inspiração para ter o que dizer na página em branco do computador. Se os médicos pudessem recomendar música como antídoto para os males do dia-a-dia, deveriam escolher os trabalhos de Ná Ozzetti e Alceu Valença para seus pacientes. Se os ouvidos dos doentes não forem moucos, a cura virá como consequência.