9 de julho de 2017

TROVA # 128

DIVINAS, DIVAS & REVOLUCIONÁRIAS
(Por que todo mundo deveria assistir o documentário Divinas Divas, de Leandra Leal?)




"Cansado de tanto amar
Eu quis um dia criar
Na minha imaginação
Uma mulher diferente
De olhar e voz envolvente
Que atingisse a perfeição"
(Nelson Gonçalves)


"Tá pensando que travesti é bagunça?"
(Luana Muniz)


"Eu sou a travesti da família brasileira."
(Rogéria)


O dicionário nos diz que as criaturas divinas são aquelas relativas ou fruto de um ou mais deuses. Se estamos diante de uma diva, estamos diante de uma deusa, uma divindade feminina. Em sua primeira incursão como diretora o cinema, Leandra Leal não só nos conta como e porque se tornou atriz, como nos provou que divinas divas existem então estão muito longe do alcance de cada brasileiro que não foi agraciado com as forças dos deuses (ou deusas).




Divinas Divas conta a história de sucesso e lutas de oito travestis – Rogéria, Jane di Castro, Divina Valéria, Brigitte de Búzios, Eloína dos Leopardos, Camille K, Fujikka de Halliday e Marquesa – a partir da ótica de uma menina que foi criada nas coxias do lendário Teatro Rival e que se tornou atriz e gestora de um dos centros culturais mais importantes do Rio de Janeiro. As Ladies do filme começaram sua carreira no palco do mesmo Rival que um dia pertenceu a Américo Leal (avô de Leandra), numa época em que travesti, segundo a heteronormatividade, era sinônimo de bagunça, anormalidade e imoralidade para o senso comum.




O filme de Leandra faz um retrato comovente das oito Divas, sem pieguice, com emoção e muito humor, mostrando o lado humano, o lado artístico e as lutas que cada uma delas tiveram de enfrentar para poderem ser transexuais em um país profundamente hipócrita e conservador como o Brasil. Através da película e dos depoimentos das artistas, de seus parentes e da voz da diretora em off, temos a compreensão de que ser travesti não é tão sujo, bizarro ou anormal quanto nos ensinaram nos lares de antigamente. Além disso, Divinas Divas deixa claríssimo para cada um dos espectadores de que questões de gênero precisam ser discutidas não apenas nas escolas, como em todas as esferas do espaço público urgentemente. Afinal de contas, a expectativa de vida da população transexual não passa da média de 35 anos de idade e as histórias destas lendas da noite vão muito além de meros desejos de libertação: são vitórias de oito criaturas que furaram o cerco da caretice e puderam fazer um balanço de suas vidas.




Enquanto assistia Divinas Divas, um outro filme foi se fazendo na minha cabeça, lá nos recantos escuros, quase perdidos da memória. Voltei ao início da década de 2000, quando ainda era um jovem morador do subúrbio do Rio de Janeiro e assisti pela primeira vez um show de travestis no Posto 4 do calçadão da Praia de Copacabana. Em um espetáculo improvisado, duas Ladies imitavam Gal Costa e Maria Bethânia cantando "Sonho Meu", de Dona Ivone Lara, para aplausos dos presentes e com direito a entrevistas ao final do número. Lógico, com direito ao humor camp bem típico de eventos deste tipo. Aquela noite de domingo marcou o início da minha saída de uma redoma careta e tacanha na qual fui educado.



Logo depois, surgiu outra memória, esta da infância: me lembrei da primeiríssima vez em que eu vi Rogéria na TV. Foi lá pelos idos de 1989/1990, enquanto assistíamos Tieta todas as noites no horário nobre da TV Globo. O soco que Ninette/Waldemar desfere na cara do personagem de Roberto Bonfim era muito mais do que uma resposta de uma travesti na cara de um machão babaca: era um golpe dado na face obscura do preconceito. Graças a uma alma bastante caridosa, a cena da novela a qual me refiro está no YouTube para que todos possamos nos lembrar de um dos momentos mais interessantes de nossa teledramaturgia.


As Ladies do filme são um exemplo de entretenimento que pouco se pratica hoje em dia. Ao interpretar o repertório de Divas do passado como Emilinha, Marlene, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Maria Callas, Billie Holiday, Edith Piaf, Dalida, Barbra Streisand, Liza Minnelli ou Diana Ross as rainhas do rádio, dos palcos e do cinema adquiriam uma dimensão espetacular, de celebração da beleza e do glamour de ser uma alma feminina dentro de um corpo masculino. Ao pisarem naquele espaço sagrado que é a ribalta, Rogéria, Jane, Valéria, Brigitte, Eloína, Camille, Fuiikka e Marquesa tinham consciência não apenas disso, como também não deixavam de satirizar sua condição com muito luxo e bom humor.



As quase duas horas de Divinas Divas passam por nós como o brilho intenso de um cometa. As Ladies não só nos dão uma lição de vida gigantesca, como nos mostram o quanto a vida pode ser boa se você encontra um caminho marcado pela integridade e a coerência com a sua identidade, com quem você é. Uma aula de tolerância e diversidade que deveria ocupar o horário nobre da TV aberta não apenas para que as pessoas deixem a caretice e o preconceito de lado, como também possam conhecer o talento indiscutível de oito grandes artistas.