12 de dezembro de 2016

TROVA # 102

FORTALEZAS FEMININAS


Dizem que a mulher é o sexo frágil
Mas que mentira absurda
(Erasmo Carlos, 1981)


O mundo do cinema foi abalado recentemente por uma revelação bombástica do cineasta italiano Bernardo Bertolucci: a atriz Maria Schneider, que tinha estrelado o filme cult O Último Tango em Paris ao lado de Marlon Brando, tinha sido estuprada por seu colega de elenco graças a uma orientação do diretor. A suposta verdade que Schneider transmitia ao ser violada por um Brando com as mãos lambuzadas de manteiga era uma dor verdadeira e fruto de uma indignação sem tamanho com Marlon e, principalmente, com Bertolucci.

Marlon Brando & Maria Schneider

A confissão do crime do cineasta italiano não só abalou Hollywood, como também deixou o mundo do cinema em polvorosa. Maria Schneider jamais se recuperou do trauma e se tornou em uma viciada em drogas, com vários episódios de crises depressivas e de overdoses. Entretanto, Maria fez de sua dor e de sua depressão estandartes para que ela se tornasse uma verdadeira defensora ferrenha dos direitos das mulheres no meio cinematográfico.


A história de Maria Schneider é mais um capítulo dramático do quanto a repressão do universo machista, misógino e cruel pode fazer mal para muitas mulheres. No entanto, ela não foi a única que fez de sua dor e sofrimento um instrumento de contestação e resistência contra aqueles que sempre ditaram as regras do jogo. Exemplos de fortalezas femininas que se levantaram contra o ódio sexista devem ser lembrados e homenageados sempre que possível. Eu, como um aberto defensor do feminismo e esperançoso na necessidade de equiparação entre homens e mulheres, também me aproprio da luta destas guerreiras e aproveito para reverenciar algumas delas...




Virginia Woolf ao lado de seu pai, Sir Leslie Stephen

Uma das fortalezas femininas que sempre renderam minha admiração é a escritora inglesa Virginia Woolf. Terceira filha do casal Leslie e Julia Stephen e casada com o editor Leonard Woolf, Virginia sofreu horrores por ter sido estuprada por um de seus meios-irmãos, pela perda precoce da mãe e por nunca ter ido à Universidade – “privilégio” concedido aos homens da família Stephen.

Leonard Woolf & Virginia Woolf
Virginia aproveitou a impossibilidade de ir à Cambridge e passava horas e horas estudando na extensa biblioteca do Pai, um grande intelectual da Inglaterra Vitoriana. Não foi apenas uma das maiores revolucionárias da Literatura do século XX, como também se projetou como uma das intelectuais mais importantes de todos os tempos. A Room of One’s Own (1929) é um de seus ensaios mais importantes e é uma das bíblias do feminismo.

Rita Lee e o primeiro filho, Beto Lee, em 1977

Uma das passagens mais comoventes do livro de memórias de Rita Lee é justamente o momento no qual ela nos conta sobre um aborto realizado em 1977. Ritz nos deixa claro que não era nenhuma alegria ter que realizar um procedimento daquele porte. No caso da Rainha do Rock Brasileiro, era uma decisão necessária, pois ela tinha acabado de sair de uma gravidez de altíssimo risco e de uma passagem pela cadeia.
Aposto que o episódio será mais um argumento para que as camadas mais conservadoras da sociedade brasileira se mobilizem contra a legalização do aborto com a desculpa esfarrapada do histórico de porralouquices de Rita Lee, ignorando toda as questões relacionadas à cultura do estupro, que sempre permeou nossa vida social. Rita não hesitaria em dar de ombros para os conservadores e mostrar-lhes a bunda; afinal de contas, o pioneirismo maior da velha “Ovelha Negra” foi de subverter as regras masculinas ao fazer Rock em um país no qual os machos eram aqueles que empunhavam guitarras em riste e encaravam o microfone diante de plateias imensas.

Maria Bethânia, Doutora Maricotinha ou Doutora Honoris Causa pela UFBA

Um dos fatos mais surpreendentes do ano de 2016 aqui no Brasil foi a escolha da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em conceder o título de Doutora Honoris Causa à Maria Bethânia pelo conjunto da obra. Dona de uma carreira musical de mais de cinco décadas, Bethânia foi pioneira em integrar música, poesia e dramaticidade em seus trabalhos musicais. E uma das primeiras artistas da canção popular em receber tamanha honraria. Doutora Maricotinha, emocionada, fez um belo discurso no momento da entrega do título e passou a ocupar um lugar em uma galeria geralmente dominada por homens.
Outra pioneira que merece não apenas o meu aplauso, como também minha gigantesca admiração, é Patricia Lee Smith, mais conhecida entre nós como Patti Smith. Matriarca do Punk, poetisa intensa, prosadora inteligentíssima, uma mulher de um histórico de vida extraordinária. Mostrou para o mundo que as mulheres que fazem Rock’n’Roll não precisam ser belas, maquiadas e repletas de glamour. A beleza não é fruto de sua maquiagem ou do seu penteado, e sim resultado de sua inteligência.


Patti gravou 11 discos, publicou 15 livros de poesia e 2 excelentes livros de memórias. Seu disco de estreia, Horses (1975), é uma verdadeira aula de poesia, rebeldia e Rock ‘n’ Roll. Influenciou vários músicos de sua geração e de outras que surgiram. Seus livros de prosa receberam vários prêmios literários e foram aclamados pela crítica especializada. Não me surpreendi quando ela foi escolhida por Bob Dylan para receber o Prêmio Nobel de Literatura em seu nome e cantar um de seus clássicos diante de um teatro lotado. Nervosa, Patti Smith errou a letra duas vezes e pediu desculpas para os presentes e nos ofertou com uma das interpretações mais belas em décadas de atividades.


Patti durante a cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de 2016

O Pop também nos revelou a maior fortaleza feminina do mundo da música. Madonna está no mundo musical há mais de três décadas, sempre se reinventando em termos de imagem e som. Aclamada pelos fãs, odiada por setores da crítica musical e pelos conservadores de plantão e incompreendida por uma vasta parcela da intelectualidade e de seus pares na música, Madge se manteve como referência de qualidade e longevidade.


Ao aceitar o prêmio de Mulher do Ano de 2016 da Revista Billboard, Madonna falou não apenas daqueles que lhe deram inspiração, mas também falou a respeito das limitações sofridas pelo fato de ser uma mulher em universo musical predominantemente masculino: Eu me inspirei, é claro, em Debbie Harry, Chrissie Hynde e Aretha Franklin, mas meu muso verdadeiro era David Bowie. Ele personificava o espírito masculino e feminino e isso me agradava. Ele me fez pensar que não havia regras, mas eu estava errada. Não há regras se você é um garoto. Há regras se você é uma garota. Se você é uma garota, você tem que jogar o jogo. Você tem permissão para ser bonita, fofa e sexy. Mas não pareça muito esperta. Não aja como se você tivesse uma opinião que vá contra o status quo. Você pode ser objetificada pelos homens e pode se vestir como uma prostituta, mas não assuma e se orgulhe da vadia em você. E não, eu repito, não compartilhe suas próprias fantasias sexuais com o mundo. Seja o que homens querem que você seja, e mais importante, seja alguém com quem as mulheres se sintam confortáveis por você estar perto de outros homens. E por fim, não envelheça. Porque envelhecer é um pecado. Você vai ser criticada e humilhada e definitivamente não tocará nas rádios.





Além disto, Madonna fala da importância de estar viva e da necessidade das novas gerações de mulheres de se espelharem em outras pioneiras para continuar seguindo na sua trajetória de fortalezas femininas: “Eu acho que a coisa mais controversa que eu já fiz foi ficar aqui. Michael se foi; Tupac se foi; Prince se foi; Whitney se foi; Amy Winehouse se foi; David Bowie se foi. Mas eu continuo aqui. Eu sou uma das sortudas e todo dia eu agradeço por isso. O que eu gostaria de dizer para todas as mulheres que estão aqui hoje é: mulheres têm sido oprimidas por tanto tempo que elas acreditam no que os homens falam sobre elas. Elas acreditam que elas precisam apoiar um homem. E há alguns homens bons e dignos de serem apoiados, mas não por serem homens, mas porque eles valem a pena. Como mulheres, nós temos que começar a apreciar nosso próprio mérito. Procurem mulheres fortes para que sejam amigas, para que sejam aliadas, para aprender com elas, para as inspirem, apoiem e instruam”.



O discurso de Madonna, infelizmente, faz bastante sentido em um contexto no qual as mulheres são constantemente criticadas e cerceadas pelos homens. Elas recebem salários inferiores do que os dos homens. São, muitas vezes, chefiadas, assediadas e injustiçadas pelo sexo oposto. Por isso, lembrar de algumas referências de fortalezas femininas é algo fundamental para que acreditemos que um dia a igualdade entre os sexos possa ser uma realidade e não mero fruto de nossas imaginações.