ELIS REGINA – ELIS (1972)
O ano
de 1972 foi bastante significativo para a chamada “Música Popular Brasileira”
graças a artistas que lançaram discos essenciais para qualquer um que aprecie o
que há de melhor em matéria de canção brasileira. Elis Regina é uma das
artistas que merecem sem lembradas não apenas pela qualidade de seu trabalho em
1972, mas por todos os serviços prestados pelas artes no Brasil.
No
entanto, Elis não era uma figura tão benquista no início da década de 1970 para
algumas pessoas no Brasil. Muitos entenderam suas declarações contra as
turminhas da Jovem Guarda e da Tropicália como reacionárias e retrógadas. Seu
temperamento explosivo e espalhafatoso lhe rendeu uma aura de diva – fato que
também era realçado pelo seu casamento com Ronaldo Bôscoli, um dos artífices da
Bossa Nova. Sua apresentação no Encontro Cívico Nacional, evento organizado
pelo governo militar em 21 de abril de 1972, regendo um coral de artistas que
entoaram o Hino Nacional Brasileiro foi um amargo passaporte para a galeria de
artistas que “apoiavam o regime”. Anos depois, ficou esclarecido de que a
Pimentinha estava sendo ameaçada pelos militares a fazer a tal apresentação
para que pudesse, enfim, dormir em paz e sem se preocupar com a possibilidade de
ser presa e/ou torturada.
A
esquerda e outros reacionários de plantão não hesitaram em levar Elis Regina
para o limbo dos artistas malditos por supostamente apoiarem o regime militar,
o que exigiu uma resposta imediata da cantora: seu repertório precisava ser
mais jovem, mais engajado, menos sisudo. Para a execução desta missão de honra,
a Philips (gravadora da Pimentinha na época) convocou Roberto Menescal para
produzir o disco e o talentoso pianista César Camargo Mariano para fazer os
arranjos. Elis tratou de operar o restante das mudanças necessárias: separou-se
de Bôscoli (desfazendo a parceria de trabalho com o marido e seu fiel
companheiro, Luiz Carlos Miéle), rompeu seu contrato com a Rede Globo de
Televisão e deu início à sua parceria (musical e amorosa) com César.
Elis, segundo disco de uma série de discos que levavam o primeiro nome
da artista na década de 1970, foi lançado em 1972. A partir deste disco, Elis
Regina sentiu-se finalmente livre para explorar limites nunca antes explorados
até aquele momento em sua carreira: sua interpretação tornou-se mais sóbria e menos
exagerada; seu repertório passou a ser mais ousado, mais diversificado, mais
juvenil, porém sem deixar de reverenciar o que há de melhor na tradição de
monstros sagrados da canção brasileira. Enfim, este é o primeiro disco que
reflete a virada musical da carreira da cantora mais importante do Brasil.
O time
de compositores jovens reunidos por Elis e Roberto Menescal para este álbum é
um verdadeiro escrete de talentos musicais invejáveis: Sueli Costa & Vitor
Martins, João Bosco & Aldir Blanc, Milton Nascimento & Ronaldo Bastos,
Fagner & Belchior, Zé Rodrix & Guarabyra, Chico Buarque & Francis
Hime, Ivan Lins & Ronaldo Monteiro de Souza, Zé Rodrix & Tavito… Além
de uma faixa inédita de Tom Jobim, o repertório deste disco se compõe também de
regravações de dois clássicos da nossa Era do Rádio: “Vida de Bailarina”
(Américo Seixas – Dorival Silva) e “Boa Noite Amor” (José Maria de Abreu –
Francisco Matoso).
Elis Regina ao vivo no Teatro da Praia (RJ) em 1972 |
Veja a tracklist do disco, com uma breve explicação para cada faixa e entenda o
porquê deste trabalho de Elis ser considerado um verdadeiro clássico da música
brasileira:
1) “Vinte
Anos Blue” (3:11) - Parceria da cantora e pianista Sueli Costa com o
letrista Vitor Martins (que se tornaria célebre graças a sua parceria musical
com Ivan Lins anos mais tarde), esta canção é uma balada melancólica que ganha
uma força bastante significativa na voz de Elis, que tinha 27 anos ao gravar
este clássico. O disco abre com a constatação de que a voz que canta já passou
de seus 20 anos de idade e que existe uma série de “perguntas sem respostas”… O
piano de César Camargo Mariano e o arranjo de cordas que surge ao final da
canção conferem a esta gravação uma melancolia típica do Brasil de 1972.
2) “Bala
com Bala” (3:12) - Elis Regina já era conhecida em 1972 como uma verdadeira
caçadora de jovens talentos musicais. Neste disco, não foi diferente ao lançar
uma nova dupla de compositores: o engenheiro, cantor e compositor João Bosco e
seu parceiro, o letrista e psiquiatra Aldir Blanc. “Bala com Bala” é um jazz
arrebatador, pontuado pelo piano elétrico de César e permitindo vários dribles
vocais de Elis, que narra duelos inacabados, batalhas implacáveis e concluindo
(de maneira brilhante!) que “Toda fita em série que se preza, dizem, reza /
Acaba sempre no melhor pedaço”.
3) “Nada
Será Como Antes” (2:45) - Uma das canções mais populares (e políticas) do
disco, esta canção é uma parceria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. As
notícias de pessoas “distantes” devido à ditadura militar, a falta de utopias
no presente e a crença de que o futuro jamais abrigaria as glórias do passado.
Há uma curiosidade em relação à versão de Elis: os versos “Alvoroço em meu
coração / Amanhã ou depois de amanhã / Resistindo na boca da noite um gosto de
sol” foram suprimidos para dar lugar aos versos pessimistas “Sei que nada será
como está / Amanhã ou depois de manhã”. Pergunto-me o porquê de Elis ter feito
esta omissão de trechos da canção de Milton. Seria por esquecimento? Seria por
desconhecimento do original do Clube da Esquina? Seria intencional? Seria para
deixar seu pessimismo bem claro? De qualquer maneira, a interpretação de Elis
Regina de “Nada Será Como Antes” tornou o clássico de Milton menos esperançoso,
o que, em 1972, era necessário para que as pessoas se conscientizassem a
respeito do verdadeiro clima que pairava nos ares deste país.
4) “Mucuripe”
(2:27) - A quarta faixa do disco é uma toada composta por Fagner e Belchior.
Apesar de ter sido gravada por Roberto Carlos e seu antológico disco de 1975,
foi a versão de Elis que ajudou a popularizar os compositores desta canção, que
pouco tempo depois, gravaram seus primeiros LPs. A interpretação de Elis é
contida, porém não deixa de ser dramática e emocionante.
5) “Olhos
Abertos” (2:37) - Rock rural de Zé Rodrix e Gutemberg Guarabyra (dois
integrantes do trio Sá, Rodrix e Guarabyra). Em um mundo dividido entre
comunistas e capitalistas, hippies alienados e militantes engajados, jovens e
velhos, o canto de desejo de Elis Regina pregava união em um momento no qual o
sistema queria que tudo e todos estivessem reduzidos a fragmentos.
6) “Vida
de Bailarina” (2:25) - A sexta faixa do disco é uma regravação de um dos
maiores hits de Ângela Maria. Tributo composto por Américo Seixas e Dorival
Silva (também conhecido como Chocolate), “Vida de Bailarina” foi a primeira
canção escolhida pela jovem Elis Regina para interpretar nas primeiras vezes em
que participou de concursos de calouros da Rádio Farroupilha, de sua Porto
Alegre natal. A versão que foi registrada nos sulcos do vinil revela uma interpretação
discreta de Elis – fugindo a tradição dos cantores da geração de Ângela e Cauby
Peixoto, que cantavam casos e desenlaces amorosos a plenos pulmões, isto é, a
partir de notas altíssimas! –, conduzida pelo dedilhar jazzístico do piano de
César Camargo Mariano, baixo, bateria e um arranjo singelo de cordas.
7) “Águas
de Março” (3:05) - O Lado B se inicia com a esperançosa “Águas de Março”,
uma dos maiores composições de Antônio Carlos Jobim. Lançada originalmente por
Tom em maio de 1972, em um compacto (dividido com João Bosco) encartado no
lendário semanário underground O Pasquim, a canção foi oferecida a Elis logo
depois. A versão de Elis para a canção de Jobim se tornou tão emblemática que
recebeu uma releitura da Pimentinha ao lado do Maestro Soberano dois anos
depois, quando ambos gravaram Elis & Tom em Los Angeles, nos Estados
Unidos.
As referências literárias e musicais,
escolhidas por Tom foram as mais variadas. No entanto, os versos mais
emblemáticos de “Águas de Março” são justamente os que encerram esta belíssima
canção: (“São as águas de março / fechando o verão / É promessa de vida / no
seu coração”). Através da voz de Tom, Elis Regina lançava em sua viagem de
trevas uma (merecida) fagulha de esperança. A temporada de chuvas que fecha o
verão é símbolo de esperança e renovação, apesar das trevas, dos pregos e do
desgosto.
8) “Atrás
da Porta” (2:48) - Obra-prima da parceria entre Chico Buarque e Francis
Hime, “Atrás da Porta” foi escrita sob medida para a voz de Elis Regina. O que
existe de curioso a respeito da história da gravação deste clássico é que Chico
não havia completado apenas a primeira parte da letra desta canção quando Elis
começou a gravá-la. Ao ouvir a fita que continha estes versos gravados, Chico
emocionou-se e escreveu o resto da letra… O que fez de “Atrás da Porta” uma
canção antológica foi o fato de que Elis a interpretou com o conformismo
desesperado de uma mulher que vivia em crise amorosa permanente. Elis conhecia
muito bem este circuito de trevas, pois, aos 27 anos, já tinha vivido vários
amores frustrados (Solano Ribeiro, Ronaldo Bôscoli e, anos mais tarde, o
próprio César Camargo Mariano).
9) “Cais”
(3:17) – Parceria musical de Milton Nascimento & Ronaldo Bastos, é um
acalanto para a mulher abandonada descrita na faixa anterior. A invenção
torna-se a única arma que restava para a viagem a qual Pimentinha trilhava. O
suntuoso arranjo de cordas e o cravo tocado por César Camargo Mariano conferem
um tom épico e dão à interpretação de Elis uma força de um gigante. Milton,
definitivamente, conseguiu em Elis Regina sua intérprete mais singular, mais
completa e mais competente graças a gravações como esta.
10) “Me
Deixa em Paz” (2:10) - A décima canção que faz parte deste disco de Elis é
uma parceria entre Ivan Lins e seu primeiro parceiro musical, o letrista
Ronaldo Monteiro de Souza. “Me Deixa Em Paz”, destaca-se neste pacote não
apenas pelo piano elétrico de César Camargo Mariano, como também pela elegante
interpretação de Elis, que lembra um pouco as canções que interpretava em suas
lendárias temporadas no Beco das Garrafas.
11) “Casa
no Campo” (2:45) - Outro Rock rural de Zé Rodrix, desta vez em parceria com
Tavito. No entanto, a gravação de Elis Regina para “Casa no Campo” é tão
lembrada pela memória afetiva dos brasileiros que torna-se difícil para
qualquer pessoa que faça música neste país gravá-la… A letra da canção descreve
o desejo que todos nós temos em ter uma casa repleta de amigos, animais,
discos, paz, calmaria, esperança… Além disso, Elis desejava uma “esperança de
óculos” e seu “filho de cuca legal” (João Marcello Bôscoli), desejo que todos
nós que temos filhos também compartilhamos…
12) “Boa
Noite, Amor” (2:23) - O Elis 1972 se encerra com um dos
maiores sucessos de Francisco Alves. Composta por José Maria de Abreu e
Francisco Matoso, trata-se de uma belíssima cantiga de ninar para a pessoa
amada entoada por uma voz contida, precisa, porém sem deixar de ser emocionada.
Pimentinha escolheu para finalizar seu disco uma belíssima declaração de amor
para seu novo marido e parceiro musical por nove anos, César Camargo Mariano. A
participação deste músico foi um dos elementos-chave na produção de um dos
álbuns mais marcantes da discografia de Elis Regina.
*
Se você
nunca ouviu este disco de Elis Regina e quer saber o porquê deste trabalho ser
um dos discos mais importantes não só de 1972, mas de toda a história da música
brasileira, não hesite mais de uma vez e ouça-o! Mas, se você sonha com uma
reedição Deluxe Edition, com todos os
ônus e bônus acoplados, aí vai uma boa notícia: a gravadora Trama, de João
Marcello Bôscoli (filho de Elis), está preparando uma bela reedição deste disco
em CD.
De
acordo com o A & R da gravadora, a proposta deste trabalho consiste em
replanificar o som estéreo do álbum, abrindo os quatro canais da gravação
original em fita analógica e mixá-los através das mais altas tecnologias com o
intuito de eliminar os incômodos ruídos do vinil. Para a execução desta mission impossible, foi convocado um dos
melhores engenheiros de som neste país: Luís Paulo Serafim.
No
entanto, se eu pudesse fazer um pedido ao pessoal da Trama, faria apenas um: o
de que a versão de luxo deste Elis tivesse um encarte maior, uma
ficha técnica detalhada e a inclusão da foto de Elis se espreguiçando na bela cadeira de vime, disponível apenas na
versão original em LP: Discos como este fazem com que qualquer um de nós
entenda o porquê do Brasil ainda necessitar ouvir Elis Regina, afinal ela
sempre terá muito a nos dizer…