UMA
BONECA DE NATALIE MERCHANT
Natalie, 1995 |
“Blue like the winter snow in the full moon
Black
like the silhouettes of the trees
Late
blooming flowers lie frozen underneath the stars
I
want you to remember me that way
Far
away... I'll be gone, will you wait for me here
How
long... I don't know, will you wait for me here
Still
as the river grows in December
Silent
and perfect blinding ice
Spring
keeps her promises
No
cold can keep her back
I
want you to remember me that way
Far
away... I'll be gone, will you wait for me here
How
long... I don't know, but wait for me here
Follow...
don't follow me
To
where
To
where I go
Far
away... I'll be gone, will you wait for me here
How
long... I don't know, will you wait for me here
Follow...
don't follow me, to where I have gone
Follow...
don't follow me, to where I have gone
Someday
you'll take my place
And
I'll wait
For
you there”
(Natalie Merchant,
1998)
Meninas que gostam de exercer seu
instinto maternal veem nas bonecas o seu exercício mais perfeito. Pessoas em
busca de um parceiro sexual encontram nas criaturas infláveis uma possibilidade
e tanto para o prazer momentâneo. Apesar de gostar de presentear as meninas da
família com os brinquedos que elas mais desejam, sempre fico com um pouco de
frio na barriga ao olhar para algumas delas.
Uma boneca de Buenos Aires - Foto: Nilton Serra (2011) |
Nunca fui fã de bonecas. Nem quando
era criança e adorava meus brinquedos. Exceto as miniaturas de super-heróis e
coisas do tipo, sempre achei réplicas de seres humanos algo meio assustador,
mórbido até. A ponto de ter calafrios e pesadelos ao entrar dentro do Mercado de
San Telmo, Buenos Aires, ao ver uma boneca de porcelana antiga de porcelana nas
vitrines. A terra de Maradona e Evita quase se transformou em um filme de
terror por alguns minutos se não fosse a minha capacidade de sair correndo dos
lugares em situações de medo.
No
português do Brasil, boneca é sinônimo de menina ou mulher bonita, de travesti
ou homossexual afeminado. A perversidade da língua me dava mais alguns motivos
e tanto para odiar o objeto e o vocábulo. Todavia, o fato de eu ser chamado de
“Tio Vini” com o passar dos anos e o meu amor pela música fizeram com que eu
revisse meus conceitos.
*
Tenho alguns discos que são tão
íntimos, mas tão íntimos que literalmente passaram a fazer parte da minha vida.
Minha relação com Ophelia (1998), o segundo
álbum solo de Natalie Merchant, se tornou bastante intensa e me acompanha desde
o final dos meus 17 anos de idade. Não apenas pelo talento comovente de Natalie
para a música, mas pelo fato de ser um trabalho que versa sobre loucura,
tristeza, abandono, morte e gratidão de uma maneira completamente
anticonvencional de acordo com os padrões da música popular dos Estados Unidos.
Dentre as faixas mais famosas de Ophelia, “Kind & Generous”, “Break
Your Heart” e “Life is Sweet” se tornaram obrigatórias nas apresentações ao
vivo de Natalie Merchant. Lados B como “My Skin” e “Thick as Thieves” não só se
tornaram duas das favoritas do público, como também atestam que a canção
popular pode ser tão complexa ou intrigante quanto qualquer poema publicado em
um livro por aí... No entanto, a canção mais enigmática e sombria do álbum é “Frozen
Charlotte”, faixa pontuada por um solo de guitarra lancinante de Don Peris e
dos vocais de apoio de Karen Peris, do grupo Innocence Mission.
“Frozen Charlotte” (ou Frozen Charlies,
devido ao seu corte de cabelo Joãozinho) era como se chamava uma boneca de
porcelana da era vitoriana consumida nos EUA entre a segunda metade do século
XIX e as duas primeiras décadas do século XX. A origem do nome se deve a um
poema da época, que conta a história de uma menina chamada em Charlotte que se
recusava a se agasalhar para sair para um passeio de trenó. Diante da sua
imprudência, a menina congelou até a morte durante o passeio. A doce bonequinha
seria uma natureza morta para ser consumida pelo público infantil.
A canção de Natalie Merchant, até onde
me parece, versa sobre um único tema: morte. Por isso, o desejo que todo ser
vivo com o mínimo de ego possui é poder ser lembrado para a posteridade, deixar
um legado ou uma boa lembrança nas memórias das pessoas que amou. No caso dos
versos de “Frozen Charlotte”, o gelo possui um poder gigantesco de destruição
ou, por ser sinal do inverno, é sinal de que um ciclo de vida possa estar
chegando ao fim.
Os versos sugerem uma conversa entre
duas pessoas – uma mais velha e uma mais jovem (mãe e filha?). Enquanto a
criança pede para seguir os passos inevitáveis da outra em direção ao abismo
inevitável que todos nós teremos que seguir, a outra suplica para que a infante
prossiga seu caminho e deixe a vida tomar o seu curso natural para que um dia
as duas possam se encontrar no estágio seguinte do fim da existência de cada
um.
*
Em 2017, graças a iniciativa da gravadora
Nonesuch, uma das poucas empresas que ainda valorizam a arte musical nos EUA, Natalie
Merchant reeditou sua discografia e alguns extras. Dentre o material bônus,
Natalie gravou uma nova versão de “Frozen Charlotte” com um belíssimo arranjo
de quinteto de cordas. A gravação original, que nunca tinha chamado tanto a
minha atenção, passou a me dizer algo em matéria de emoção graças à sua segunda
versão.
Através de obra musical extraordinária,
Natalie me ensinou que bonecas podem nos falar muito mais sobre a vida do que
as vãs filosofias de vitrines de brinquedos podem nos ensinar...