AS
VERDADES DE JANIS JOPLIN
(o que o documentário Janis: Little
Girl Blue, de Amy J. Berg, nos revela sobre a pérola negra do Texas)
“Ah, ah, don’t you forget me Lord
Well I don’t think I’m any very special
Kind of person down here, I know better,
But I don’t think you’re gonna find
anybody,
Not anybody who could say that they
tried like I tried,
The worst thing you can say all about me
Is that I’m never satisfied…”
(“Work
Me, Lord”, de Nick Gravenites, eternizada por Janis Joplin em I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!
em 1969)
Para Lilian Severino, que sobreviveu
alegremente a quase duas horas de documentário
O bom das férias de julho para mortais
como eu é poder ter a liberdade de reencontrar velhos e queridos amigos sem
pensar na tarefa insana de conciliar as obrigações profissionais com o lazer de
que muito precisamos. Ah, e assistir aos filmes que estávamos loucos para ver
na tela grande do cinema, felicidade extrema deste incorrigível fã de música...
e de Janis Joplin!
Não me contive de tanta alegria e
excitação quando meus amigos concordaram em ir ao cinema para assistir o
premiado documentário Janis: Little
Girl Blue, de Amy J. Berg. Fruto de décadas de pesquisas e
entrevistas, a película percorreu festivais renomados como os de Toronto,
Veneza e Rio de Janeiro antes de entrar em cartaz pelo circuito nacional
brasileiro. Em uma época repleta de documentários musicais de extrema qualidade,
artistas como os Rolling Stones, John Lennon, Bob Dylan e Amy Winehouse
receberam tributos fabulosos da sétima arte. Janis Joplin merecia algo que
estivesse à altura de sua grandiosidade artística.
*
O principal trunfo de Amy J. Berg
reside no fato de que ela conseguiu retratar com a exatidão a essência da
pérola negra do Texas: Janis Joplin não era simplesmente uma garota que falava
alto, bebia, fumava, transava e se drogava desenfreadamente. A filha mais velha
do casal Seth e Dorothy Joplin foi alguém que enfrentou milhares de
dificuldades de relacionamento com o mundo por ser inteligente, contestadora e
fora dos padrões de beleza tiranos do Meio Oeste dos EUA. Little Girl Blue foi
o elemento que apimentou o Verão do Amor que varreu San Francisco e o resto do
planeta de jeito. Além disto, ela viveu a liberdade sexual em seu pleno
esplendor – a entrevista de Jae Whitaker, ex-namorada de Janis no início dos
anos 1960 é um dos pontos altos do filme; Peggy Caserta, outro affair de Janis,
aparece apenas com sua voz em “off” e nos deu uma bela explicação a respeito do
temperamento melancólico da estrela.
Janis ouvindo um segredo de Peggy Caserta nos bastidores de Woodstock |
Janis não era uma mulher envolvida pela
ambiciosa vontade de ser rica e famosa. Pelo contrário: sua música era uma
expressão livre de sua dor e do seu desejo de amar e de ser amada por todos.
Tudo o que ela queria era fazer com que as pessoas que iam aos seus shows se
divertissem tanto quanto ela se doava a partir do momento em que o microfone
estava em suas mãos para que o verbo fosse rasgado através de gritos, ganidos,
sussurros, miados, guitarras em fúria e metais em brasa. Miss Joplin não falava
necessariamente de amor a partir de uma perspectiva romântica: Janis falava de
tesão e solidão como ninguém falou. Algo nada comum inclusive para mulheres dos
anos 1960, o que lhe rendeu um altíssimo preço por sempre buscar sua liberdade
e integridade artística.
A infante Janis Lyn Joplin |
O filme de Amy J. Berg mostra a rápida
e sensacional escalada de Janis Joplin como artista popular: de uma mera
cantora de bares e pés-sujos (incapacitada em se tornar uma estrela de Folk por ter influências musicais de
enorme peso como Odetta e Bessie Smith), à tímida vocalista do Big Brother
& The Holding Co. e, posteriormente, à uma das maiores estrelas de Rock de todos os tempos. A mítica
aparição no Monterey Pop Festival
(com direito à boca aberta de Cass Elliot, do The Mamas & The Papas, que
estava no gargarejo da plateia) e a fama estrondosamente repentina deram à
filha mais ilustre de Port Arthur uma popularidade tão grande que literalmente
extrapolou os limites do próprio Big Brother – um grupo formado por músicos
amadores e autodidatas por excelência. Cheap
Thrills (1968), com suas distorções, dissonâncias e desafinações, foi um
álbum muito bem recebido pela crítica e pelo público. A estreia solo de Janis, I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!
(1969) foi extrema e duramente criticado pelos jornalistas da época. Miss
Joplin, por ser inexperiente e por não ter condições de liderar uma banda, foi
injustamente comparada pelo fato de querer soar como cantoras do porte de
Aretha Franklin e Tina Turner – afinal, uma branca que soasse como negra ainda
era um crime artístico inafiançável nos States
dos libertários anos 1960.
Janis à frente da Kozmic Blues Band |
A Kozmic Blues Band ainda precisava de
uma série de ajustes que estavam fora do alcance de uma jovem cantora que não
tinha a qualificação de uma Band Leader,
tampouco conseguia controlar a sua voz de trovão com a precisão necessária –
Woodstock, por exemplo, apesar de ter sido um evento importante e memorável,
não trouxe Janis em sua melhor forma artística. Apesar das
críticas ferozes e injustas, I Got Dem
‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!, estreia solo de Janis Joplin, é um dos
documentos mais belos e intensos das agruras sentimentais do ser humano e um
dos itens essenciais e prediletos de minha coleção de discos.
A década de 1960 não acabaria bem para
Janis, tal qual nos mostrara Amy J. Berg em seu filme. O vício crescente em
heroína e álcool foi a reação de Little Girl Blue às críticas violentas que a
imprensa norte-americana (tão cruel quanto seus ex-colegas de colégio e
faculdade, que a taxavam de “feia”). Sua capacidade de trabalho estava cada vez
mais comprometida pela ilusão da fama e as desilusões amorosas frequentes. A
pérola negra do Texas precisava de um refúgio longe dos EUA para que pudesse, enfim, se ver
livre das drogas. O local escolhido para a rehab
de Miss Joplin foi o Brasil – com direito a estadias no Rio Janeiro e Salvador,
viagens pela Floresta Amazônica, alguns barracos em público, um pouco de samba
e a um novo amor surgido na Praia de Ipanema, David Niehaus.
Janis e David Niehaus (dir.) curtindo o verão de 1970 no Brasil |
Ao retornar aos EUA, as pressões e a
necessidade de bisar o sucesso de Cheap Thrills fizeram com que Little Girl
Blue voltasse a consumir heroína em doses industriais. O relacionamento com
Niehaus não sobreviveu ao vício de sua namorada famosa – ele a abandonou e
voltou a viajar pelo mundo, mas prometeu retomar contato se Janis largasse a
heroína. Em decisão conjunta com seu empresário, Albert Grossman, Miss Joplin
decidiu desfazer a Kozmic Blues Band e recomeçar do zero. O ex-produtor do The
Doors, Paul Rothchild, foi convocado para produzir o sucessor de I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!
e convocar os músicos que formariam a Full Tilt Boogie Band, última banda que
acompanhou Janis Joplin. Ao oferecer a orientação técnica de que a ex-vocalista do Big Brother & The Holding Co. tanto necessitava, ela passou a cantar de um jeito que jamais cantou
antes – sua voz estava mais leve, mais controlada, praticamente limpa da
heroína mas não menos intensa.
Janis durante a sessão de fotos de Pearl |
Janis ao lado de Paul Rothchild, produtor de Pearl |
Janis
Joplin, por ter sofrido tanto com a agressividade de seus pares no passado e
por ter uma necessidade incontrolável de ser amada, não sabia lidar com a
solidão. Estar sozinha lhe deixava vulnerável a ponto de duvidar de sua
autoestima e dar abertura para que os fantasmas que tanto lhe assombravam
voltassem para lhe infernizar. Sua última turnê, o lendário Festival Express, reuniu Janis com seus indefectíveis boás no cabaelo ao lado de grandes nomes do Blues e do Rock como Buddy Guy, The Band e o Grateful Dead entre os EUA e o
Canadá durante 28 de junho e 4 de julho de 1970. Paul Rothchild relatou que sua pupila odiava os intervalos de gravação do disco porque ela sabia que teria de
voltar sozinha para o seu quarto de hotel de Los Angeles enquanto seus
companheiros de trabalho sempre teriam alguém que os acompanhassem assim que o
expediente se encerrasse. Little Girl Blue, solitária e desesperada, foi
procurar em sua última dose de heroína a companhia que David Niehaus (ou talvez
Peggy Caserta) não poderia lhe dar.
O encontro, como sabermos, foi fatal
e abalou os rumos da vida, da carreira de Janis Joplin e da música a partir de
então: uma das maiores estrelas do Rock foi morta por uma overdose aos 27 anos de idade
e no auge de sua forma artística. A amante apaixonada que, infelizmente, não
leu o telegrama enviado por Niehaus a tempo de dar o rumo necessário para que
sua vida, enfim, adquirisse o sentido que buscava. Miss Joplin estava
finalmente livre, pois definitivamente não tinha mais nada a perder.
Família Joplin - Seth, Dorothy, Laura, Janis e Michael Joplin |
Os emocionantes depoimentos de seus
irmãos, Laura e Michael Joplin, dos ex-companheiros de banda Sam Andrew e David
Getz e de John Byrne Cooke (ex-road
manager de Janis) ajudam a compor o vasto quebra-cabeça das verdades de
Janis Joplin. Enquanto os créditos começam a subir com a releitura avassaladora
de “Little Girl Blue” (de Richard Rodgers e Lorenz Hart), somos surpreendidos
pela aparição de um vídeo do início da década de 1970 que mostrava Dorothy
Joplin lendo uma carta de uma fã saudosa de sua filha mais velha que dizia que
Janis era sua melhor amiga, nos trouxe lágrimas de imensa tristeza: a amizade
platônica suscitada pela estrela de Rock
era tão intensa e verdadeira quanto as ofensas e xingamentos recebidos pela
personalidade mais ilustre de Port Arthur. O brilhante documentário de Amy J.
Berg consegue reconstituir o brilho, a tristeza, a intensidade (graças à voz
linda de Cat Power, que interpretou as cartas escritas pela pérola negra do
Texas com tanta perfeição que tínhamos a sensação de estarmos diante da filha
primogênita do casal Dorothy e Seth Joplin) e a tragédia de uma das artistas
mais visionárias do século XX: uma mulher diferente, intensa, à frente de seu
tempo e que se transformou em um dos símbolos mais evidentes de liberdade.
P.S.:
Há um fato que aparece em Janis: Little
Girl Blue que chamou muito
minha atenção: o encontro de Bob Dylan em ascensão com uma de suas maiores fãs,
Janis Joplin. Ao dizer para seu ídolo de que um dia seria uma cantora muito
famosa, Mr. Zimmermann fez pouco da texana com quem ele conversava e disse que
todos teriam direito aos seus minutos de fama. Cinco anos depois, Janis
gravaria “Dear Landlord”, canção de Dylan que infelizmente ficou fora de I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!...
We love you, Pearl! |