A
JUSTIÇA ENTRE PEDAÇOS
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
Do membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus”
(Chico Buarque, 1978)
Desde a Olimpíada do Rio de Janeiro, a
TV aqui de casa nunca tinha dado tanto expediente assim. Findos os jogos e a
normalidade democrática em nosso país, pensei em dar férias para a nossa
intrépida Sony Bravia e não dar audiência para a emissora platinada e golpista.
Porém, fui tomado de assalto por um item da programação do segundo semestre da
Globo: a minissérie Justiça, com roteiro de Manuela Dias e direção geral de José
Luiz Villamarin.
Jesuíta Barbosa, Adriana Esteves, Jéssica Ellen e Cauã Reymond em Justiça |
Justiça conta com um
elenco de fazer inveja a muito diretor de cinema, teatro e televisão: Débora
Bloch, Adriana Esteves, Cauã Reymond, Leandra Leal, Cássio Gabus Mendes, Drica
Moraes, Antônio Calloni, Vladimir Brichta, Camila Márdila, Enrique Diaz, além
das participações especiais de Marjorie Estiano, Ângelo Antônio e Marina Ruy
Barbosa e dos jovens talentos de Jéssica Ellen, Jesuíta Barbosa e Luísa Arraes.
Quatro tramas supostamente paralelas, quatro tragédias particulares causadas
pelas contradições do Brasil. Em cena: Recife, uma das capitais das belas de
nosso país. Um país retratado através dos absurdos que regem nossas
instituições.
Os telespectadores viam uma história
por semana – às segundas, choramos com o sofrimento da personagem de Débora
Bloch, uma advogada e professora universitária que sofria a dor de ter uma
filha assassinada pelo noivo e que deseja se vingar do assassino da mesma
maneira; às terças, suávamos frio com a agonia de Fátima, infernizada por um
vizinho policial e sua esposa (uma mulher vulgar de péssimo trato) que leva a
matriarca (Adriana Esteves) para a cadeia por um crime jamais cometido; às
quintas, sentíamos a revolta diante das maldades sofridas pela personagem de
Jéssica Ellen, uma jovem de 18 anos condenada por tráfico de drogas, pelo
simples fato de ser negra e pobre; às sextas, nos solidarizávamos com as
injustiças sofridas por Maurício (Cauã Reymond), obrigado a cometer eutanásia
em sua esposa (Marjorie Estiano), pois ela jamais voltaria a andar depois de um
acidente que lhe deixara tetraplégica. Quatro injustiças, quatro vidas
dilaceradas, quatro vidas em pedaços, quatro desejos de vingança.
O que une estes injustiçados não é
apenas o fato de terem sofrido desventuras causadas pela vida. Eles levaram
golpes de seus semelhantes e irmãos – se levarmos em conta os escritos nos
Testamentos de Cristo. Precisam refazer suas vidas a partir dos pedaços que
sobraram e sentindo a falta das partes que se perderam. O desejo de vingança se
sobrepõe à resignação esperada daqueles que pagam por seus pecados capitais. Afinal,
como perdoar aquele que matou sua filha por machismo e ciúme doentio, ou o
homem que atropelou sua esposa por mera imprudência e fugiu sem sequer prestar
socorro? Como estender a outra face para aquele que te mandou para atrás das
grades injustamente e deixou seus dois filhos abandonados pelas ruas do Recife
ou para a moça que se omitiu diante de um crime do qual também foi cúmplice,
mas não foi sequer interrogada por não ser negra? As tramas de Manuela Dias
buscam outros questionamentos e não respostas para estas e outras questões.
Apesar de ter algumas características
do velho e conhecido tom folhetinesco imposto pelo Padrão Globo de Qualidade, Justiça
tem como pontos positivos o cenário (Recife é uma excelente alternativa para o
velho e surrado trinômio cênico RJ - SP - fazendas de coronéis que só as
telenovelas globais nos mostram), o elenco (Adriana Esteves, Débora Bloch,
Leandra Leal e Drica Moraes nos ofertam atuações arrasadoras), a trilha sonora
(Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Fagner, Chico Buarque & Zizi Possi em
destaque) e uma trama novelesca fragmentada de uma maneira inteligente e que
provoca o interesse do telespectador. Um marco do entretenimento da vênus
platinada, sem sombra de dúvidas.
Além do mais, Justiça faz um
questionamento feroz das instituições que deveriam zelar pelas leis e pelo
cumprimento delas: a Polícia, supostamente designada a nos proteger, é
retratada pela sua ineficiência, revanchismo e arrogância – vide o personagem
de Enrique Diaz, por exemplo; os políticos, supostamente esperados a serem
paladinos da ética e da honestidade, só se preocupam em seu enriquecimento
ilícito e em suas próprias vantagens – o personagem de Antônio Calloni é um
retrato infeliz daqueles que não nos representam dignamente nos Poderes
Executivo e Legislativo. Algo raríssimo em um programa da Rede Globo, mais
preocupada em oferecer o circo para complementar o pão que a gente come diariamente...
O que resta a nós, cidadãos comuns e
nada privilegiados pela incompetência destas instâncias, é tentar valer o nosso
senso de justiça através de nosso próprio mérito e esforço, mesmo que para isso
tenhamos que literalmente quebrar as leis e os mandamentos que regem nossa
sociedade. Agir com as próprias mãos para tentar curar a dor dos pedaços feitos
não por vingança, mas para acreditar na existência de justiça.
Se a dor após fazer justiça por si só
se vai eu não sei, mas que o machucado deixa de sangrar um pouco, disto eu não
tenho a menor dúvida...