O
ARAUTO DA LIBERDADE
(OU
A NECESSIDADE DE RESPEITARMOS NEY MATOGROSSO)
“Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia”
(Caetano Veloso, 1983)
1) Uma provocação
Às vésperas de completar 76 anos de
idade (em 1° de agosto de 2017) e 45 de carreira musical (se levarmos em conta
a primeira apresentação ao vivo do Secos & Molhados, em dezembro de 1972), Ney
Matogrosso recebeu uma belíssima homenagem durante o 28º Prêmio da Música
Brasileira, organizado pelo empresário José Maurício Machline. Em uma série de
entrevistas concedidas pelo artista para divulgar o evento, Ney concedeu uma
série de entrevistas para os principais veículos da imprensa nacional,
incluindo a Folha de S. Paulo, que
fez a seguinte chamada para a matéria ficar bem nos moldes de um bom “caça-clique”:
“’Que gay o caralho! Eu sou um ser humano’,
diz Ney Matogrosso”.
Quando li a tal chamada, levei um susto
e fui ler a tal entrevista antes de tomar qualquer conclusão ou juízo de valor –
objetivo principal de qualquer coisa que o GAFE
(Globo, Abril, Folha e Estadão) possui em seus jornais físicos e virtuais. Em
palavras um tanto descuidadas, Ney Matogrosso respondeu se ele se considerou,
em algum momento, representante de uma minoria dizendo o seguinte:
“Eu
não. Nunca peguei essa bandeira, não me interessa. Acho que eu sou útil assim:
falando, conversando. Teve um encontro internacional gay no Rio, queriam que eu
fosse presidir. Eu disse que não, não penso assim. Aí foi o Renato [Russo]. Tá certo,
ele é quem tinha de ir, a cabeça dele era assim. Eu não defendo gay apenas,
defendo índios, fiz um vídeo recentemente pedindo a demarcação de terras. Defendo
os negros, que estão na mesma situação que viviam nas senzalas, estão presos
aos guetos.
Me
enquadrar como o “gay” seria muito confortável para o sistema. Que gay o
caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa. O que eu faço com a minha
sexualidade não é a coisa mais importante na minha vida. Isso é um aspecto de
terceiro lugar”.
Ney Matogrosso foi hippie,
isto é, vem da geração da contracultura: sempre rejeitou rótulos, limitações,
imposições, qualquer coisa que cerceasse o seu desejo de ser livre. Nunca
comprou nenhum peixe vendido pelo sistema apenas para agradar a sociedade. O que
ele quis deixar muito claro em sua entrevista para a Folha de S. Paulo era justamente isso: a recusa em ser enquadrado sob qualquer rótulo, de forma que não fosse tachado ou limitado a uma ideia só ("cantor das minorias"). Infelizmente, nem todos entenderam assim...
2) A revolta da turminha do lacre
Em primeiro lugar, vamos definir quem
faz parte da turminha do lacre: são artistas LGBT surgidos na segunda metade da
década de 2010 que não possuem a menor vergonha em desafiar padrões de gênero e
tem feito bastante sucesso com as gerações mais jovens que saíram do armário. Adoram
falar alto e ouvir pouco (ou quase nada!), acham Beyoncé e Elza Soares mulheres
que “empoderam” (a palavrinha da moda!) seus pares e sempre curtem dar um
pitaco em como devemos nos posicionar enquanto membros da causa cor de rosa.
Artistas como Liniker & Os
Caramellows e a dupla As Bahias & A Cozinha Mineira são exponentes bastante
talentosos dessa turma. Inspirados nas atitudes desse pessoal, a turminha em
questão adora reverenciar o que é “lacre” (ou seja: tudo o que é ousado e que
está, segundo Valesca Popozuda, “lacrando o cu das inimigas”). Se você diz ou faz
algo que não é “lacrativo”, “fechativo” ou “bapho” (com “PH” mesmo!), você é
digno de um “pisa menos”, de um “tombamento” e dizeres do tipo.
Eis a questão: quando a controvertida chamada
para a entrevista de Ney chegou aos olhos de um dos exponentes dessa turma – um
cantor em início de carreira cujo nome me recuso a citar não por questões de
querer poupá-lo, mas porque qualquer menção ao nome do indivíduo é forma de
publicidade indireta para o trabalho daquele ingrato –, a revolta de uma
geração que lê mal, se posiciona mal e obcecada por “dar um close”, fez uma
postagem arrasando com Ney Matogrosso em uma rede social. Disse o cidadão:
“É inconcebível ler a frase ‘Que gay o
caralho, eu sou um ser humano’ no país que mais mata LGBTs do MUNDO(!!). Vinda
de um artista cuja carreira em grande parcela se apoiou na bandeira da luta
dessa comunidade, de seu próprio público”, comentou. (...) Um artista genial
que perdeu o andar que o mundo tomou, ficou cristalizado, um cânone. (…) E em
tempos de ‘Gay é o caralho’ a única resposta possível é que vai ter gay pra
caralho, vai ser gay pra caralho sim, cada dia mais gay, cada dia um level a mais igual Pokémon”.
Diante da sucessão de enganos a
respeito de Ney Matogrosso, é preciso deixar algumas coisas bastante claras:
a) Apesar de
sempre ter se recusado a fazer militância no sentido tradicional da coisa, Ney
Matogrosso é um dos homens que mais batalharam pelo desenvolvimento da causa
LGBT no Brasil: desafiou a ditadura e a censura durante os governos Médici e
Geisel, seja à frente do lendário grupo Secos & Molhados ou em bem-sucedida
carreira solo, ao quebrar padrões de gênero com coreografias e figurinos
extravagantes, se maquiando e rebolando em pura demonstração de deboche,
insubmissão e irreverência. Deixo para a turminha do lacre um trecho de uma entrevista
para O GLOBO, na qual Ney deixa isso muito claro:
“O
GLOBO:
Quarenta anos depois dos Secos & Molhados, a gente chega a um momento da
música brasileira em que os artistas não escondem sua sexualidade, e isso abriu
uma discussão enorme sobre a questão de gênero. Você se reconhece no trabalho
desses artistas?
NEY MATOGROSSO: Me
reconhecer, não, porque eles são eles. Mas a verdade é que quem derrubou a
porta fui eu. E o resto é consequência. Porém, não espero que ninguém fique
batendo cabeça para mim. Não fiz nada além de atender à necessidade de me impor
sobre uma mentalidade muito atrasada, muito estreita”;
b) A carreira de Ney
Matogrosso nunca se apoiou na causa LGBT. Pelo contrário: a causa LGBT sempre
necessitou (e fez amplo uso!) do legado de Ney para poder se desenvolver no
Brasil;
c) Um artista que
sempre se assumiu como homossexual e está há quase cinco anos dizendo que “Todo
mundo tem direito à vida / Todo mundo tem direito igual” não é alguém que está
desatento aos sinais de nosso tempo. O talento de Ney Matogrosso está longe de
ser ou estar “cristalizado”: ele está há quase meia década percorrendo as casas
de espetáculo do Brasil com o show Atento aos Sinais,
um dos mais bem-sucedidos de sua carreira;
d)
Se
artistas como Liniker e As Bahias conseguem “ botar a cara no sol” hoje em dia,
elas deveriam agradecer a Ney Matogrosso por ter “dado a cara a tapa” há quase
cinco décadas por fazer o que faz nos discos, nos palcos e nos programas de
televisão. Não reconhecer isso não é simplesmente uma mera demonstração de
petulância, é uma demonstração de burrice.
3) As nuances do oportunismo
As redes sociais ferveram com a provocação de Ney e a
revolta do integrante da “turminha do lacre”. Textos de opinião defendendo e
enxovalhando Ney Matogrosso sem dó surgiram com uma avalanche. Infelizmente, o “embate”
entre os defensores e os detratores de um dos maiores artistas da música
brasileira deixou uma série de questões bastante caras:
a) A
militância LGBT, infelizmente, precisa ser menos radical e sair do estratagema
de que “todo bom gay é aquele que levanta bandeira” e não permitir que os haters determinem regras de como todos
deveriam agir. Pelo conjunto da obra, Ney Matogrosso está acima de qualquer
questão em relação à causa e muita gente ainda não entendeu isso;
b) O
episódio serviu como uma luva para ajudar na divulgação do recente álbum do
aspirante ao lugar insubstituível de Ney Matogrosso na música brasileira.
Oportunismo barato e grotesco: se utilizar do nome de outra pessoa para criar
polêmica com a justificativa de que faz muito pela causa LGBT é sinônimo de
falta de ética, de canalhice. Comparar a declaração de Ney com uma suposta
declaração de Madonna (“Mulher é o caralho!”) é demonstração de maniqueísmo, de
falta de instrução.
Ney Matogrosso é o arauto da liberdade (diretamente ou
não) de muitos integrantes da população LGBT no Brasil. Fez uso de um discurso
libertário, ousado e irreverente para lutar por um pouco mais de igualdade. Dizer
se é gay ou não, usar um rímel e delineador em um rosto com um bigode estilo “Freddie
Mercury” é fazer muito pouco, quase nada para que um dia gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transgêneros adquiram direitos iguais. O intérprete de “Sangue
Latino” não está observando atentamente os sinais de nosso tempo do alto de sua
cobertura no Leblon: ele está em todos os cantos deste país cantando e
dançando, longe do universo de um grupo reduzido de pessoas só sabem “evacuar
regras para a vida alheia”.
Por isso e por muito mais que devemos agradecer ao Ney
por tanto que ele fez pelos LGBTs, pelos amantes de música popular e pelo
Brasil por estar fazendo o que faz com o mesmo primor de sempre. Muito obrigado
por tudo, Ney! Eu sei que você não liga para essa gente careta e covarde. A partir
de hoje, passarei a fazer o mesmo...
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