O
ALVORECER DOS MEDÍOCRES
(ou
o retrocesso nosso de cada dia)
“O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente
Por que você me trata mal
Se eu te trato bem
Por que você me faz o mal
Se eu só te faço o bem
Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas”
(André Abujamra, 1995)
Eu
gosto dos que têm fome
Dos
que morrem de vontade
Dos
que secam de desejo
Dos
que ardem
(Adriana Calcanhotto, 1992)
O meu excesso de trabalho e o meu
estado de choque permanente em relação ao noticiário me impedem de escrever com
a frequência desejada. A era da mediocridade tem dado as cartas com uma frequência
tão grande que faz com que muitos de nós entrem num estado de revolta e apatia
coletiva. O Brasil tem vivido o alvorecer dos medíocres com uma força tão
avassaladora que é preciso digerir cada baque em partes para não temos uma
indigestão.
*
O golpe de 2016 tem oferecido ao
Brasil uma série de retrocessos que surgem diante de nossos olhos como se
estivéssemos em queda livre rumo às catacumbas sem cinto de segurança. Assistimos
à retirada de direitos humanos que foram conquistados há muito tempo debaixo de
sangue, suor, gritos e muitas lágrimas em estado de apatia e choque.
O Brasil ficou infinitamente mais
estúpido e ignorante a partir de 2013: as manifestações que levaram multidões
às ruas criaram a ilusão de que o brasileiro médio tinha o poder de mudar os
rumos da nação. O fato que muitos desconhecem é que as mãos que detém o poder
sempre foram as mesmas; a diferença é que as vozes que berram o moralismo nosso
de cada dia nas fuças de Deus e o mundo mudaram de rosto, mas reproduzem o
mesmo discurso que levou o país para a ditadura militar em 1964.
As forças políticas mais conservadoras
da sociedade brasileira hoje deram voz e munição para grupos de “oposição” aos
governos petistas e que foram massa de manobra para a consolidação do golpe de
2016. O grupo mais “pop” dentre todas essas milícias é o MBL (Movimento Brasil
Livre), empenhado em livrar nosso país das garras da corrupção – para eles, os petistas.
Fruto mais apodrecido do chamado “antipetismo”,
o MBL tem se infiltrado em diversos setores da sociedade brasileira e se
interessam pela regulamentação de tudo ou quase tudo que eles consideram “inapropriado”:
são os principais defensores do projeto bizarro da “Escola sem Partido” e fazem
linchamentos públicos de pessoas e coisas que vão de encontro aos ideais que
defendem. O mais recente deles foi contra a exposição Queermuseu,
exposição de arte de temática LGBT que estava em cartaz na cidade de Porto
Alegre e era financiada pelo Banco Santander. O evento colocou em cartaz cerca
de 270 trabalhos assinados por mais de 80 artistas, entre eles nomes renomados
como Volpi, Portinari, Luiz Fernando Borges da Fonseca e Lygia Clark, em diversos
suportes artísticos, como pintura, gravura, fotografia serigrafia e escultura. Visando
a diversidade sexual, o tema é tratado de maneira explícita e abstrata.
A repercussão negativa das postagens do
MBL sobre a exposição nas redes sociais foi tão negativa, que o Santander, num
ímpeto de autocensura, decidiu retirar a exposição de cartaz, por não querer
ver o nome da empresa associada à pedofilia, zoofilia e contra a moral e os
bons costumes cristãos. Graças ao conservadorismo de um grupo fascista e
medíocre, o Brasil passou a viver às voltas com o conceito pérfido de “arte
degenerada”, cunhado e posto em prática pelos nazistas da época de Hitler.
*
Outro exemplo da era da mediocridade em
nosso cotidiano se deu com o cantor e compositor sertanejo Zezé di Camargo: em
uma entrevista à jornalista Leda Nagle, o cantor deu uma série de declarações
bastante polêmicas sobre nossa história mais recente: “Muita gente confunde
militarismo com ditadura, todo mundo fala: ‘nós vivíamos numa ditadura’. Nós
não vivíamos numa ditadura, nós vivíamos num militarismo vigiado, não numa
ditadura”. Além de defender os militares que ficaram no poder de maneira
ilegítima por mais de 20 anos, Zezé teve a pachorra de querer contrariar a
natureza dos fatos históricos, o que a Internet não perdoou.
O pensamento retrógado e desinformado
do autor de “É o Amor” só encontrou o eco desejado por causa da saída do
armário deste conservadorismo fascista que desconhece noções de história,
filosofia, sociologia e interpretação de texto básicas a qualquer indivíduo com
o mínimo de sensatez. O fator que me incomoda ainda mais é que Zezé di Camargo
não é o único músico conservador que faz uso do espaço público para expressar
sua visão de mundo nada libertária. Durante suas apresentações na edição de
2017 do Rock in Rio, os vocalistas
Samuel Rosa (Skank) e Dinho Ouro Preto (Capital Inicial), defensores de
políticos que apoiaram e deram o golpe de 2016, posavam de bons moços ao
defenderem a Amazônia apenas por puro prazer de serem bons moços. Infelizmente,
para eles, as redes sociais não esquecem do que eles fizeram na temporada
eleitoral passada...
*
Uma das decisões mais estarrecedoras tomadas
pela justiça brasileira se deu através de uma liminar concedida por um juiz do
DF, que permite que psicólogos ofereçam terapias de “reversão sexual” para
pacientes LGBT sem qualquer tipo de censura prévia ou autorização. O projeto,
conhecido como “cura gay”, foi um dos maiores golpes contra a população
homossexual do país onde mais se assassina homossexuais no mundo.
O episódio da “cura gay” é apenas mais uma oportunidade e
tanto para que os medíocres possam não apenas semear suas sementes do ódio e da
discórdia para censurarem e restringirem a liberdade daqueles que eles julgam
como minoria. O alvorecer dos medíocres pode fazer com que mais pedradas venham
com mais agressividade, porém, as pedras que nos atiram são o motivo principal
para que sigamos em frente. Afinal, o retrocesso geral já quer que andemos para
atrás: para os guetos, para os porões, para as fogueiras, para os armários. Se nós
iremos longe, não sabemos: mas seguiremos livres para onde quisermos ir.