14 de dezembro de 2020

TROVA # 156

 MINHA AMADA CECILINHA

Uma crônica para homenagear a Santa Protetora dos Músicos

Foto: Nilton Serra


    Já advirto ao leitor destas mal traçadas linhas: esta crônica não é sobre Cecília Meirelles. Também não é sobre Cecilia Bartoli, a soprano italiana que encanta qualquer leigo em matéria de música clássica. Quem sabe até poderia ser sobre Cecília Meirelles, uma das maiores expressões brasileiras em matéria de poesia em Língua Portuguesa. Poderia ser sobre a canção “Cecília”, uma das canções mais belas (e desconhecidas) do repertório de Chico Buarque de Hollanda. Talvez esta homenagem seja sobre nossa afilhada, uma menininha de seis anos que tem uma personalidade tão marcante que renderia uma crônica bem legal. Todavia, nenhuma delas é a musa do texto de hoje.




         Para os que me conhecem bem, Cecilinha é Santa Cecília, não o famoso bairro que fica na região central de São Paulo e que é adorado por nove entre dez jovens descolados, mas a Santa mesmo. Nascida em Roma, Itália, por volta do ano 150 D.C., Santa Cecília era filha de uma família nobre. Cristã, decidiu fazer voto de castidade para vivenciar o amor divino típico dos mártires que se sacrificam pela fé. Em uma era na qual a fé em Cristo era sinônimo de perseguição, foi condenada à tortura. Seu martírio levou muito mais do que se esperava, pois a jovem manteve sua fé inabalável e enfrentou seu destino trágico. Condenada à morte por uma machada no pescoço, Cecília recebeu um golpe fatal, porém ainda chegou a sobreviver por mais três dias e chegou a conversar e dar conselhos para aqueles que vinham rezar por ela. Seu ofício final foi o de cantar até não ter mais forças e morrer como uma das principais mártires da Igreja Católica.


         Desde então, Santa Cecília se tornou conhecida não apenas como mártir, mas principalmente como a Santa Padroeira dos Músicos, cujo dia é comemorado no dia 22 de novembro. Apesar de não ser músico profissional e de não tocar nenhum instrumento musical (fiz aulas de canto por um ano), devo muito do que sou profissionalmente à música. Por outro lado, minha vida acadêmica e profissional está intimamente ligada a versos e sons: eu me tornei Professor de Inglês motivado pelo que ouvia no rádio e conduzi minha vida acadêmica pesquisando o que havia de melhor da música brasileira. No entanto, dois episódios ocorridos comigo no dia 22 de novembro fizeram com que eu concluísse de uma vez por todas de que havia uma luz a guiar o meu caminho de um lugar o qual eu jamais poderia enxergar.


         O primeiro deles aconteceu em 2010. Paul McCartney estava prestes a começar uma turnê brasileira depois de quase duas décadas sem tocar por estas bandas. Tentei comprar ingressos para o show de 21 de novembro, domingo, mas, como existem tantos Beatlemaníacos por aqui quanto membros de torcida organizada, as entradas se esgotaram antes de um mero estalar de dedos. Faltando poucos dias para a apresentação, Macca anunciou que faria um show extra na segunda-feira, 22 de novembro de 2010. Diante da oportunidade de ouro, convoquei uma amiga e partimos em retirada para o Estádio do Morumbi e conseguimos três ingressos de pista para o segundo show da turnê Up and Coming.

Foto: Nilton Serra


         Segundo o relato de alguns amigos que foram ao show de 21 de novembro, Paul fez um belíssimo show para um Morumbi lotado e ensolarado. Tudo indicava uma semana sem catástrofes climáticas. Porém, segunda-feira, essa eterna bagunceira dos ânimos e dos humores do ser humano, nos reservava surpresas eletrizantes: São Pedro, em um péssimo dia, se revoltou e enviou uma tempestade daquelas em cima da Cidade de São Paulo! Mas foi uma chuva daquelas de parar a cidade inteira. Saí mais cedo do trabalho e fui para o estádio com seis horas de antecedência com o coração na boca e preocupado com a possibilidade de não chegar no local da apresentação. 

Entre Fabíola Bueno e Nilton Serra, o autor da maioria das imagens que estão na postagem de hoje.

Era dia de Santa Cecília e, sem que eu me desse conta, o aguaceiro resolveu dar uma trégua no Morumbi minutos antes de Paul McCartney entrar no palco. Para compensar os ânimos, Macca abriu o show tocando “Magical Mystery Tour”, dos Beatles (canção que eu jamais imaginei ouvir ao vivo na vida), alegrando o público já nos primeiros segundos da segunda apresentação de sua turnê por São Paulo. Dez anos depois, ao me lembrar daquele dia, constatei que Cecilinha sempre protege os músicos e os amantes de versos e sons como este aqui que vos escreve.



O segundo episódio no qual Santa Cecília apareceu na minha vida se deu quatro anos do show de Paul McCartney. Estávamos na região de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, para o batizado de nossa primeira afilhada. Por questões profissionais, não tínhamos muita opção a não ser postergar a cerimônia para o feriadão da terceira semana de novembro de 2014, já que a distância entre a capital e Rio Preto é de mais de 400 km. Na manhã de sábado, 22 de novembro, descobrimos que estávamos no dia da padroeira dos músicos e que o nome da pimpolha que estava prestes a ser batizada era Maria Cecília. Por maior que fosse a coincidência, já era mais do que tempo de retribuir as graças alcançadas. Afinal, a vida não é feita de acasos e sempre precisamos retribuir o carinho que recebemos...

O primeiro altar de Cecilinha: o RÁDIO!

Alguns anos depois, ganhei uma imagem de Santa Cecília de aniversário de meus pais. Vivia uma fase feliz na minha vida, tinha acabado de me mudar para um apartamento novo e estava às voltas com móveis e eletrodomésticos novos. Não pensei duas vezes antes de escolher um altar, diria, “um tanto peculiar”, para a santinha: ela passou a ficar em cima do meu antigo rádio, abençoando meu lar ao lado de todos os músicos que desfilavam pelo aparelho de som. 


Porém, a vida gosta de armar algumas surpresas para a gente: Cecilinha ficou soberana de versos e sons em cima do meu antigo aparelho de som até o dia em que o rádio quebrou de vez. Enquanto me acostumava ao meu apartamento novo, segundo em menos de dois anos, e com a bagunça de uma mudança e da falta de espaço, mal sabia onde guardava vários dos meus pertences. Certo dia, em um surto de arrumação, quis colocar minha imagem de Santa Cecília em um local seguro, pois receberíamos visitas para um dia de domingo. Acreditem se quiser, mas toda criança que vem nos visitar fica encantada pelo meu escritório: não apenas por causa dos livros, mas por causa das miniaturas e trecos mil que coleciono e se acumulam no caos.

Por motivos de superproteção, guardei minha amada Cecilinha em um lugar secreto da estante. Lugar esse tão secreto, mas tão secreto que eu nem conseguia mais me lembrar. Eu andava tão estressado nos últimos três meses do ano de 2019 que eu mal imaginava para onde minha imagem de Santa Cecília poderia ter ido. Fiquei triste, frustrado, arrasado e cheguei a procurar outras imagens da santinha para substituir a que meus pais me deram de presente. Nenhuma delas à altura da beleza da original, diga-se de passagem.

Minha Cecilinha ficou brincando de pique-esconde, fazendo a Lindoneia desaparecida por quase três meses comigo. Seu “sumiço” chegou a virar piada aqui em casa, com direito a algumas especulações acerca de seu paradeiro: 1) Cecilinha tinha sido levada por acidente, possibilidade que eu prontamente descartei; 2) Tinha guardado a Cecilinha por acidente nas milhares de caixas que ainda sobraram da mudança; 3) Cecilinha se revoltou porque não havia mais rádio em casa, se revoltou com a minha bagunça e simplesmente teria ido embora em sinal de protesto! Hipóteses completamente descartadas no início de janeiro de 2020, quando ela foi encontrada em uma das prateleiras dos meus livros de música. Ela surgiu reluzente e levemente empoeirada, mas pronta para assumir seu posto definitivo: o novo aparelho de som (bem melhor do que o anterior!) que compramos para a nova casa...

A lição que eu tirei depois das “férias” da minha amada Cecilinha foi bem clara: sempre deixe ela próxima do rádio, para que ela esteja sempre a postos para proteger não apenas os músicos, como todos os artistas e os amigos da arte que são de boa índole e bom coração. Além disso, eu sempre posso recorrer a ela no momento em que eu necessitar de cuidados mais específicos ou apenas quando estiver com vontade de conversar com ela. Se ela iluminou o meu caminho mais de uma vez, não custa deixar ela bem perto do canto mais atraente da casa: aquele que sempre tem uma boa música para a gente ouvir.


         O bom de revirar as caixas que ainda sobraram da mudança foi poder achar uma imagem de São Francisco de Assis, vulgo Chiquinho, o outro santinho daqui de casa. Cecilinha ganhou um parceiro e tanto nas preces e nas conversas íntimas que temos com eles. Eis uma dupla e tanto: enquanto uma protege os músicos, o outro é o protetor dos animais e da ecologia: eis uma parceria de muito sucesso...