“Sai do lixo a nobreza
Euforia que consome
Se ficar o rato pega
Se cair urubu come
Vibra meu povo
Embala o corpo
A loucura é geral
Larguem minha fantasia
Que agonia... Deixem-me
Mostrar meu carnaval
Firme... Belo perfil!
Alegria e manifestação
Eis a Beija-flor tão linda
Derramando na avenida
Frutos de uma imaginação”
(GRES Beija-Flor, 1989)
“Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não
conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que
descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no
retrato”
(GRES Estação Primeira de Mangueira, 2019)
Por
conta de uma pandemia que já ceifou quase 240 mil vidas em nosso país, assisti
algo inédito em 40 anos de passagem por este mundo: mês de fevereiro sem cores,
sem alegria, sem irreverência, sem batucada nas ruas. Para não deixar o período
de Momo passar em branco, a passarela do samba, localizada na Avenida Marquês
de Sapucaí, ficou iluminada com as cores das agremiações que levam alegria para
tantas pessoas do período entre a sexta-feira de carnaval e a quarta-feira de
cinzas. Mês de fevereiro sem carnaval é como mês de junho sem Festa Junina ou
mês de dezembro sem Papai Noel: não tem a menor graça!
Apesar das restrições, muitos
resolveram aproveitar a oportunidade para vestir uma fantasia, resgatar uma
maquiagem mais colorida ou uma peruca velha e ficar curtindo os festejos de
casa mesmo. A TV Globo aproveitou o fato de que há mais pessoas dentro de seus
lares para reprisar desfiles marcantes das escolas de samba do Rio de Janeiro e
de São Paulo, para os saudosos de antigos carnavais. Neste ano, aproveitei mais
uma vez a oportunidade para ficar recolhidos com meus pensamentos, manias e
obsessões para tentar colocar a cabeça no lugar. Em ocasiões como esta, as
memórias acabam resgatando momentos nos quais a vida ainda pode valer a pena.
Como bom carioca que sou – fui
nascido e criado com a vivência de sambas-enredo e escolas de samba dentro de
casa –, sempre mantive na memória os desfiles das escolas de samba do Rio de
Janeiro. Eu tinha acabado de completar 8 anos de idade quando Joãosinho Trinta,
na época carnavalesco da Beija-Flor de Nilópolis, tentou levar um Cristo
mendigo para a passarela do samba para compor o enredo “Ratos e Urubus, larguem
a minha fantasia!” em fevereiro de 1989. Estarrecida com a ousadia de Joãosinho
(onde já se viu contar uma parte de nossa história utilizando um Jesus em
farrapos?), a Igreja Católica armou uma enorme confusão, censurou o desfile e o
carnavalesco quase foi parar na cadeira por conta da ousadia de sua arte.
Não
me lembro de quase nada daquele desfile, mas o que vi e mal entendi daquela
passagem da Beija-Flor pela Avenida Marquês de Sapucaí está disponível nos
arquivos das emissoras de televisão e no YouTube
para a nossa imensa alegria. Censurado em um Brasil que reaprendia a ser
democrático, Joãosinho Trinta resolveu não deixar barato: levou o Cristo para a
passarela do samba, porém coberto de sacos de lixo com os dizeres “MESMO
PROIBIDO, OLHAI POR NÓS!”, gerando uma verdadeira comoção e causando ainda mais
rebuliço diante do moralismo que nos censura até hoje.
Outro desfile que ficou guardado na
memória do inconsciente coletivo – e eu me incluo entre essas pessoas, porque
eu lembro bem! – foi o lendário desfile da Estação Primeira de Mangueira entre
o domingo e a segunda-feira de carnaval trinta anos depois da barulhenta e
controversa passagem da Beija-Flor pela mesma passarela do samba, em 2019.
Frustrado com uma passagem mediana da Portela pela Avenida Marquês de Sapucaí
(naquele ano, a homenageada era Clara Nunes, uma de suas portelenses mais
ilustres e uma das cantoras preferidas daqui de casa), já estava me preparando
para desligar a TV e ir dormir quando eu vi a apresentação da agremiação de
Cartola no seu início.
Duas ou três pessoas me advertiram a
respeito da beleza do samba-enredo da Mangueira para o ano de 2019 e eu não dei
o menor crédito por pura implicância, provavelmente. Mesmo assim, decidi dar
uma chance aos mangueirenses e fiz questão de ficar acordado às 4 horas da
manhã para assistir o que eles tinham preparado para a Marquês de Sapucaí. Em
menos de cinco minutos fui completamente arrebatado pela beleza de um dos
desfiles de carnaval mais inesquecíveis da minha vida. Estava diante de um
samba-enredo imbatível: refrão encantador e fácil de ser assimilado, belas
fantasias e alegorias, irreverência mil e uma proposta (ousadíssima) de
recontar a história do Brasil tão bem contada pelos brancos bem-sucedidos e
muito mal contada sob a perspectiva de negros, indígenas, pobres e outros que
nunca compactuaram com as artimanhas do poder oficial.
Fazer o brasileiro pensar em coisa séria na madrugada de uma segunda-feira de Carnaval e reverenciar heróis vivos e saudosos é o maior legado que a Estação Primeira de Mangueira deixou para todos naquele desfile de 2019. Além de deixar registrado em versos e sons a luta de nomes como Leci Brandão, Zuzu Angel, Jamelão, Mussum, Dandara, Aqualtune, Chunhambebe, Luísa Mahin, Tereza de Banguela, Mariana Crioula, Carolina de Jesus, Aleijadinho, Marielle Franco e tantos outros para que possamos ter a oportunidade de conhecer quem são os verdadeiros lutadores da nossa pátria. O carnaval de sambódromo, essa arte tão elitizada e tomada pela arrogância das celebridades, dos bicheiros e dos pagantes dos custosos camarotes vai de volta para as mãos do povo que o criou.
Leandro Vieira, carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira e um excelente discípulo de Mestre Joãosinho Trinta, decidiu ignorar reis, rainhas, escravocratas e bandeirantes que mancharam as páginas da história de nosso país de sangue, suor e opressão para resgatar a memória daqueles que não puderam ver seus nomes, fotos ou ilustrações nas páginas dos livros. Seguindo a cartilha de um dos maiores mestres da história do carnaval, Leandro fez questão de encerrar o desfile da Mangueira com uma bandeira do Brasil estilizada de verde e rosa e com os dizeres “Índios, Negros e Pobres” no lugar dos dizeres “Ordem e Progresso” que ocupam o símbolo da nossa soberania. Os excluídos pela “história oficial” receberam uma consagração merecida 519 anos depois da “descoberta” da Terra do Carnaval. Contar as memórias de nosso país sob a ótica de mulheres, de indígenas e de torturados pela Ditadura Militar em tempos de retrocesso democrático é, sobretudo, um gesto de ousadia e coragem tal qual Joãosinho fez à frente da Beija-Flor de Nilópolis trinta anos antes.
A folia não existe apenas para o
mero desfrute e entretenimento dos brasileiros nas ruas, avenidas e passarelas
do samba: ela existe também para que as pessoas possam demonstrar o
descontentamento coletivo perante o poder oficial, por isso a ira de nossos
governantes contra o carnaval é permanente. A sátira e a resistência são as
armas dos oprimidos para sobreviver às misérias e aos desmandos do dia-a-dia. Por
isso, não me surpreendi nem um pouco ao ver os defensores do atual governo,
conservador e retrógado por excelência, amaldiçoando o não-carnaval de 2021
como se fosse um castigo divino por uma imagem de um Jesus Cristo sendo
torturado por um diabo estilizado.
Ainda
precisamos de muitos Joãosinhos e Leandros que tenham a coragem de colocar os
tabus para desfilarem nas passarelas do samba para espantar a caretice e a
desonestidade daqueles que nos (des)governam. Para desgosto e desespero da
turba conservadora e mesquinha, em 2022 voltaremos para fazer um dos carnavais
mais bonitos da história, dignos de fazer parte das “memórias de fevereiro” que
fazem parte do inconsciente coletivo de muitas pessoas.