GAL COSTA – CANTAR (1974)
“Seja o avesso
Seja a metade
Se for começo
Fique à vontade…”
(“Me Deixe Mudo”, de
Walter Franco, interpretada por Gal Costa
no show Cantar)
Em famoso
depoimento concedido no ano de 1967, Caetano Veloso apontava a necessidade que
a música popular brasileira tinha de retomar a sua “linha evolutiva” para que
seguisse novamente rumo à modernidade perdida. Ao lançar as bases estéticas do
movimento tropicalista, o filho de D. Canô demonstrava a importância necessária
de reler o melhor da tradição da Bossa Nova sem deixar de referenciar os pontos
fortes da produção jovem da época – o Iê-Iê-Iê, a música nordestina,
sambalanço, samba-rock y otras cositas más… No entanto, com o fim prematuro do
Tropicalismo e o exílio forçado de Caetano e Gilberto Gil na Europa, a retomada
proposta pelos velhos baianos foi interrompida injusta e violentamente.
Durante o
período 1969-1972, Gal Costa foi o estandarte principal do movimento
tropicalista em atividade. Seus três primeiros discos e seu show/disco Fa-Tal: Gal a Todo Vapor fizeram de
Maria da Graça Costa Penna Burgos uma das maiores estrelas da canção popular
produzida neste país. Índia, lançado
por Gal em 1973, foi outra pedra fundamental para a consolidação do legado da
cantora e lhe rendeu enorme popularidade. Com uma carreira consolidada, o
(merecido) reconhecimento como grande artista e como arauto do desbunde e da
contracultura no Brasil, Gracinha estava pronta para correr novos riscos
musicais, mais radicais do que quaisquer outros que tinha tomado até então…
Para que
este risco tomasse fôlego e para que a retomada das propostas veiculadas pelo
Tropicalismo se concretizassem em um projeto musical, Caetano Veloso decidiu
dirigir o show e o disco que Gal Costa lançaria no ano de 1974. O resultado
desta velha parceria foi o antológico disco Cantar,
um dos trabalhos mais injustiçados de Gal na época de seu lançamento. A crítica
(e, de certa maneira, o público) tinha a expectativa de que este seria mais um
trabalho no qual o canto fosse rasgado, com direito a gritos, urros e solos de
guitarra lancinantes. Ledo engano: no final de Índia, com a inclusão de uma releitura feita por Gal para
“Desafinado” (Tom Jobim & Newton Mendonça), já se ensaiava um retorno de
Gracinha às suas raízes, ou seja, a musa tropicalista cantando Bossa Nova de
altíssima qualidade com o melhor de sua técnica joãogilbertiana.
Foto: Thereza Eugênia |
Entretanto,
enganam-se que Cantar é composto apenas de um
repertório consagrado nas décadas de 1950 e 1960. As canções inéditas para o
projeto receberam gravações definitivas: “Barato Total”, de Gil, abre o disco e
mostra o suingue, a ginga e a mensagem central de tudo que “a gente quer é
viver” sem ter grandes preocupações com a vida – uma proposta de vida hippie adornadas com os temperos mais
saborosos da Bahia. As experimentalistas “Lua, Lua, Lua, Lua” e “Joia”, de
Caetano, com letras curtas e que lembram as canções gravadas pela trupe
tropicalista no disco-manifesto Panis et
Circensis (1968). Além disto, Caetano é autor e co-autor de outras duas
canções fundamentais para o disco: “Flor do Cerrado” (um breve tratado sobre
vida, morte, permanência e a beleza que pode haver por trás disso) e a
belíssima “A Rã”, que merece uma menção à parte…
Gal ao lado de João Donato |
A primeira
gravação desta canção surgiu pela primeira em meados da década de 1960 em um
disco de Sérgio Mendes & Brazil 66, seguida de uma outra gravação feita
pelo criador da música, João Donato. Caetano aproveitou as vogais utilizadas por
Donato na gravação original, pôs letra e trouxe um personagem feminino para a
canção – o original, “The Frog”, induz o ouvinte em pensar em uma figura
masculina… Para a versão gravada em Cantar, Caetano convidou o próprio João
Donato para tocar piano elétrico, resultando em um arranjo enxuto, porém
sofisticado e bastante moderno.
Gal ao lado de João Donato |
Há também
três canções do repertório da Bossa Nova que receberam releitura de Gal neste
disco: a primeira, “Canção que Morre no Ar” (Carlos Lyra & Ronaldo
Bôscoli), recebeu um arranjo de cordas belíssimo de Perinho Albuquerque
(produtor musical de todos os discos dos velhos baianos no decorrer da década
de 1970) e uma das interpretações mais belíssimas da eterna Gracinha. Os versos
“Vem / O mundo é sempre amor / O pranto que desliza / Do seio de uma flor / É a
luz / Anjo sol (…)”, ao serem entoados por Gal, são resgatados dos clichês
bossanovísticos que tanto encantaram os músicos da geração dos tropicalistas.
As demais canções que foram resgatadas para o disco Cantar
foram da autoria de João Donato e de seu irmão, Lysias Ênio: “Flor de
Maracujá”, que recebeu um arranjo de metais em brasa que valoriza a
interpretação e a brejeirice de Gal Costa e a antológica “Até quem Sabe”, faixa
na qual a intérprete era acompanhada somente pelo piano de Donato.
Um compacto de Cantar |
A seleção de
repertório, capitaneada pela direção musical de Caetano Veloso, fizeram da boa
e velha Bossa algo irremediavelmente moderno e contemporâneo. Infelizmente, a
crítica musical acusou o disco de “saudosista”, “retrógrado”, dentre outras
baixarias… O público, como consequência, não deu muita bola para o disco, muito
menos para o show, que tinha uma versão insólita e surpreendente para “Me Deixe
Mudo”, de Walter Franco, que infelizmente ficou de fora do LP e das reedições de Cantar em CD,
para tristeza daqueles que curtem garimpar raridades da bela Gracinha. Outro
efeito desta rejeição foi que Gal Costa deixou de buscar grandes inovações em
seus trabalhos – ouso dizer que guinada semelhante só foi adotada por Gal em
2011 (36 anos depois do lançamento de Cantar), ao lançar Recanto, que teve direção musical do mesmo Caetano (sem o braço
direito de Perinho Albuquerque, substituído pela competência incontestável de
Moreno Veloso).
Outra sanção
sofrida pelo disco, na época, foi o desprezo geral pela beleza das três faixas finais do
lado B do disco. A primeira delas, a saborosa rumba “O Céu & O Som”
(Péricles Cavalcanti), continha o verso que deu nome ao disco. A segunda, por
sua vez, a pungente “Lágrimas Negras”, pareceria de Jorge Mautner e Nelson
Jacobina, é uma das gravações mais marcantes da música brasileira em todos os
tempos. A última é a singela canção de ninar “Chululu”, composta e entoada por
D. Mariah Costa para embalar Gracinha em seu colo para que ela dormisse com os
anjos.
Foto: Thereza Eugênia |
As gerações
que não vivenciaram o impacto causado por Cantar
e sua retomada da “linha evolutiva” em 1974 entenderam que, tal qual Gal cantou
em “O Céu & O Som”, “O caminho do céu é / o caminho do som”. O ato de
cantar exercido neste disco foi realizado com tamanha maestria por Gal Costa ao
ponto de que ir até as nuvens através de uma bela voz é algo perfeitamente
possível. As cantoras do Brasil e do mundo deveriam estudar este disco com
muita atenção para que possam exercer seu ofício com mais competência.
OUÇA O DISCO:
OUÇA O ÁUDIO DO SHOW: