14 de setembro de 2017

DISCOS DE VINIL # 42

GAL COSTA – CANTAR (1974)


Seja o avesso
Seja a metade
Se for começo
Fique à vontade…
(“Me Deixe Mudo”, de Walter Franco, interpretada por Gal Costa no show Cantar)


Em famoso depoimento concedido no ano de 1967, Caetano Veloso apontava a necessidade que a música popular brasileira tinha de retomar a sua “linha evolutiva” para que seguisse novamente rumo à modernidade perdida. Ao lançar as bases estéticas do movimento tropicalista, o filho de D. Canô demonstrava a importância necessária de reler o melhor da tradição da Bossa Nova sem deixar de referenciar os pontos fortes da produção jovem da época – o Iê-Iê-Iê, a música nordestina, sambalanço, samba-rock y otras cositas más… No entanto, com o fim prematuro do Tropicalismo e o exílio forçado de Caetano e Gilberto Gil na Europa, a retomada proposta pelos velhos baianos foi interrompida injusta e violentamente.


Durante o período 1969-1972, Gal Costa foi o estandarte principal do movimento tropicalista em atividade. Seus três primeiros discos e seu show/disco Fa-Tal: Gal a Todo Vapor fizeram de Maria da Graça Costa Penna Burgos uma das maiores estrelas da canção popular produzida neste país. Índia, lançado por Gal em 1973, foi outra pedra fundamental para a consolidação do legado da cantora e lhe rendeu enorme popularidade. Com uma carreira consolidada, o (merecido) reconhecimento como grande artista e como arauto do desbunde e da contracultura no Brasil, Gracinha estava pronta para correr novos riscos musicais, mais radicais do que quaisquer outros que tinha tomado até então…



Para que este risco tomasse fôlego e para que a retomada das propostas veiculadas pelo Tropicalismo se concretizassem em um projeto musical, Caetano Veloso decidiu dirigir o show e o disco que Gal Costa lançaria no ano de 1974. O resultado desta velha parceria foi o antológico disco Cantar, um dos trabalhos mais injustiçados de Gal na época de seu lançamento. A crítica (e, de certa maneira, o público) tinha a expectativa de que este seria mais um trabalho no qual o canto fosse rasgado, com direito a gritos, urros e solos de guitarra lancinantes. Ledo engano: no final de Índia, com a inclusão de uma releitura feita por Gal para “Desafinado” (Tom Jobim & Newton Mendonça), já se ensaiava um retorno de Gracinha às suas raízes, ou seja, a musa tropicalista cantando Bossa Nova de altíssima qualidade com o melhor de sua técnica joãogilbertiana.

Foto: Thereza Eugênia

Entretanto, enganam-se que Cantar é composto apenas de um repertório consagrado nas décadas de 1950 e 1960. As canções inéditas para o projeto receberam gravações definitivas: “Barato Total”, de Gil, abre o disco e mostra o suingue, a ginga e a mensagem central de tudo que “a gente quer é viver” sem ter grandes preocupações com a vida – uma proposta de vida hippie adornadas com os temperos mais saborosos da Bahia. As experimentalistas “Lua, Lua, Lua, Lua” e “Joia”, de Caetano, com letras curtas e que lembram as canções gravadas pela trupe tropicalista no disco-manifesto Panis et Circensis (1968). Além disto, Caetano é autor e co-autor de outras duas canções fundamentais para o disco: “Flor do Cerrado” (um breve tratado sobre vida, morte, permanência e a beleza que pode haver por trás disso) e a belíssima “A Rã”, que merece uma menção à parte…


Gal ao lado de João Donato

A primeira gravação desta canção surgiu pela primeira em meados da década de 1960 em um disco de Sérgio Mendes & Brazil 66, seguida de uma outra gravação feita pelo criador da música, João Donato. Caetano aproveitou as vogais utilizadas por Donato na gravação original, pôs letra e trouxe um personagem feminino para a canção – o original, “The Frog”, induz o ouvinte em pensar em uma figura masculina… Para a versão gravada em Cantar, Caetano convidou o próprio João Donato para tocar piano elétrico, resultando em um arranjo enxuto, porém sofisticado e bastante moderno.

Gal ao lado de João Donato

Há também três canções do repertório da Bossa Nova que receberam releitura de Gal neste disco: a primeira, “Canção que Morre no Ar” (Carlos Lyra & Ronaldo Bôscoli), recebeu um arranjo de cordas belíssimo de Perinho Albuquerque (produtor musical de todos os discos dos velhos baianos no decorrer da década de 1970) e uma das interpretações mais belíssimas da eterna Gracinha. Os versos “Vem / O mundo é sempre amor / O pranto que desliza / Do seio de uma flor / É a luz / Anjo sol (…)”, ao serem entoados por Gal, são resgatados dos clichês bossanovísticos que tanto encantaram os músicos da geração dos tropicalistas. As demais canções que foram resgatadas para o disco Cantar foram da autoria de João Donato e de seu irmão, Lysias Ênio: “Flor de Maracujá”, que recebeu um arranjo de metais em brasa que valoriza a interpretação e a brejeirice de Gal Costa e a antológica “Até quem Sabe”, faixa na qual a intérprete era acompanhada somente pelo piano de Donato.


Um compacto de Cantar

A seleção de repertório, capitaneada pela direção musical de Caetano Veloso, fizeram da boa e velha Bossa algo irremediavelmente moderno e contemporâneo. Infelizmente, a crítica musical acusou o disco de “saudosista”, “retrógrado”, dentre outras baixarias… O público, como consequência, não deu muita bola para o disco, muito menos para o show, que tinha uma versão insólita e surpreendente para “Me Deixe Mudo”, de Walter Franco, que infelizmente ficou de fora do LP e das reedições de Cantar em CD, para tristeza daqueles que curtem garimpar raridades da bela Gracinha. Outro efeito desta rejeição foi que Gal Costa deixou de buscar grandes inovações em seus trabalhos – ouso dizer que guinada semelhante só foi adotada por Gal em 2011 (36 anos depois do lançamento de Cantar), ao lançar Recanto, que teve direção musical do mesmo Caetano (sem o braço direito de Perinho Albuquerque, substituído pela competência incontestável de Moreno Veloso).



Outra sanção sofrida pelo disco, na época, foi o desprezo geral pela beleza das três faixas finais do lado B do disco. A primeira delas, a saborosa rumba “O Céu & O Som” (Péricles Cavalcanti), continha o verso que deu nome ao disco. A segunda, por sua vez, a pungente “Lágrimas Negras”, pareceria de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, é uma das gravações mais marcantes da música brasileira em todos os tempos. A última é a singela canção de ninar “Chululu”, composta e entoada por D. Mariah Costa para embalar Gracinha em seu colo para que ela dormisse com os anjos.


Foto: Thereza Eugênia


As gerações que não vivenciaram o impacto causado por Cantar e sua retomada da “linha evolutiva” em 1974 entenderam que, tal qual Gal cantou em “O Céu & O Som”, “O caminho do céu é / o caminho do som”. O ato de cantar exercido neste disco foi realizado com tamanha maestria por Gal Costa ao ponto de que ir até as nuvens através de uma bela voz é algo perfeitamente possível. As cantoras do Brasil e do mundo deveriam estudar este disco com muita atenção para que possam exercer seu ofício com mais competência. 

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