11 de setembro de 2016

TROVA # 86

DIA ONZE


“Where in hell can you go
Far from the things that you know
Far from the sprawl of concrete
That keeps crawling its way
About 1,000 miles a day?

(…)

Now, come on, shotgun bride
What makes me envy your life?
Faceless, nameless, innocent, blameless and free
What’s that like to be?”
(Natalie Merchant, 2001)



Em 2001, eu vivia a felicidade e a plena arrogância de um jovem de 20 anos de idade que achava que a juventude seria eterna e o mundo uma utopia a conquistar. Apesar de sempre ter desejado o Jornalismo, a Faculdade de Letras tinha mudado a minha vida: graças aos estudos de Literatura, passei a nutrir um amor gigantesco pela palavra. Todavia, o desejo de ser jornalista ainda me rondava, pois tinha recebido um convite de Izabel Leventoglu, uma de minhas professoras de Língua Portuguesa da Graduação, para escrever e editar o jornal universitário Estilo, do curso de Letras da Universidade Estácio de Sá. Caroline Rohan, parceira e amiga de boas e más horas, embarcou comigo naquele desafio.
Editar o Estilo era uma tarefa que nos rendeu muito suor, paciência, gargalhadas, algumas lágrimas, alguns aliados queridos, além de uns dois ou três desafetos. Vivíamos na sala de edição de materiais impressos da Universidade, que pertencia ao curso de Jornalismo, ao lado de Marita, uma editora que possuía uma paciência invejável conosco. Era uma terça-feira ensolarada e sinistra e resolvemos “matar” uma aula de Legislação para podermos finalizar uma das edições do jornal universitário. Carol e eu estávamos justamente nesta sala quando ouvimos as notícias no rádio de que Nova York estava em chamas. Diante da catástrofe, o periódico iria ter de esperar mais uma vez...
Os plantões do noticiário tratavam dos aviões sequestrados, do Pentágono em chamas, das torres gêmeas sendo atacadas e ruindo. O choque de presenciar um ataque terrorista obrigou a Universidade a interromper os afazeres aos quais se dedicava naquele momento para ver e rever as aeronaves colidindo contra o World Trade Center. Cheguei na frente da TV mais próxima a tempo de ver o segundo avião cumprir o seu trágico destino. Não me lembro de mais nada que tinha que fazer durante o dia: sei que tinha que ir para casa ou ir para o estágio, talvez. Mais tarde, de volta para as aulas do período da noite, vi a abertura do Jornal Nacional com os rostos de William Bonner e Fátima Bernardes se alternando através uma edição frenética e noticiando os fatos do dia como se fosse um espetáculo inédito. O mundo mudava depois de tudo aquilo. Para pior, infelizmente...


*

Quatro aviões sequestrados e derrubados: dois em Nova York, um em Washington, outro na Pennsylvania. Milhares de mortos. As torres gêmeas do World Trade Center caíram como se fossem singelos castelos de cartas – a diferença é que havia concreto, tijolos, pessoas, dor e sofrimento por dentro. O Pentágono em chamas. Um avião destroçado no meio de uma floresta graças à heroica resistência dos reféns. Choque e perplexidade. O mundo em alerta.
O maior feito dos talibãs não foi ter matado muitos de uma só vez. Foi ter dado cabo à “revolução televisionada” da qual tanto se escreveu e falou: o terrorismo se tornara, enfim, integrante do horário nobre. Se isso não foi revolucionário, não deve ser possível saber o que mais poderia ter sido...


Todas as pessoas se recordam bem do lugar onde estavam e do que estavam fazendo no exato momento de uma grande tragédia. As mortes de Ayrton Senna, Cássia Eller e Michael Jackson são exemplos para muitos de minha geração. O dia 11 de setembro de 2001 não apenas chocou o planeta inteiro, como entrou para a galeria de crimes hediondos dos quais a humanidade jamais poderá se esquecer ou se orgulhar como o Holocausto, a Bomba Atômica, a escravidão e os Tribunais do Santo Ofício, para não citar mais alguns.


*

Depois de recolher os destroços e os mortos, os Estados Unidos não conseguiram superar o luto dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. A Terra de Uncle Sam embarcou em uma onda de paranoia ridícula de censura que se espalhou pelas rádios e emissoras de TV: não era permitido tocar canções que nos remetessem aos atentados terroristas. Os artistas foram vítimas de um puritanismo reacionário motivado pela dor e pela morte de milhares de inocentes. Excluir os trabalhos de artistas e bandas que jamais tiveram inclinações terroristas do dial e dos canais televisivos era de um exagero patético, ridículo.  Alanis Morissette, U2, Pearl Jam, Tom Petty, Foo Fighters, Phil Collins, Frank Sinatra e o Red Hot Chilli Peppers foram alguns dos que sofreram tais sanções.


Chico Buarque um dia nos disse que a pior coisa de se viver em um regime ditatorial não é ser censurado pelo governo, e sim ter de se autocensurar. Um exemplo ocorrido nesta época se deu com uma de minhas cantoras preferidas, Natalie Merchant. A ex-vocalista do 10,000 Maniacs tinha concluído as gravações de seu terceiro disco de estúdio, Motherland, em 9 de setembro de 2001. Como consequências dos ataques que abalaram os EUA dois dias depois, Miss Merchant precisou reformular seus planos originais em relação ao projeto.


A primeira alteração foi feita com a arte do álbum – a sessão de fotos de capa e encarte consistia em imagens de crianças vestindo máscaras de oxigênio em um campo aberto. De acordo com a artista, as controversas imagens (hoje, desaparecidas) foram feitas em 10 de setembro. A sessão de fotos se reiniciaria no dia seguinte, o que jamais chegou a acontecer. A segunda mudança feita em Motherland foi em relação ao repertório: o disco que já abria com uma canção descaradamente política – “This House is on Fire” – contaria com uma das canções mais belas de Natalie Merchant: “The End”, uma “Imagine” do século XXI, foi influenciada por uma exposição de fotos do renomado fotógrafo Sebastião Salgado. A letra fala em um utópico fim da lei, das religiões e da perversidade dos homens.


Natalie não queria se tornar a inimiga número 1 da América, o que resultou na exclusão desta canção do disco. Os ataques de 11 de setembro de 2001 deram uma interpretação deturpada às canções de Motherland. Apesar das críticas bastante elogiosas ao álbum, a Warner e o selo Elektra fizeram pouca divulgação do disco e dispensou Natalie Merchant do casting da gravadora pouco tempo depois. Como consequência da autocensura, “The End” infelizmente só foi gravada em disco 13 anos depois.


Por outro lado, os norte-americanos nunca se recuperaram da dor causada pelos ataques de 11 de setembro. Ao andar pela parte sul de Manhattan em 2012, visitei o local da tragédia e a sensação era de um mal estar tremendo. O que mais me surpreendeu foi descobrir a St. Paul’s Chapel, localizada atrás do antigo World Trade Center. Aquele local, intacto e imune às barbáries do passar do tempo, abrigou moradores locais em um grande incêndio ocorrido na cidade no século XVIII e foi pólo de resgate das vítimas do terrorismo. Aquela capela me deu uma lição: a força dos justos sobrevive aos anos, o mesmo se aplica aos artistas da música e às belas canções que ouvimos por aí...



Tenho a consciência de que todo dia onze do nono mês do ano é uma oportunidade que temos para abominar o ódio e a injustiça para que possamos reafirmar nosso amor uns pelos outros e ouvir música que nos faça bem e nos faça pensar. É por isso que as canções são feitas. É por isso que escrevemos sobre música...