MARIA ALCINA – ESPÍRITO DE
TUDO (2017)
“Ninguém me salva
Ninguém me engana
Eu sou alegre
Eu sou contente
Eu sou cigana
Eu sou terrível
Eu sou o samba”
(Caetano Veloso, 1968)
Depois de meio século, a obra musical de Caetano Veloso ainda
surpreende o público devido a sua atualidade e o seu poder inabalável de
provocação. Arauto maior da Tropicália, o filho mais ilustre de Dona Canô foi
um dos grandes responsáveis pela modernização da música brasileira a partir do
final da década de 1960 e sempre atrai novas faixas de público para suas
apresentações ao vivo e jovens sempre dispostos a conhecer seus discos.
Foto: Alexandre Eça |
As canções de Caetano Veloso encontraram nas vozes de Gal
Costa e Maria Bethânia suas intérpretes mais frequentes e famosas no decorrer dos
últimos cinquenta anos. Por isso, trata-se de um enorme desafio para qualquer
cantora de música brasileira se aventurar em um repertório tão marcante. Todavia,
Maria Alcina não se fez de rogada e fez uso de sua experiência de mais de
quatro décadas no meio musical para gravar Espírito de Tudo,
um álbum no qual ela regravou 10 canções de Caetano.
Foto: Murilo Alvesso |
O nome deste trabalho de Maria Alcina foi retirado de um dos
versos de “Gênesis”, canção composta por Caetano para os Doces Bárbaros, em
1976. Produzido por Thiago Marques Luiz, o CD foi gravado entre março e abril
de 2017, contou com a direção musical de Rovilson Pascoal e seguiu uma
linguagem musical mais ligada ao Rock
e ao eletrônico. A banda que acompanhou Alcina merece uma menção honrosa: além
de Rovilson (guitarras e synth), Ricardo Prado (baixo e teclados) e Arthur Kunz
(bateria e programações) foram os três mosqueteiros que deram vida a estre
projeto. Os músicos ainda contaram com a participação do baterista Gustavo
Souza e da percussionista Michelle Abu em algumas faixas. Não menos importante
é a rápida e marcante contribuição do lendário diretor teatral José Celso
Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, na introdução de “Tropicália”.
O repertório de Espírito de Tudo
consegue a tarefa inglória de abranger cinco décadas do cancioneiro de Caetano
Veloso. Da década de 1960, “Tropicália” e “A Voz do Morto” integram o disco;
dos anos 1970, temos “Gênesis” e “Os Mais Doces Bárbaros” – compostas para o
repertório do grupo Os Doces Bárbaros (formado por Caetano, Gilberto Gil, Gal
Costa e Maria Bethânia em 1976); “Língua”, “O Estrangeiro” e “Fora da Ordem”
foram compostas para o repertório das décadas de 1980 e 1990; “Rock ‘n’ Raul”, “Rocks”
e “A Cor Amarela” figuram nos trabalhos lançados por Caê nos anos 2000.
Foto: Vinícius Rangel |
O elemento
mais encantador do resultado final do CD é que a voz grave e potente de Maria
Alcina consegue dar uma dimensão ainda mais forte aos versos críticos de
obras-primas como “Fora da Ordem”, “Tropicália”, “O Estrangeiro” e “Rock ‘n’
Raul”. Outro trunfo de Espírito de Tudo
é a escolha de canções nada óbvias do repertório de Caetano como as pouco
conhecidas “Rock ‘n’ Raul” e a deliciosa “A Cor Amarela” – gravadas pelo autor,
respectivamente, nos álbuns Noites do
Norte (2000) e Zii & Zie
(2009). Cada canção na voz de Alcina se transforma em um verdadeiro carnaval
regado a plumas, paetês e irreverência entoados por um dos registros graves
mais belos da música brasileira – as releituras de “Língua” e de “Rocks”,
repleta de batidas eletrônicas e sons furiosos de guitarra são dois exemplos
disto.
No entanto,
o momento mais emocionante do CD Espírito de Tudo
ficou reservado para a última faixa. A versão de Alcina para “A
Voz do Morto”, canção que Caetano Veloso compôs sob encomenda de Aracy de
Almeida é repleta de emoção e de referências a bardos do movimento tropicalista
– a mesma Aracy se encontra com Chacrinha, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha e
Grande Otelo na pele de Macunaíma nas plumas e na voz da intérprete de “Fio
Maravilha” e “Kid Cavaquinho”.
50 anos após
o surgimento da Tropicália e 45 anos depois do mundo ter conhecido uma das
vozes graves mais marcantes do planeta, Maria Alcina conseguiu fazer um disco
vibrante e atual. Tropicalista, mas com direito a plumas, paetês e a irreverência
típicas de uma das maiores artistas do Brasil.
Foto e Montagem: Murilo Alvesso |