6 de julho de 2017

DISCOS DE VINIL # 32

MARIA ALCINA – ESPÍRITO DE TUDO (2017)



Ninguém me salva
Ninguém me engana
Eu sou alegre
Eu sou contente
Eu sou cigana
Eu sou terrível
Eu sou o samba
(Caetano Veloso, 1968)


         Depois de meio século, a obra musical de Caetano Veloso ainda surpreende o público devido a sua atualidade e o seu poder inabalável de provocação. Arauto maior da Tropicália, o filho mais ilustre de Dona Canô foi um dos grandes responsáveis pela modernização da música brasileira a partir do final da década de 1960 e sempre atrai novas faixas de público para suas apresentações ao vivo e jovens sempre dispostos a conhecer seus discos.


Foto: Alexandre Eça

         As canções de Caetano Veloso encontraram nas vozes de Gal Costa e Maria Bethânia suas intérpretes mais frequentes e famosas no decorrer dos últimos cinquenta anos. Por isso, trata-se de um enorme desafio para qualquer cantora de música brasileira se aventurar em um repertório tão marcante. Todavia, Maria Alcina não se fez de rogada e fez uso de sua experiência de mais de quatro décadas no meio musical para gravar Espírito de Tudo, um álbum no qual ela regravou 10 canções de Caetano.

Foto: Murilo Alvesso

         O nome deste trabalho de Maria Alcina foi retirado de um dos versos de “Gênesis”, canção composta por Caetano para os Doces Bárbaros, em 1976. Produzido por Thiago Marques Luiz, o CD foi gravado entre março e abril de 2017, contou com a direção musical de Rovilson Pascoal e seguiu uma linguagem musical mais ligada ao Rock e ao eletrônico. A banda que acompanhou Alcina merece uma menção honrosa: além de Rovilson (guitarras e synth), Ricardo Prado (baixo e teclados) e Arthur Kunz (bateria e programações) foram os três mosqueteiros que deram vida a estre projeto. Os músicos ainda contaram com a participação do baterista Gustavo Souza e da percussionista Michelle Abu em algumas faixas. Não menos importante é a rápida e marcante contribuição do lendário diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, na introdução de “Tropicália”.



         O repertório de Espírito de Tudo consegue a tarefa inglória de abranger cinco décadas do cancioneiro de Caetano Veloso. Da década de 1960, “Tropicália” e “A Voz do Morto” integram o disco; dos anos 1970, temos “Gênesis” e “Os Mais Doces Bárbaros” – compostas para o repertório do grupo Os Doces Bárbaros (formado por Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia em 1976); “Língua”, “O Estrangeiro” e “Fora da Ordem” foram compostas para o repertório das décadas de 1980 e 1990; “Rock ‘n’ Raul”, “Rocks” e “A Cor Amarela” figuram nos trabalhos lançados por Caê nos anos 2000.


Foto: Vinícius Rangel

O elemento mais encantador do resultado final do CD é que a voz grave e potente de Maria Alcina consegue dar uma dimensão ainda mais forte aos versos críticos de obras-primas como “Fora da Ordem”, “Tropicália”, “O Estrangeiro” e “Rock ‘n’ Raul”. Outro trunfo de Espírito de Tudo é a escolha de canções nada óbvias do repertório de Caetano como as pouco conhecidas “Rock ‘n’ Raul” e a deliciosa “A Cor Amarela” – gravadas pelo autor, respectivamente, nos álbuns Noites do Norte (2000) e Zii & Zie (2009). Cada canção na voz de Alcina se transforma em um verdadeiro carnaval regado a plumas, paetês e irreverência entoados por um dos registros graves mais belos da música brasileira – as releituras de “Língua” e de “Rocks”, repleta de batidas eletrônicas e sons furiosos de guitarra são dois exemplos disto.


No entanto, o momento mais emocionante do CD Espírito de Tudo ficou reservado para a última faixa. A versão de Alcina para “A Voz do Morto”, canção que Caetano Veloso compôs sob encomenda de Aracy de Almeida é repleta de emoção e de referências a bardos do movimento tropicalista – a mesma Aracy se encontra com Chacrinha, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha e Grande Otelo na pele de Macunaíma nas plumas e na voz da intérprete de “Fio Maravilha” e “Kid Cavaquinho”.



50 anos após o surgimento da Tropicália e 45 anos depois do mundo ter conhecido uma das vozes graves mais marcantes do planeta, Maria Alcina conseguiu fazer um disco vibrante e atual. Tropicalista, mas com direito a plumas, paetês e a irreverência típicas de uma das maiores artistas do Brasil.


Foto e Montagem: Murilo Alvesso