DOIS RECANTOS PARA GAL COSTA
Um Recanto sem muitos retoques... |
Para minha querida irmã, Renata
Emily Fonseca Rodrigues,
a galcostiana mais que existe e que eu sempre quero ter perto de mim.
Recanto # 1: Palco de “neguinho”
Show de Gal Costa hoje em
dia ficou tão difícil quanto ver um show de Chico Buarque: é uma verdadeira
raridade. Depois que a cantora se afastou das turnês e dos discos para curtir a
vida e o filho Gabriel, tornou-se quase uma missão impossível para nós, meros
mortais, estarmos diante da Diva
Tropicalista em plena ação. Por estas e outras razões, nem pensei duas
vezes em garantir meu ingresso para uma única noite de seu espetáculo Recanto no Via Funchal, uma das casas de
shows mais chiques de São Paulo. E aproveitei para chamar uma horda de amigos
queridos para virem junto! Afinal, emoções como esta precisam ser divididas...
Como cheguei cedo demais
para o espetáculo e não tinha onde me aconchegar decentemente para esperar o
show começar, resolvi ir até um shopping
center nas redondezas do Via Funchal para matar o tempo e tentar me
distrair um pouquinho. Quando entrei no dito estabelecimento, tive a sensação
de que estava diante de uma espécie de corte doa sociedade brasileira, ou
melhor, de um dos maiores templos do consumo paulistano: o JK Iguatemi, recém-inaugurado,
já se destaca por ser um dos estabelecimentos mais chiques (e caros!) da
capital paulista. Várias lojas de grifes nacionais e internacionais de
primeiríssima grandeza, vitrines cuidadosamente decoradas, joias que custam
tanto quanto carros populares, pessoas risonhas e contentes com sabe-se lá o
quê... Ah, e claro: nenhuma livraria, nenhuma loja de discos ou coisa parecida:
afinal, ler e ouvir música de qualidade
para quê se nós temos a Daslu, não é mesmo?
A única coisa que havia de interessante no JK Iguatemi naquela noite era o banner com as joias... hehehe |
Pelo fato de simplesmente
não conseguir fugir da minha já não tão infalível memória musical, comecei a
dirigir meus pensamentos para “Neguinho”, canção de Caetano Veloso gravada por
Gal em seu mais recente CD, Recanto
(2011):
“Neguinho não lê, neguinho não vê,
não crê, pra quê
Neguinho nem quer saber O que afinal define a vida de neguinho
Neguinho compra o jornal,
neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer Votou, chorou, gozou:
o que importa, neguinho?
(...)
Se o nego acha que é
difícil, fácil,
tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem –
neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma,
um carro, GPS e acha que é feliz
Neguinho também só quer saber
de filme em shopping
(...)
Neguinho vai pra Europa,
States, Disney
e volta cheio de si
Neguinho cata lixo
no Jardim Gramacho”
“Neguinho”
Canção de Caetano Veloso
gravada por Gal Costa em Recanto (2011)
|
Os versos ácidos de
Mestre Caetano, materializados em som e fúria pela voz de Gal e pela concepção
musical de Kassin, Moreno e Zeca Veloso, revelam um mundo repleto de
futilidades, grifes de peso, cinemas (no JK Iguatemi há o primeiro cinema em
4-D do Brasil, cujo ingresso custa uma verdadeira fortuna!!!) e pessoas que,
além de preocupadas com a própria imagem que resplandece no espelho de Alice,
riem sem razão de um humor real, acham graça em trivialidades das mais
excêntricas, etc. Enfim, chega a ser irônico que a crítica dirigida a estas
pessoas é propagada a poucos metros de onde elas estão – o Via Funchal fica a menos de 400m do JK Iguatemi...
Pergunto-me se as pessoas
que andam por estes corredores algum dia já apreciaram música de qualidade,
leram um livro bacana sem ser por mera obrigação ou se já desligaram a
televisão para fazer algo mais inteligente. Não precisa ser tão genial,
estudioso e/ou especialista para concluir que os aparelhos de TV que estão nas
moradias destas pessoas são de plasma retinta e reluzente e de que nada escapa
das lentes potentes de seus aparelhinhos com a maçã mordida e que são movidos a
telefonia celular (Sim, a futilidade elege seus símbolos e lhes oferece um
significado completamente diferente... / Não, eu não consigo me encaixar em
vários destes clichês, já que eu também nasci para ser gauche na vida!).
Nem tudo que reluz é verdadeiramente valioso... |
É por estas e outras razões que eu resolvi voltar para
a porta do Via Funchal e esperar pelo evento por lá mesmo antes que eu
começasse a viver o que Gal canta em “Neguinho”...
Recanto # 2: Palco da Voz
Em uma época na qual os recursos
da Engenharia de Som como os Pro-Tools
e o Autotune conseguem operar
milagres com cantoras sem voz e/ou com falta de talento, ouvir a voz de Gal
Costa ao vivo é sinônimo de um “bálsamo benigno” para os nossos olhos e ouvidos
– aos 67 anos, recém-completados, Gal ainda continua sendo uma das mulheres
mais bonitas do Brasil, fato que fica ainda mais evidente para todos quando ela
está em cima do palco. Quando a musa surgiu em meio a um palco escurecido e
solenemente sentada em um banco (este momento jamais a caracterizaria como uma Diva, por exemplo...) cantando os versos
de “Da Maior Importância”, a comoção foi coletiva. Não só porque sua persona de palco se oferecia ao público
discretamente, mas principalmente porque a cantora que fez sua aparição no
palco do Via Funchal em 22 de Setembro de 2012 ainda é a Gracinha
joãogilbertiana que encantou Caetano Veloso e outros milhões de pessoas pelo
Brasil afora.
Gal no início do show Recanto |
Porém, a Gal Costa que hoje se apresenta ao público é
uma soma perfeita de todas as personae
as quais ela deu vida em mais de 40 anos de carreira: a musa de banquinhos e
violões que nutria seu amor imenso pela música de João Gilberto; a Índia sexy,
brejeira e com tanto sabor de Bahia quanto qualquer personagem feminina de
Jorge Amado (quem aqui nunca associou a
figura de Gal à sensualidade de Gabriela Cravo & Canela em um mero efeito
de imagem e semelhança?!); a Diva Tropical, senhora absoluta de seu talento
e repertório, que canta(va) o retrato de um país durante as décadas de 1970 e
1980; a (pós-)tropicalista cabeluda que cantava e gritava alto e que era a
cantora mais moderna do Brasil. Gal consegue fazer uso das emoções com a
experiência de um ator que interpreta um King
Lear, de Shakespeare, sem deixar de parecer uma cópia de si mesma ou
repetitiva em momentos nos quais precisou revisitar seu já re/conhecido
repertório.
Várias em uma única voz: Tropicalista, Joãogilbertiana, Índia, Diva... |
A Gal Costa que ressurgiu para o grande público em
2011 é uma voz que (ainda) está ligada ao que se produz de mais moderno em
termos de música neste país. Recanto,
seu 35.º disco, é um trabalho que teve a criação e (boa parte da) concepção
musical ousada de Caetano Veloso. “Tudo Dói” e “Recanto Escuro” são canções
inéditas interpretadas por Gal na primeira parte do show que revelam uma voz
amparada por arranjos menos grandiloquentes, marcados pela concisão e com
fortíssimo “sotaque” eletrônico – uma ironia genial da parte do Mano Caetano em
resgatar a voz feminina principal da Tropicália através de subterfúgios
utilizados por artistas de alcance vocal mais limitado. Quando o show prossegue
com “Divino, Maravilhoso” (Caetano Veloso & Gilberto Gil), “Folhetim”
(Chico Buarque) e “Mãe” (Caetano Veloso), Gal consegue arrancar suspiros de
encantamento a lágrimas de emoção ao reviver versos (muitos deles especialmente
compostos para a sua voz lá pelos idos dos anos 1960 e dos anos 1970) como “Sou triste, quase um bicho triste / E
brilhas mesmo assim / Eu canto, grito, corro, rio / E nunca chego a ti”.
O olhar brejeiro mais sedutor da música brasileira... |
Logo após uma interpretação pungente de “Segunda” (samba de Caetano Veloso feito à moda do recôncavo baiano), a estrela entoou um
dos clássicos mais belos e significativos da canção brasileira, “Minha Voz,
Minha Vida”, cujos versos estão reproduzidos aqui, pois não consigo ter a
capacidade de descrever a beleza que existe neles:
“Minha voz, minha vida
Meu segredo e minha revelação Minha luz escondida Minha bússola e minha desorientação Se o amor escraviza Mas é a única libertação Minha voz é precisa Vida que não é menos minha que da canção Por ser feliz, por sofrer Por esperar, eu canto Pra ser feliz, pra sofrer Para esperar eu canto Meu amor, acredite Que se pode crescer assim pra nós Uma flor sem limite É somente por que eu trago a vida aqui na voz Minha voz, minha vida Meu segredo e minha revelação Minha luz escon...dida Minha bússola e minha desorientação Se o amor escraviza Mas é a única libertação Minha voz é precisa Vida que não é menos minha que da canção Por ser feliz, por sofrer Por esperar, eu canto Pra ser feliz, pra sofrer Para esperar eu canto Meu amor, acredite Que se pode crescer assim pra nós Uma flor sem limite É somente por que eu trago a vida aqui na voz”
“Minha Voz, Minha Vida”
Canção de Caetano Veloso
gravada por Gal Costa em Minha Voz (1982)
|
Nesta altura do espetáculo, Gal Costa já
tinha feito 1/3 de um dos melhores shows da temporada 2011/2012. A musa poderia
simplesmente assumir seu lado mais Diva e apenas optar por sucessos
radiofônicos ou pelas canções (um tanto) obscuras de seu mais recente
repertório – uma postura completamente distante do que as cantoras do mainstream geralmente fazem. A saída
escolhida por Gal e seus três fiéis escudeiros de palco (Pedro Baby – Guitarra
& Violões / Bruno Di Lullo – Baixo / Domenico Lancelotti – Bateria,
Programações & Vocais) foi lançar mão das duas tendências. A musa
tropicalista de ontem não deixava de “dialogar” com a cantora cult que é uma velha conhecida de todos
nós. “Vapor Barato” (Waly Salomão & Jards Macalé), por exemplo, ficou
irreconhecivelmente bela neste show não apenas por se tratar de uma canção
emblemática com um arranjo brilhante, como também pelo fato de que Pedro Baby e
Domenico Lancelotti serem músicos tão ousados a ponto de oferecerem
contribuições altamente significativas para o espetáculo. “Um Dia de Domingo”
(Michael Sullivan & Paulo Massadas), sucesso imortalizado na vozes de Gal e
Tim Maia, teve direito a uma interpretação antológica com direito a uma
“aparição” do Síndico no palco, para
emoção de todos os que estiveram presentes na plateia. “Neguinho”, ao ser
executada ao vivo, ganha uma força absurdamente maior e leva o público ao
êxtase.
Ao final de Recanto
– o show –, todo o público já estava completamente arrebatado pela Voz que
dançava com “São Dimas, Robin Hood / E o Anjo 45” ao som de “Miami Maculelê”.
Gal Costa poderia muito bem retornar ao palco e cantar mais alguns clássicos
que fizeram dela uma das cantoras mais importantes da música brasileira, porém
não foi o que ela fez – a primeira canção que abriu o encore foi “Mansidão”, um dos lados B mais ocultos do cancioneiro
de Caetano Veloso. Uma parte do público, já bem próximo da Voz, aplaudiu a estrela da noite efusivamente e ficou visível e
sonoramente extasiado com as três pérolas que fecham o setlist da noite: “Força Estranha” e “Meu Bem, Meu Mal” (Caetano
Veloso) e uma surpreendente “Modinha para Gabriela” (Dorival Caymmi), para
deleite dos fãs de Gabriela – a novela – de ontem e hoje.
Recanto – disco e
show – coloca Gal Costa de volta ao lugar do qual ela nunca deveria ter saído:
na posição da cantora mais moderna
deste país. Sem precisar de pose, jogadas publicitárias e/ou a constante
necessidade de querer aparecer na mídia através de factoides baratos, para a alegria de todos os amantes da
boa música. E dos que amam ver Gal fazer sua arte cantando com muito amor como
se estivesse projetando sua voz em uma panela vazia...
23 motivos para que você assista Recanto
onde você estiver...
1.
Da Maior Importância
2.
Tudo Dói
4.
Divino, Maravilhoso
7.
Segunda
8.
Minha Voz, Minha Vida
9.
Barato Total
11.
Cara do Mundo
12.
Deus é Amor
13.
Dom de Iludir
17.
Vapor Barato
18.
Um Dia de Domingo
19.
Miami Maculelê
20.
Mansidão
22.
Meu Bem, Meu Mal
23.
Modinha para Gabriela
Um show inesquecível ao lado de pessoas muito queridas!!! |