3 de outubro de 2012

TROVA # 12


DOIS RECANTOS PARA GAL COSTA

 

Um Recanto sem muitos retoques...
 
Para minha querida irmã, Renata Emily Fonseca Rodrigues,

a galcostiana mais que existe e que eu sempre quero ter perto de mim.

 

Recanto # 1: Palco de “neguinho

 
          Show de Gal Costa hoje em dia ficou tão difícil quanto ver um show de Chico Buarque: é uma verdadeira raridade. Depois que a cantora se afastou das turnês e dos discos para curtir a vida e o filho Gabriel, tornou-se quase uma missão impossível para nós, meros mortais, estarmos diante da Diva Tropicalista em plena ação. Por estas e outras razões, nem pensei duas vezes em garantir meu ingresso para uma única noite de seu espetáculo Recanto no Via Funchal, uma das casas de shows mais chiques de São Paulo. E aproveitei para chamar uma horda de amigos queridos para virem junto! Afinal, emoções como esta precisam ser divididas...
Uma mulher conseguiu a proeza de me fazer mudar de ideia do meu desejo de ir para casa depois de uma maratona intensa de trabalho aos sábados. O nome de batismo da moçoila? Maria da Graça Costa Penna Burgos – mas você também pode chama-la de Gracinha, de Gal, Gal Costa ou, simplesmente, a Musa Maior de várias gerações de cantoras brasileiras.

          Como cheguei cedo demais para o espetáculo e não tinha onde me aconchegar decentemente para esperar o show começar, resolvi ir até um shopping center nas redondezas do Via Funchal para matar o tempo e tentar me distrair um pouquinho. Quando entrei no dito estabelecimento, tive a sensação de que estava diante de uma espécie de corte doa sociedade brasileira, ou melhor, de um dos maiores templos do consumo paulistano: o JK Iguatemi, recém-inaugurado, já se destaca por ser um dos estabelecimentos mais chiques (e caros!) da capital paulista. Várias lojas de grifes nacionais e internacionais de primeiríssima grandeza, vitrines cuidadosamente decoradas, joias que custam tanto quanto carros populares, pessoas risonhas e contentes com sabe-se lá o quê... Ah, e claro: nenhuma livraria, nenhuma loja de discos ou coisa parecida: afinal, ler e ouvir música de qualidade para quê se nós temos a Daslu, não é mesmo?

A única coisa que havia de interessante no JK Iguatemi naquela noite era o banner com as joias... hehehe
 
          Pelo fato de simplesmente não conseguir fugir da minha já não tão infalível memória musical, comecei a dirigir meus pensamentos para “Neguinho”, canção de Caetano Veloso gravada por Gal em seu mais recente CD, Recanto (2011):

 

“Neguinho não lê, neguinho não vê,
não crê, pra quê
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho
Neguinho compra o jornal,
neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou:
o que importa, neguinho?
 
(...)
 
Se o nego acha que é difícil, fácil,
tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem –
neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma,
 um carro, GPS e acha que é feliz
Neguinho também só quer saber
de filme em shopping
 
(...)
 
Neguinho vai pra Europa, States, Disney
e volta cheio de si
Neguinho cata lixo
no Jardim Gramacho”
 
Neguinho
Canção de Caetano Veloso
gravada por Gal Costa em Recanto (2011)
 
 
 
 

 

          Os versos ácidos de Mestre Caetano, materializados em som e fúria pela voz de Gal e pela concepção musical de Kassin, Moreno e Zeca Veloso, revelam um mundo repleto de futilidades, grifes de peso, cinemas (no JK Iguatemi há o primeiro cinema em 4-D do Brasil, cujo ingresso custa uma verdadeira fortuna!!!) e pessoas que, além de preocupadas com a própria imagem que resplandece no espelho de Alice, riem sem razão de um humor real, acham graça em trivialidades das mais excêntricas, etc. Enfim, chega a ser irônico que a crítica dirigida a estas pessoas é propagada a poucos metros de onde elas estão – o Via Funchal fica a menos de 400m do JK Iguatemi...

          Pergunto-me se as pessoas que andam por estes corredores algum dia já apreciaram música de qualidade, leram um livro bacana sem ser por mera obrigação ou se já desligaram a televisão para fazer algo mais inteligente. Não precisa ser tão genial, estudioso e/ou especialista para concluir que os aparelhos de TV que estão nas moradias destas pessoas são de plasma retinta e reluzente e de que nada escapa das lentes potentes de seus aparelhinhos com a maçã mordida e que são movidos a telefonia celular (Sim, a futilidade elege seus símbolos e lhes oferece um significado completamente diferente... / Não, eu não consigo me encaixar em vários destes clichês, já que eu também nasci para ser gauche na vida!).

Nem tudo que reluz é verdadeiramente valioso...
 
      É por estas e outras razões que eu resolvi voltar para a porta do Via Funchal e esperar pelo evento por lá mesmo antes que eu começasse a viver o que Gal canta em “Neguinho”...

 

Recanto # 2: Palco da Voz

 

          Em uma época na qual os recursos da Engenharia de Som como os Pro-Tools e o Autotune conseguem operar milagres com cantoras sem voz e/ou com falta de talento, ouvir a voz de Gal Costa ao vivo é sinônimo de um “bálsamo benigno” para os nossos olhos e ouvidos – aos 67 anos, recém-completados, Gal ainda continua sendo uma das mulheres mais bonitas do Brasil, fato que fica ainda mais evidente para todos quando ela está em cima do palco. Quando a musa surgiu em meio a um palco escurecido e solenemente sentada em um banco (este momento jamais a caracterizaria como uma Diva, por exemplo...) cantando os versos de “Da Maior Importância”, a comoção foi coletiva. Não só porque sua persona de palco se oferecia ao público discretamente, mas principalmente porque a cantora que fez sua aparição no palco do Via Funchal em 22 de Setembro de 2012 ainda é a Gracinha joãogilbertiana que encantou Caetano Veloso e outros milhões de pessoas pelo Brasil afora.



Gal no início do show Recanto

Porém, a Gal Costa que hoje se apresenta ao público é uma soma perfeita de todas as personae as quais ela deu vida em mais de 40 anos de carreira: a musa de banquinhos e violões que nutria seu amor imenso pela música de João Gilberto; a Índia sexy, brejeira e com tanto sabor de Bahia quanto qualquer personagem feminina de Jorge Amado (quem aqui nunca associou a figura de Gal à sensualidade de Gabriela Cravo & Canela em um mero efeito de imagem e semelhança?!); a Diva Tropical, senhora absoluta de seu talento e repertório, que canta(va) o retrato de um país durante as décadas de 1970 e 1980; a (pós-)tropicalista cabeluda que cantava e gritava alto e que era a cantora mais moderna do Brasil. Gal consegue fazer uso das emoções com a experiência de um ator que interpreta um King Lear, de Shakespeare, sem deixar de parecer uma cópia de si mesma ou repetitiva em momentos nos quais precisou revisitar seu já re/conhecido repertório.  


Várias em uma única voz: Tropicalista, Joãogilbertiana, Índia, Diva...
A Gal Costa que ressurgiu para o grande público em 2011 é uma voz que (ainda) está ligada ao que se produz de mais moderno em termos de música neste país. Recanto, seu 35.º disco, é um trabalho que teve a criação e (boa parte da) concepção musical ousada de Caetano Veloso. “Tudo Dói” e “Recanto Escuro” são canções inéditas interpretadas por Gal na primeira parte do show que revelam uma voz amparada por arranjos menos grandiloquentes, marcados pela concisão e com fortíssimo “sotaque” eletrônico – uma ironia genial da parte do Mano Caetano em resgatar a voz feminina principal da Tropicália através de subterfúgios utilizados por artistas de alcance vocal mais limitado. Quando o show prossegue com “Divino, Maravilhoso” (Caetano Veloso & Gilberto Gil), “Folhetim” (Chico Buarque) e “Mãe” (Caetano Veloso), Gal consegue arrancar suspiros de encantamento a lágrimas de emoção ao reviver versos (muitos deles especialmente compostos para a sua voz lá pelos idos dos anos 1960 e dos anos 1970) como “Sou triste, quase um bicho triste / E brilhas mesmo assim / Eu canto, grito, corro, rio / E nunca chego a ti”.
 


O olhar brejeiro mais sedutor da música brasileira...

Logo após uma interpretação pungente de “Segunda” (samba de Caetano Veloso feito à moda do recôncavo baiano), a estrela entoou um dos clássicos mais belos e significativos da canção brasileira, “Minha Voz, Minha Vida”, cujos versos estão reproduzidos aqui, pois não consigo ter a capacidade de descrever a beleza que existe neles:

 

“Minha voz, minha vida
Meu segredo e minha revelação
Minha luz escondida
Minha bússola e minha desorientação
Se o amor escraviza
Mas é a única libertação
Minha voz é precisa
Vida que não é menos minha que da canção
Por ser feliz, por sofrer
Por esperar, eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer
Para esperar eu canto
Meu amor, acredite
Que se pode crescer assim pra nós
Uma flor sem limite
É somente por que eu trago a vida aqui na voz
Minha voz, minha vida
Meu segredo e minha revelação
Minha luz escon...dida
Minha bússola e minha desorientação
Se o amor escraviza
Mas é a única libertação
Minha voz é precisa
Vida que não é menos minha que da canção
Por ser feliz, por sofrer
Por esperar, eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer
Para esperar eu canto
Meu amor, acredite
Que se pode crescer assim pra nós
Uma flor sem limite
É somente por que eu trago a vida aqui na voz”
 
Minha Voz, Minha Vida
Canção de Caetano Veloso
gravada por Gal Costa em Minha Voz (1982)
 
 

Gal & Caetano - o compositor e sua maior intérprete
 
          Nesta altura do espetáculo, Gal Costa já tinha feito 1/3 de um dos melhores shows da temporada 2011/2012. A musa poderia simplesmente assumir seu lado mais Diva e apenas optar por sucessos radiofônicos ou pelas canções (um tanto) obscuras de seu mais recente repertório – uma postura completamente distante do que as cantoras do mainstream geralmente fazem. A saída escolhida por Gal e seus três fiéis escudeiros de palco (Pedro Baby – Guitarra & Violões / Bruno Di Lullo – Baixo / Domenico Lancelotti – Bateria, Programações & Vocais) foi lançar mão das duas tendências. A musa tropicalista de ontem não deixava de “dialogar” com a cantora cult que é uma velha conhecida de todos nós. “Vapor Barato” (Waly Salomão & Jards Macalé), por exemplo, ficou irreconhecivelmente bela neste show não apenas por se tratar de uma canção emblemática com um arranjo brilhante, como também pelo fato de que Pedro Baby e Domenico Lancelotti serem músicos tão ousados a ponto de oferecerem contribuições altamente significativas para o espetáculo. “Um Dia de Domingo” (Michael Sullivan & Paulo Massadas), sucesso imortalizado na vozes de Gal e Tim Maia, teve direito a uma interpretação antológica com direito a uma “aparição” do Síndico no palco, para emoção de todos os que estiveram presentes na plateia. “Neguinho”, ao ser executada ao vivo, ganha uma força absurdamente maior e leva o público ao êxtase.


          Ao final de Recanto – o show –, todo o público já estava completamente arrebatado pela Voz que dançava com “São Dimas, Robin Hood / E o Anjo 45” ao som de “Miami Maculelê”. Gal Costa poderia muito bem retornar ao palco e cantar mais alguns clássicos que fizeram dela uma das cantoras mais importantes da música brasileira, porém não foi o que ela fez – a primeira canção que abriu o encore foi “Mansidão”, um dos lados B mais ocultos do cancioneiro de Caetano Veloso. Uma parte do público, já bem próximo da Voz, aplaudiu a estrela da noite efusivamente e ficou visível e sonoramente extasiado com as três pérolas que fecham o setlist da noite: “Força Estranha” e “Meu Bem, Meu Mal” (Caetano Veloso) e uma surpreendente “Modinha para Gabriela” (Dorival Caymmi), para deleite dos fãs de Gabriela – a novela – de ontem e hoje.


          Recanto – disco e show – coloca Gal Costa de volta ao lugar do qual ela nunca deveria ter saído: na posição da cantora mais moderna deste país. Sem precisar de pose, jogadas publicitárias e/ou a constante necessidade de querer aparecer na mídia através de factoides baratos, para a alegria de todos os amantes da boa música. E dos que amam ver Gal fazer sua arte cantando com muito amor como se estivesse projetando sua voz em uma panela vazia...

 

23 motivos para que você assista Recanto onde você estiver...

 

1.      Da Maior Importância

 

2.      Tudo Dói
 
      3.      Recanto Escuro
 
4.      Divino, Maravilhoso

     5.      Folhetim
 
     6.      Mãe
 
7.      Segunda

 
8.      Minha Voz, Minha Vida

 
9.      Barato Total

    10. Autotune Autoerótico

 
11. Cara do Mundo
 
12. Deus é Amor
 
13. Dom de Iludir

       14. Neguinho

      15. O Amor

     16. Baby
 
17. Vapor Barato
 
18. Um Dia de Domingo
 
19. Miami Maculelê
 
20. Mansidão

     21. Força Estranha
 
22. Meu Bem, Meu Mal
 
23. Modinha para Gabriela


Um show inesquecível ao lado de pessoas muito queridas!!!