26 de janeiro de 2021

TROVA # 160

 

A AGRESSIVIDADE ANGELICAL DE DOLORES O’RIORDAN

 

But I'll miss you when you're gone

That is what I do, hey, baby

And it's going to carry on

That is what I do, hey, baby

(Dolores O’ Riordan, 1996)

 


A única certeza que possuímos nessa vida é a de que um dia nos encontraremos com a morte. Nossa estadia por aqui pode ser um breve intervalo, pode ser uma pausa longa, com discrição ou com bastante estardalhaço. Apesar de ter uma noção muito clara desse fato, ainda é bem penoso ter que aceitar a ordem natural dos acontecimentos em determinadas ocasiões.

O saudoso Antônio Abujamra, quando estava à frente do programa Provocações (TV Cultura), sempre perguntava aos seus entrevistados ao final de cada entrevista a pergunta eternamente sem resposta: “O que é a vida?”. O convidado sempre procurava respostas inteligentes, com vernizes filosóficos, para responder à indagação de Mestre Abu, que repetia a mesmíssima pergunta, logo em seguida. O sorriso levemente sarcástico e a pausa dramática do entrevistador diante de um entrevistado geralmente desconcertado era um deleite para os espectadores e deixa uma lição bastante interessante: se a morte é fácil de ser definida, ainda faltam-nos palavras para encontrar uma definição do que é viver.



Acordei com um gosto amargo de viver na manhã de 15 de janeiro de 2018. Era uma segunda-feira de férias como outra qualquer, com tempestades de verão que acinzentavam o céu, para a tristeza daqueles que foram curtir uma temporada no Rio de Janeiro. Quando fui ler as notícias do dia, acabei me dando conta de que haveria ansiolítico ou antidepressivo que pudesse conter aquele mal estar: especialistas diziam que estávamos vivendo o “dia mais triste do ano”.


            Antes de sair em busca de New Order no streaming para ouvir “Blue Monday” e me afundar de vez na tristeza que me convidava para dançar, continuei a zapear pelas redes sociais para espantar as vibrações pesadas, mas o tiro saiu pela culatra. Ao abrir o Facebook, dei de cara com uma notícia do The Independent informando que Dolores O’Riordan, vocalista dos Cranberries, tinha morrido em Londres com apenas 46 anos de idade. Em um estalar de dedos, a vida de uma das mulheres mais interessantes do meio musical durante a década de 1990 tinha virado memória...

Dolores O’Riordan era apenas 10 anos mais velha do que eu e estava em plena atividade – estava gravando um novo trabalho e já tinha lançado 7 álbuns de estúdio com os Cranberries, 2 discos solo e ainda tinha um projeto paralelo (o trio D.A.R.K.). Fiquei tão perplexo com a partida tão repentina de Dolores que mal conseguia pensar em outros assuntos. Simplesmente porque sempre estamos bem mais “preparados” para nos despedir de artistas mais velhos e experientes, que já cometeram todos os tipos de abuso químico que a vida lhes permitiu e, evidentemente, estão mais próximos da morte do que nós, nascidos nos insípidos anos 1980.

Em 1996, estava na adolescência e era ávido por novidades musicais, como muitos da minha geração. Assim que a MTV Brasil chegou na minha casa, assisti ao clipe de “Ridiculous Thoughts” e a voz de Dolores à frente dos Cranberries caiu como um verdadeiro raio no meu gosto musical saturado de tanta Pop Music fácil e barata. Tempos depois, descobri que meus primos por parte de pai tinham os três primeiros discos da banda – Everybody Else is Doing It, So Why Can’t We? (1992), No Need to Argue (1994) e To The Faithful Departed (1996). Aproveitava as visitas à casa de minha tia para ficar ouvindo aqueles discos com eles e ficava sonhando com eles rodando no meu aparelho de som e ficar a par das novidades musicais mais quentes da década de 1990.



Meus anos de adolescência não teriam sido os mesmos sem aquela banda composta por quatro jovens irlandeses comandados por uma moça espevitada, de penteados mil e dona de uma voz que conseguia ser agressiva e angelical ao mesmo tempo. Nos já longínquos anos 1990, Dolores O’Riordan era comparada a seu conterrâneo Bono Vox, do U2, não apenas por sua presença de palco marcante, como também por suas letras politizadas e acordes estridentes. É uma pena que ela não viveu o suficiente para fazer de sua banda um acontecimento tão expressivo quanto os músicos que ainda tocam clássicos do Rock como “Sunday Bloody Sunday” ou “Beautiful Day” em vários estádios do mundo.

Logo após a notícia da morte de Dolores, soube que ela vinha de uma família conservadora (e extremamente religiosa) de sete irmãos, que ela sofria de transtorno bipolar e que já tinha sofrido abuso sexual, fatores que devem ter contribuído bastante para a agressividade que ela despejava nas gravações e nos palcos. Nenhuma alma consegue se manter ilesa diante de traumas tão profundos, daí canções como “Zombie”, “Free to Decide” ou “Linger” carregarem um lirismo tão angustiante. Em uma década na qual Madonna, Mariah Carey e as Spice Girls eram símbolos de feminilidade na música Pop, Dolores O’Riordan se juntava ao coro de mocinhas não tão bem-comportadas como Alanis Morissette, Sheryl Crow, Fiona Apple ou Paula Cole e conseguia ser mais feroz do que elas todas juntas.

A melancolia, a honestidade e a intensidade de Dolores O’Riordan nos faz uma falta enorme em um mundo tão necessitado de mulheres fortes, corajosas e inspiradoras. Que a mulher por detrás das canções tenha encontrado a paz e a serenidade tão procuradas por ela em cada um de seus acordes e versos...