7 de janeiro de 2014

TROVA # 31

ALGUMAS NOITES AO SOM DE
 ARETHA FRANKLIN
 
Aretha Franklin: The Queen of Soul

Ser uma cantora é um dom natural. Isso significa que eu estou usando para o mais alto grau possível o dom que Deus me deu para usar. Estou feliz com isso.
(Aretha Franklin)



      Houve uma época em que meus finais de noite não variavam muito. Ao final de meu expediente como Professor de Inglês em uma escola em um dos extremos da Zona Sul de São Paulo, depois de todas as minhas aulas do dia, era necessário fazer as típicas tarefas burocráticas que compõem a nossa rotina de trabalho. Graças à Internet (esta santa maravilha do mundo moderno) e ao YouTube (santo remédio para os carentes de memórias musicais e referenciais artísticas femininas que vão além da Miley Cirus, Beyoncé, Katy Perry, Selena Gomez, Lady GaGa ou outro artifício Pop feminino), eu podia executar esta (árdua) tarefa ao som de uma das melhores autoridades no quesito CANTO em todos os universos: Aretha Franklin!


         Aretha Louise Franklin é uma dessas cantoras que não se fazem mais nos dias de hoje. Seu canto começou a se desenvolver na Igreja Batista na qual seu pai, C. L. Franklin era reverendo, a partir dos 10 anos de idade. Aos 14, gravou seu primeiro disco. Aos 19, já era uma das estrelas mais jovens da Columbia Records. Aos 25, já era proclamada The Queen of Soul e já tinha garantido seu lugar na história da música do planeta. Aos 45, foi a PRIMEIRA MULHER a ser nomeada para o Rock ‘n’ Roll Hall of Fame.

Aretha foi a primeira mulher a ser nomeada para o
Rock 'n' Roll Hall of Fame.

         Aretha Franklin é uma unanimidade para estrelas das mais diversas no mundo da música: de Annie Lennox a Mariah Carey, de George Michael a Adam Lambert, a Rainha do Soul é referência máxima de excelência e integridade artística. Sua flexibilidade vocal de mezzo soprano, sua inteligência interpretativa e seu repertório clássico são exemplos do que existe de melhor em termos de ARTE. Não é a toa que outras pessoas que queiram se aventurar no mundo da música queiram buscar um pouquinho do brilho de Tia Aretha, não?


*
 
O retrato de uma Rainha quando jovem.
         Ouvir a voz da Rainha do Soul ao final de uma noite de trabalho intenso não faz apenas o meu viver mais digno de ser vivido. Tal experiência me conduz de volta aos idos de 1994 e 1995, quando meu avô Adhemar ainda era vivo. Visitar sua casa aos domingos não era apenas uma garantia de comer o feijão inesquecível de minha avó Magaly, como também garantia o meu direito absoluto de ouvir música de excelente qualidade. Lembro-me muitíssimo bem quando uma série de CDs da Sony Music intitulada Golden Collection adentrou uma das casas da rua Pinto Alpoim, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro: dentre estes tesouros, sucessos de Tony Bennett, Doris Day, Johnny Mathis e, evidentemente, Aretha Franklin em sua fase Columbia!


         Quando ouço a orquestra introduzir “Take a Look”, de Clyde Otis e a voz (sofrida) de Aretha suplicando logo de cara os versos “Take a look at the mirror / Look at yourself / But don’t you look too close / ‘Cause you just might see / The person you hate the most… (Olhe para o espelho / Veja a ti mesmo / Mas não olhe muito perto / Pois você pode até ver / A pessoa que você mais odeia)”, sinto um arrepio gigantesco e nunca entendi o porquê de tamanha sensação. Ao revisitar a letra de Otis, constatei que ela perguntava a Nosso Senhor a razão dos homens agredirem deliberadamente uns e outros – seja fisicamente, seja através das palavras – enquanto o ódio não se tornar a única recompensa a recebermos...


         As gravações dos anos clássicos da fase Columbia consistem em interpretações maravilhosas do cancioneiro clássico norte-americano. Por exemplo, o disco que Aretha gravou em homenagem a Dinah Washington no início de 1964 é de uma beleza absurda só pelas releituras de “Unforgettable” (Irving Gordon) e “Cold, Cold Heart” (Hank Williams). Nesta época, standards da autoria de Hoagy Carmichael, Irving Berlin, Sammy Cahn, Burt Bachrach, Johnny Mercer, Oscar Hammerstein II, Harold Arlen, Cole Porter e outros foram gravados pela jovem Aretha Franklin. Todas estes clássicos foram inclusos em um box maravilhoso chamado Take a Look – Aretha Franklin complete on Columbia, com a qual eu sonho ter em minha coleção em um belo dia. Além disto, há um álbum antológico lançado por Aretha em maio de 1965 chamado Yeah!!!, no qual a filha do reverendo Franklin revira clássicos do Jazz como "Love for Sale" (Porter) do avesso. Uma pérola, um achado, uma raridade que merece ser ouvida!



*

         Já a fase Atlantic deu à Aretha o definitivo reconhecimento que fez da filha do reverendo Franklin uma lenda do soul. As gravações incendiárias de “Chain of Fools”, “Bridge Over Troubled Water”, “Amazing Grace”, “I Never Loved A Man (The Way I Loved You)”, “(You Make Me Feel) A Natural Woman”, “Do Right Woman, Do Right Man”, “The Weight”, “Think”, “I Say A Little Prayer” e “Respect” são lendárias e inesquecíveis, de uma autenticidade e de uma intensidade que faria qualquer um do signo de escorpião ficar ruborizado com a eletricidade envolvida em cada nota, em cada acorde, em cada vocalize, em casa vibrato.

Lady Soul (1968) é um trabalho ESSENCIAL de Aretha Franklin! Se você ainda não o ouviu, faça-o o quanto antes...

         Há dois acontecimentos interessantíssimos sobre Lady Soul que a jornalista Sheila Weller conta em seu delicioso livro Girls like Us. Na década de 1960, pelo menos, Aretha Franklin era extremamente criteriosa na escolha de seu repertório. Vários compositores queriam que a Rainha do Soul imortalizasse uma de suas canções nos sulcos de vinil que soam e ressoam pelas casas de tanta gente. Paul McCartney enviou, certa vez, uma canção belíssima para que Aretha gravasse. Era um belíssimo spiritual, daqueles típicos para serem cantados em igrejas, com direito a órgãos Hammond B3 e corais de negros ao fundo para oferecer o suporte necessário para os vocais incendiários da Rainha. Apesar de ter gravado a canção dos Beatles, a cantora não permitiu que a gravação fosse comercializada até o início de 1970. O mundo conheceu a tal parceria Lennon-McCartney na gravação que figura no algum This Girl's In Love with You e no derradeiro álbum dos Beatles – o título da canção? “Let It Be”!


        A fama de exigente que Aretha ostentava chegou a deixar compositores do porte de Carole King e Gerry Goffin inseguros em relação à qualidade de seu trabalho. Certa vez, Gerry encontrou Jerry Wexler (produtor de Franklin durante a fase Atlantic) na Grand Central Station de Nova York em um belo dia nos anos 1960 e pediu para que eles compusessem uma canção chamada “You Make Me Feel Like A Natural Woman”. Três semanas depois, Goffin e King, temerosos diante da fama da Diva, estavam no escritório de Wexler na gravadora com a canção em mãos para que ela fosse gravada por Aretha, que adorou a canção do casal. Gravada em 1967 e lançada em single em setembro do mesmo ano, “Natural Woman” se tornou em uma das marcas registradas do canto de Aretha Franklin e já foi regravada inúmeras vezes.





*

         Seja na Columbia, seja na Atlantic (fases de Aretha das quais conheço bem), meus finais de noite se tornaram bem mais agradáveis enquanto fazia meu diário de classe, arrumava meus livros e meus cacarecos que levo para as minhas aulas. Como tenho a honra de trabalhar em um local no qual as salas de aula são equipadas com excelentes equipamentos de som, não havia sensação melhor de deixar o som de “Chain, Chain, Chain (Chain, Chain, Chain) / Chain of Fools” ressoar pelos corredores da escola depois de todos os meus alunos terem ido embora para casa ao final de cada batalha diária. Foram momentos de nostalgia e alegria que deixaram a minha rotina muito mais interessante e rica em qualidade musical. Tudo isso graças ao talento indiscutível de Aretha Franklin.


Aretha em foto de 1980.

         Entre a dor, a tristeza, o ódio, a desilusão, o amor e o fervor, Aretha Franklin é sempre a opção mais inteligente entre as vozes negras norte-americanas. Vale a pena ouvir o canto desta mulher, para que acreditemos no quanto que a música ainda tem o poder de transformar o estado de espírito das pessoas...


Cantando para Barack Obama durante a posse do primeiro mandado do primeiro presidente negro da história dos EUA.