ALGUMAS
NOITES AO SOM DE
ARETHA FRANKLIN
ARETHA FRANKLIN
“Ser uma cantora é um dom natural. Isso
significa que eu estou usando para o mais alto grau possível o dom que Deus me
deu para usar. Estou feliz com isso.”
(Aretha Franklin)
Houve uma época em que meus finais de
noite não variavam muito. Ao final de meu expediente como Professor de Inglês
em uma escola em um dos extremos da Zona Sul de São Paulo, depois de todas as
minhas aulas do dia, era necessário fazer as típicas tarefas burocráticas que
compõem a nossa rotina de trabalho. Graças à Internet (esta santa maravilha do mundo moderno) e ao YouTube (santo remédio para os carentes
de memórias musicais e referenciais artísticas femininas que vão além da Miley
Cirus, Beyoncé, Katy Perry, Selena Gomez, Lady GaGa ou outro artifício Pop feminino), eu podia executar esta
(árdua) tarefa ao som de uma das melhores autoridades no quesito CANTO em todos
os universos: Aretha Franklin!
Aretha Louise Franklin é uma dessas cantoras que
não se fazem mais nos dias de hoje. Seu canto começou a se desenvolver na Igreja
Batista na qual seu pai, C. L. Franklin era reverendo, a partir dos 10 anos de
idade. Aos 14, gravou seu primeiro disco. Aos 19, já era uma das estrelas mais
jovens da Columbia Records. Aos 25, já era proclamada The Queen of Soul e já tinha garantido seu lugar na história da
música do planeta. Aos 45, foi a PRIMEIRA MULHER a ser nomeada para o
Rock ‘n’ Roll Hall of Fame.
Aretha foi a primeira mulher a ser nomeada para o Rock 'n' Roll Hall of Fame. |
Aretha Franklin
é uma unanimidade para estrelas das mais diversas no mundo da música: de Annie
Lennox a Mariah Carey, de George Michael a Adam Lambert, a Rainha do Soul é
referência máxima de excelência e integridade artística. Sua flexibilidade
vocal de mezzo soprano, sua inteligência interpretativa e seu repertório
clássico são exemplos do que existe de melhor em termos de ARTE. Não é a toa
que outras pessoas que queiram se aventurar no mundo da música queiram buscar
um pouquinho do brilho de Tia Aretha, não?
*
Ouvir a voz da Rainha do Soul ao final de uma
noite de trabalho intenso não faz apenas o meu viver mais digno de ser vivido.
Tal experiência me conduz de volta aos idos de 1994 e 1995, quando meu avô
Adhemar ainda era vivo. Visitar sua casa aos domingos não era apenas uma
garantia de comer o feijão inesquecível de minha avó Magaly, como também
garantia o meu direito absoluto de ouvir música de excelente qualidade.
Lembro-me muitíssimo bem quando uma série de CDs da Sony Music intitulada
Golden Collection adentrou uma das casas da rua Pinto Alpoim, na Ilha do
Governador, Rio de Janeiro: dentre estes tesouros, sucessos de Tony Bennett, Doris
Day, Johnny Mathis e, evidentemente, Aretha Franklin em sua fase Columbia!
Quando ouço a orquestra introduzir “Take a Look”, de Clyde Otis e a voz
(sofrida) de Aretha suplicando logo de cara os versos “Take a look at the mirror / Look at yourself / But don’t you look too
close / ‘Cause you just might see / The person you hate the most… (Olhe para o espelho / Veja a ti mesmo / Mas não
olhe muito perto / Pois você pode até ver / A pessoa que você mais odeia)”, sinto um
arrepio gigantesco e nunca entendi o porquê de tamanha sensação. Ao revisitar a
letra de Otis, constatei que ela perguntava a Nosso Senhor a razão dos homens
agredirem deliberadamente uns e outros – seja fisicamente, seja através das
palavras – enquanto o ódio não se
tornar a única recompensa a recebermos...
As gravações dos anos clássicos da fase
Columbia consistem em interpretações
maravilhosas do cancioneiro clássico norte-americano. Por exemplo, o disco que
Aretha gravou em homenagem a Dinah Washington no início de 1964 é de uma beleza
absurda só pelas releituras de “Unforgettable” (Irving Gordon) e “Cold, Cold
Heart” (Hank Williams). Nesta época, standards
da autoria de Hoagy Carmichael, Irving Berlin, Sammy Cahn, Burt Bachrach, Johnny
Mercer, Oscar
Hammerstein II, Harold Arlen, Cole Porter e outros foram gravados pela jovem
Aretha Franklin. Todas estes clássicos foram inclusos em um box maravilhoso
chamado Take a Look – Aretha Franklin
complete on Columbia, com a qual eu sonho ter em minha coleção em um belo
dia. Além disto, há um álbum antológico lançado por Aretha em maio de 1965 chamado Yeah!!!, no qual a filha do reverendo Franklin revira clássicos do Jazz como "Love for Sale" (Porter) do avesso. Uma pérola, um achado, uma raridade que merece ser ouvida!
*
Já a fase Atlantic deu à Aretha o definitivo reconhecimento que fez da filha
do reverendo Franklin uma lenda do soul.
As gravações incendiárias de “Chain of Fools”, “Bridge Over Troubled Water”,
“Amazing Grace”, “I Never Loved A Man (The Way I Loved You)”, “(You Make Me
Feel) A Natural Woman”, “Do Right Woman, Do Right Man”, “The Weight”, “Think”,
“I Say A Little Prayer” e “Respect” são lendárias e inesquecíveis, de uma autenticidade e
de uma intensidade que faria qualquer um do signo de escorpião ficar ruborizado
com a eletricidade envolvida em cada nota, em cada acorde, em cada vocalize, em
casa vibrato.
Lady Soul (1968) é um trabalho ESSENCIAL de Aretha Franklin! Se você ainda não o ouviu, faça-o o quanto antes... |
Há dois acontecimentos
interessantíssimos sobre Lady Soul
que a jornalista Sheila Weller conta em seu delicioso livro Girls like Us. Na década de 1960, pelo
menos, Aretha Franklin era extremamente criteriosa na escolha de seu
repertório. Vários compositores queriam que a Rainha do Soul imortalizasse uma
de suas canções nos sulcos de vinil que soam e ressoam pelas casas de tanta
gente. Paul McCartney enviou, certa vez, uma canção belíssima para que Aretha
gravasse. Era um belíssimo spiritual,
daqueles típicos para serem cantados em igrejas, com direito a órgãos Hammond B3
e corais de negros ao fundo para oferecer o suporte necessário para os vocais
incendiários da Rainha. Apesar de ter gravado a canção dos Beatles, a cantora não permitiu que a gravação fosse
comercializada até o início de 1970. O mundo conheceu a tal parceria Lennon-McCartney na gravação que figura no algum This Girl's In Love with You e no derradeiro
álbum dos Beatles – o título da canção? “Let
It Be”!
A fama de exigente que Aretha ostentava
chegou a deixar compositores do porte de Carole King e Gerry Goffin inseguros
em relação à qualidade de seu trabalho. Certa vez, Gerry encontrou Jerry Wexler
(produtor de Franklin durante a fase Atlantic)
na Grand Central Station de Nova York em um belo dia nos anos 1960 e pediu para
que eles compusessem uma canção chamada “You Make Me Feel Like A Natural Woman”.
Três semanas depois, Goffin e King, temerosos diante da fama da Diva, estavam
no escritório de Wexler na gravadora com a canção em mãos para que ela fosse
gravada por Aretha, que adorou a canção do casal. Gravada em 1967 e lançada em single em setembro do mesmo ano, “Natural
Woman” se tornou em uma das marcas registradas do canto de Aretha Franklin e já
foi regravada inúmeras vezes.
*
Seja na Columbia, seja na Atlantic
(fases de Aretha das quais conheço bem), meus finais de noite se tornaram bem
mais agradáveis enquanto fazia meu diário de classe, arrumava meus livros e
meus cacarecos que levo para as
minhas aulas. Como tenho a honra de trabalhar em um local no qual as salas de
aula são equipadas com excelentes equipamentos de som, não havia sensação
melhor de deixar o som de “Chain, Chain,
Chain (Chain, Chain, Chain) / Chain of Fools” ressoar pelos corredores da
escola depois de todos os meus alunos terem ido embora para casa ao final de
cada batalha diária. Foram momentos de nostalgia e alegria que deixaram a minha
rotina muito mais interessante e rica em qualidade musical. Tudo isso graças ao
talento indiscutível de Aretha Franklin.
Aretha em foto de 1980. |
Entre a dor, a tristeza, o ódio, a
desilusão, o amor e o fervor, Aretha Franklin é sempre a opção mais inteligente
entre as vozes negras norte-americanas. Vale a pena ouvir o canto desta mulher,
para que acreditemos no quanto que a música ainda tem o poder de transformar o
estado de espírito das pessoas...
Cantando para Barack Obama durante a posse do primeiro mandado do primeiro presidente negro da história dos EUA. |