A IRA SELVÁTICA DE KARINA BUHR
FOTO: Daryan Dornelles |
Para Ká & Fabinho, com amor!
“Sua dúvida é produto da
sua escravidão
Mantenha então
Sua sanidade em
defesa do seu estômago
Se você pensou
que tinha solução
Mantenha então
Sua integridade
indefesa
Porque o tempo
vai passando
Suas qualidades
vão sumindo
E os seus
defeitos aparecendo cada vez mais
Cada vez mais
Cadáver”
(Karina Buhr – “Cadáver” – sétima faixa de seu
segundo álbum solo,
Longe
de Onde, de 2011)
Quando (ou)vi falar pela primeira vez em uma tal de
Karina Buhr, pensei que ela era mais uma integrante daquela geração de músicos
que fazia parte desta geração dos anos 2010. Em outras palavras, mais uma
cantora que posava de cool sem
produzir algo em termos musicais que estivesse à altura da pose das capas dos
discos e das fotos das reportagens. Ao constatar que meus
cunhados/amigos/irmãos Karina & Fabinho já haviam parado na contramão de
Miss Buhr a ponto do pequeno rebento deles, Raulzito, achar a moçoila o máximo,
cheguei à humilde conclusão de que a novidade tinha pintado em cheio na minha
praia e só eu não havia parado para ouvir. Miss Buhr era papo firme, era chapa
quente, uma brasa fumegante do tamanho de um vulcão!
Lembro vagamente da primeiríssima vez em que vi Karina
Buhr cantando: foi em uma participação em um show de Marina Lima no SESC Vila
Mariana (SP) lá pelos idos quase esquecidos de 2011. Em meio a um cenário cinematográfico
de Isay Weinfeld, a safra menos inspirada de Marina e a falta de voz da artista
que tomou o país de assalto ao som de “Fullgás”, vi uma bela moça de cabelos
cor de fogo surgindo de uma extremidade do palco para cantar ao lado da artista
da noite. Da aparição de Karina eu não me esqueci, já da apresentação de Marina
como um todo, é melhor deixar pra lá... Tempos depois, ouvi uma regravação de “Tão
Fácil” (Marina Lima & Antônio Cícero) que eu achei tão interessante, mas
tão interessante que eu decidi ficar de olhos bem abertos e com olhar bem
atento e forte nesta baiana criada em Pernambuco e hoje radicada em São Paulo.
Anos depois, fui conhecer o trabalho de Karina Buhr mais
a fundo em seu habitat mais do que
natural: o palco! O Centro Cultural São Paulo anunciou um show da artista no
qual ela fazia um tributo ao Secos & Molhados para quem quisesse ouvir (não
me lembro se foi de graça, ou se foi por um preço hiper camarada). Minha obrigação
em estar lá era tripla: 1) Era um tributo ao Secos & Molhados, a banda do
meu coração e meu objeto de pesquisa e de estudo por tantos e tantos anos; 2) A
homenagem contrariava qualquer clichê em torno das mensagens oportunistas,
óbvias e surradas que já fizeram ao grupo que revelou Ney Matogrosso para o
Brasil e o mundo; 3) Era a oportunidade definitiva para conhecer o trabalho de
uma artista nova, inquietante e a deixa perfeita para ir em busca de novos
horizontes musicais.
Karina Buhr canta Secos & Molhados: um belo tributo |
Fiquei encantado com o resultado do que
assisti no CCSP: Karina Buhr não apenas releu o repertório do primeiro disco do
Secos & Molhados com muitíssima reverência e respeito, como também permitiu
que seus músicos imprimissem suas personalidades em um trabalho tão marcante –
o trompete de Guizado chega a ser tão marcante quanto a flauta de Sérgio
Rosadas, músico que tocou nos dois primeiros álbuns do grupo. Além disso, a
postura de palco de Karina, acalentada por anos e anos de trabalho com bandas
de Recife (Eddie e Comadre Fulozinha) e como atriz do Grupo Oficina (idealizado
e mantido pelo controverso e revolucionário diretor teatral José Celso Martinez
Corrêa), é simplesmente arrebatadora: ela conseguiu ser não apenas uma
seguidora do caminho aberto por Ney Matogrosso anos antes, como fez uma
belíssima homenagem a um dos artistas mais importantes da música brasileira sem
descaradamente imitá-lo. O encore do
espetáculo contou com algumas belas canções do repertório de Miss Buhr: “Cara
Palavra” e “Nassíria & Najaf” foram apresentados em meio a uma sinfonia
ensurdecedora de cacófatos, gritos e distorções típicas de um show de Punk ambientado no velho e saudoso CBGB’s.
E o melhor de tudo estava reservado para o final, quando a artista resolve
envolver o seu pescoço em um fio de microfone, resultando em um dos atos
performáticos mais insanamente loucos que eu já presenciara em vida.
Miss Buhr e o microfone |
Após o show,
ativei o modo pesquisador que ainda existe dentro de mim e decidi sair em busca
das gravações de Karina Buhr. Redescobri a tal gravação no tributo feito à
Marina Lima e me encantei com Eu Menti pra Você (2010), seu
primeiro disco. A capa do CD, revelando uma mulher com as mãos na testa com uma
expressão de leve sarcasmo, sem traços de paixão, quebra com todo e qualquer
horizonte de expectativas de qualquer ouvinte de MPB: ouvir logo de cara que a
bela cantora é uma pessoa que mentiu despudoradamente para ti ou o clamor de uma
canção de ninar que ordena que você durma antes de que você morra bombardeado
por mísseis não são coisas lá muito simples de se dizerem por uma artista
novata. Ao contrário, são coisas que surgem para quebrar as pernas de qualquer
um que esperasse modéstia, delicadeza e simplicidade de um debut álbum de uma artista feminina: Karina estava lá para romper
com aquela lógica, para nossa euforia.
Eu Menti pra Você (2010) |
A poética de
Karina Buhr é longe de ser alegre ou solar, tal qual alguns de seus colegas de
geração. “Mira Ira”, oitava faixa do álbum, revela uma relação sentimental
torta e ameaçada pelo que existe de mais primitivo e autêntico de nossos “pecados
capitais”, a ira corrosiva que tem o poder de aniquilar o mais puro e belo dos
sentimentos:
Tá
tudo padronizado
no
nosso coração
nosso
jeito de amar pelo jeito
não
é nosso não
Tá
tudo padronizado
Me
mira a ira
me
mira mas me erra
mas
minha mira me era confusa
mudando
meu amor de endereço
Fria,
não miro a ira
não
miro mas te acerto no peito
quando
mudo meu amor de endereço
Me
mira a ira
me
mira mas me erra no escuro
sentindo
teu amor profundamente
Foto: Ana Tatsumi |
Outro momento delicioso de Eu Menti pra Você é justamente
a faixa que encerra o disco: a lânguida “Plástico Bolha”, uma ode ao ócio, à liberdade e à
preguiça em tempos de capitalismo insanamente selvagem e doentio, é uma das
melhores gravações de Karina Buhr:
Hoje
eu não tô afim de corre corre, confusão
Eu
quero passar a tarde estourando plástico bolha
Mas
você reagiu mal
Porque
você não esperava
Mas
eu te esperei e a gente se desesperou
Hoje
eu não tô afim de corre corre, confusão
Eu
quero passar a tarde estourando plástico bolha
Bolinha
de fumaça, plástico bolha
Longe de Onde (2011) |
Consegui ouvir o segundo álbum de Karina Buhr, o
incendiário Longe de Onde (2011), há pouquíssimo tempo, graças aos
milagrosos serviços de streaming, que
divulgam o que há de melhor em termos de música graças ao simples toque um smart phone. Fiquei literalmente
impressionado com a ferocidade e alguns (leves) surtos de delicadeza que vinham
dos versos e sons daquele disco. O sucessor de Eu Menti pra Você deixava mais do que claro que a mocinha estava
longe de ser uma diva ou uma darling carente
de carinho ou de um macho protetor – ao contrário, tornou-se mais do que
evidente que Miss Buhr era uma mulher muito da perigosa e que ainda faria mais
barulho por aí:
Cada
fala
Cada
palavra cala
E
ganha um signovosignificado para mim
Desperta
dor
Apaga
dor
Vai
embora
Fica
Meu
amor
Outras canções do disco como “Pra Ser Romântica” e “Amor
Brando” são retratos de relações amorosas distantes da perfeição, descritas a
partir de um destemido deboche. As interpretações de Karina Buhr são repletas
de sentimento, porém com a clara noção de que a realidade amorosa não se faz da
materialidade forjada pelo que vemos nas telas da TV ou do cinema:
Hoje
eu dei
Pra
ser romântica
Perto
de você não me vejo só
De
você quero distância
Bem
pequenininha
Nem
ia imaginar
O
sol, você como está
Nesse
dia, esse viaduto lindo
Como
calendário de verão
Do
mês que a gente está
Na
cidade que continua linda
Continua
linda
Que
continua linda
Continua
linda
Eu
já sinto um calor de amor
Quando
você chega aqui
Tava
tudo tão facinho, no rasinho
E
eu sem me dar conta
Assim
fui indo
Agora
sinto um calor de amor
Quando
você chega aqui
E
eu te peço que
Se
aproxime de mim um pouco
Mas
não tanto
A
ponto de eu sentir sua falta
Quando
você for embora
E eis que Karina Buhr me conquista de vez com o seu
terceiro álbum. Selvática foi lançado no final de setembro de 2015 diante de
uma polemica insana e ridícula diante da imagem da capa do disco, que mostra a
artista sem camisa e com os seios à mostra. Independentemente de qualquer tipo
de controvérsia que a imagem pudesse gerar, decidi que não haveria oportunidade
mais perfeita de me apaixonar de vez pela cantora de cabelos de fogo quando fui
para a noite de estreia da turnê no SESC Pompeia com a típica ansiedade que
antecederia um show de Paul McCartney ou dos Rolling Stones, no início de
outubro de 2015. Em um final de semana no qual Sampa estava repleta de atrações
musicais imperdíveis (Ney Matogrosso, Elza Soares e Edson Cordeiro estavam
fazendo seus shows no pedaço durante o mesmíssimo período) e diante da
impossibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, foi uma tarefa árdua
ir em apenas uma única apresentação das duas que Karina fez para lançar o CD.
Flyer de divulgação dos shows da abertura da turnê Selvática |
Meu choque
inicial já se deu quando descobri que a banda que acompanharia Karina naquela
noite era composta de dois guitarristas consagrados e pelos quais tenho
profunda admiração: Fernando Catatau (que eu já conhecia de trabalhos com
estrelas de primeira grandeza de nossa música como Vanessa da Mata) e o mestre
Edgard Scandurra (que já tocou pelo Brasil afora com o Ira e possui uma longa
parceria com o ex-titã Arnaldo Antunes). O segundo impacto – ainda mais
profundo – se deu quando vi que Scandurra ia dar seu expediente a menos de 1m
de distância deste que vos escreve estas linhas tortas e irregulares. E o que
dizer de Karina herself? Creio que
ela é a presença de palco mais impactante que já vi desde que assisti Ney
Matogrosso cantar em um palco pela primeiríssima vez.
O palco de
Karina Buhr é um espaço plenamente dionisíaco: ela encarna todas as perversões
e deboches que estão contidos em seus versos sem se importar com modas ou tendências,
o que lhe rendeu um público devoto e profundamente respeitoso. Ela não tem o
menor medo de soar insípida ou inodora como qualquer Pop Star. Não tem a ambição de se parecer com as Primas Donnas clássicas da MPB que
acreditam que o stage floor é um chão
sagrado, tal qual o de uma cantora de ópera. O local musical de Miss Buhr pertence
à ordem do profano, por isso,
infinitamente imprevisível e perigoso.
É um fuzil? Não, é apenas o pedestal do microfone... |
Por isso,
cada apresentação ao vivo de Karina Buhr é uma oportunidade e tanto para que
possamos afirmar o nosso gesto de contrariedade a uma série interminável de medidas
conservadoras e retrógadas adotadas pelo Congresso Nacional (restrição de
direitos das mulheres, de homossexuais, dentre outros absurdos). “Selvática”, a
canção que dá nome ao terceiro álbum da artista, é uma tentativa de reescrever
a história feminina a partir de uma releitura do livro do Gênesis, da Bíblia Sagrada:
Refaço!
Rechaço!
Não
lhe devemos nada
não
nos verás na escuridão como capacho
nos
temporais amargos
dias
penumbrosos anoitecidas
Não
moveras do corpo um pelo
a
tempestade é vencida
Selváticas,
por amor ensandecidas.
Não
as tocarão manadas apedrejantes.
Selváticas,
de vitórias surpreendentes munidas
cavalgam
amazonas delirantes.
Guerreira
que bebe sangue
arco
e flecha do Daomé
viço
do bicho, ebó de mangue
jurema
da favela
óleo
de palma pra ela
alma
na planta do axé
O
eclipse perdurará
acharás
palha no agulheiro e transmutarás
Perfurarás
o mal seu e o alheio e o enforcarás
com
o cipó da própria raiz segura
costura
de árvores nas alturas
não
espirrarás tua violência amanhecida
tantas
vezes na aprovação da multidão
tua
sanha virará só coração
sem
arranhão, nem ferida
Choro
trufado, pedregoso
umedece
o olho arranhando
refinando
a vista embargada
guerrilheira
curda vitoriosa
nas
curvas das serras teimosas
Mulheres,
conforme a espécie na guerra
esbravejam
a dor da Terra em uivos
lhes
crescem pupilas ruivas
uvas
bacantes semeadas
oliveiras
palestinas suculentas
avisam:
já não há quem possa
Chifres
de marfim nascem devagar
a
empurrar entremeando os cabelos
Afiam-se
dentes-pontas-de-diamantes
estraçalhadores
fulminantes de pecadoras maçãs
Vãs
as imagens delas
conforme
a sua semelhança
bailarão
lança e festança
extirparão
o sumo da memória criminosa
refarão
a história e a prosa
de
tuas eternas inquisições de fogueiras
em
beiras de abismos baderneiras flamejantes
ciganas
a postos abafarão os berreiros constantes
em
fogosas rosas gigantes
filhos
meus, os seus e os nossos
Selváticas,
elas não necessitam seu elogio
Ela
transgride sua orientação
Refeito
o começo bíblico
não
ferirás nenhum corpo por ser feminino
com
faca, ou murro, ou graveto
eu
te prometo
sedarás
o mal, interceptarás no meio do caminho o espeto
Super
heróis de tuas vítimas estancadas
agora
és delas a espada e não o algoz
Selvática,
ela come a selva de fora
ela
vem da selva de dentro!
Selvática,
ela pare a própria hora
ela
bale em pensamento!
E
no final ideal não terás domínio
algum
sobre mulher alguma!
No
final ideal não terás domínio
sobre
mulher alguma!
Quatro momentos de "Selvática" por Vinil |
Saí do SESC
Pompeia tão acachapado com a bravura, a ousadia e a despretensão artística de
Karina Buhr – algo que, repito, não se vê na maioria das grandes cantoras deste
país – e me tornei um fã confesso desta baiana arretada a partir daquela noite.
Aproveitei a oportunidade para finalmente adquirir os CDs de Miss Buhr e parar
de vez na contramão da mocinha que alega que é má pelo fato de ter mentido para
mim, para você e mais uma pá de gente que ouve os discos dela. Meu coração
musical se tornou mais dionisíaco graças a ira selvática tão necessária que,
por fim, me mirou e me acertou em cheio...
Algumas
linhas sobre Selvática escritas pelo autor deste Blog
para o Pequenos Clássicos Perdidos. Acesse
o link:
Site
oficial de Karina Buhr:
http://www.karinabuhr.com.br