7 de dezembro de 2015

TROVA # 60

A FEITIÇARIA INCOMPARÁVEL DE MARÍLIA PÊRA


Em memória de Marília Pêra (1943-2015)



O Brasil é um país de cantoras extraordinárias. E de atrizes fantásticas. No entanto, pouquíssimas brasileiras conseguem compor estas galerias com tanta presença e classe como conseguiu Marília Soares Marzullo Pêra. Para mim, uma aquariana que fazia anos um dia antes do meu aniversário. Para nós, singelos mortais, a grande atriz Marília Pêra. Para a classe artística, uma verdadeira unanimidade. Para as artes do Planeta, uma das maiores artistas que surgiram por aqui em todos os tempos. A partir de 5 de dezembro de 2015, mais uma estrela a brilhar em uma galáxia bem distante, bem longínqua...


Meu último sábado que antecedia as férias de dezembro de um longo e exaustivo ano começou com um gosto bem amargo. Ao acordar, por volta de 11 horas de manhã, soube que Marília Pêra tinha morrido, serena e discreta, aos 72 anos de idade, vítima de um câncer. Dentre inúmeras fotos que se repetiam pelas redes sociais, pelas páginas de notícias da Internet e inúmeros flashes da Globo News, surgiam homenagens, depoimentos e uma comoção coletiva diante da partida de uma das artistas mais empenhadas que já conhecemos. A tristeza foi automática e inevitável.




Comecei a me lembrar da única noite em que assisti Marília Pêra cantando e atuando no teatro. Fiquei encantado quando a vi ao lado de Miguel Falabella em uma montagem brasileira de Hello, Dolly! em uma breve temporada pelo Teatro Bradesco. O que eu achei mais encantador na versão nacional do texto da Broadway foi que ela conseguiu dar um toque de humor e leveza extremamente autênticos à trambiqueira Dolly Levi, sem deixar de descaracterizar o texto original. Não consigo esquecer dos figurinos, da música e do belo sorriso que ela ostentava em cada troca de figurino, em cada coreografia, em cada riso arrancado da plateia. Fiquei encantado com a energia e a beleza daquele trabalho por dias. Taí os verdadeiros poderes de uma estrela...

Marília Pêra na versão brasileira de Hello, Dolly! (2013), com direção de Miguel Falabella.

Feiticeira (1975)

Gosto bastante de Feiticeira, disco de Marília baseado em um show com roteiro de Fauzi Arap e Nelson Motta em 1975, que foi um fracasso retumbante. Primeiro porque há a fina flor do que existia (e ainda existe) de melhor na música brasileira da época naquele disco: Lamartine Babo, Eduardo Dussek, Luhli & Lucina, Geraldo Azevedo, Walter Franco, Jorge Mautner, Alceu Valença, Jards Macalé, etc. Segundo e melhor de tudo: ao ouvirmos Marília Pêra em disco temos a noção de que estamos ouvindo um espetáculo grandioso, pomposo, de grande envergadura em plena ação. Ouço "Alô Alô Brasil" e minha imaginação já me remete a imensos cenários em verde e amarelo, com bananas em riste, revelando o Brasil tão bem cantado por Carmen Miranda, a Pequena Notável que ela homenageou diversas vezes nos palcos deste país. "Bentevi" nos emociona pela beleza e nos dá vontade de sair dançando com os braços abertos, chamando os pássaros para conviver do mesmo espaço aberto e pedir para que eles nos levem voando ao léu, livres e descompromissados. O "Samba dos Animais", “Estado de Choque” e "A Natureza" por outro lado, ainda são de uma atualidade impressionante... Um grande álbum de uma atriz que cantava muitíssimo bem!





Marília Pêra era uma grande estrela de musicais e foi uma das pioneiras do gênero no Brasil. Conseguia cantar magistralmente Dalva de Oliveira, Lamartine Babo, Carmen Miranda com a mesma naturalidade que interpretava uma Maria Callas ou a obra de Ary Barroso. Sua voz mansa e discreta fora de cena contrastava com a sua presença histriônica e marcante quando estava em cima do palco. Em alguns momentos, chegava até a assustar os menos acostumados com o seu estilo. Em outros, encantava profundamente as plateias que a assistiam. A interpretação de "120, 150, 200 km/h", de Roberto & Erasmo, é um exemplo clássico do quanto os opostos colidem de maneira um tanto, digamos, surpreendente...


Se pudesse resumir tudo o que Marília Pêra foi em apenas uma única imagem, não hesitaria em dizer que ela era uma bela feiticeira. Não daquelas feiosas que fazem coisas malévolas e que trazem o mal, mas daquelas que só semearam o que existe de melhor nos seres humanos. Suas feitiçarias lhe permitiriam que ela se transformasse em quem ela pudesse, viver as vidas que ela quisesse por duas horas ou mais. Assim, nós, mortais e comuns, tentamos ir em busca de sentido e compreensão para o que há de mais indecifrável: a vida...

Marília como a personagem Juliana na minissérie O Primo Basílio (1988), baseada no romance de Eça de Queirós, uma de suas performances mais aclamadas e inesquecíveis.

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