A FEITIÇARIA INCOMPARÁVEL DE MARÍLIA
PÊRA
Em memória
de Marília
Pêra (1943-2015)
O Brasil é um país de cantoras extraordinárias. E de atrizes
fantásticas. No entanto, pouquíssimas brasileiras conseguem compor estas
galerias com tanta presença e classe como conseguiu Marília Soares Marzullo Pêra. Para
mim, uma aquariana que fazia anos um dia antes do meu aniversário. Para nós,
singelos mortais, a grande atriz Marília Pêra. Para a classe artística, uma
verdadeira unanimidade. Para as artes do Planeta, uma das maiores artistas que
surgiram por aqui em todos os tempos. A partir de 5 de dezembro de 2015, mais
uma estrela a brilhar em uma galáxia bem distante, bem longínqua...
Meu último sábado que antecedia as férias de dezembro de um longo e
exaustivo ano começou com um gosto bem amargo. Ao acordar, por volta de 11
horas de manhã, soube que Marília Pêra tinha morrido, serena e discreta, aos 72
anos de idade, vítima de um câncer. Dentre inúmeras fotos que se repetiam pelas
redes sociais, pelas páginas de notícias da Internet e inúmeros flashes da Globo News, surgiam
homenagens, depoimentos e uma comoção coletiva diante da partida de uma das
artistas mais empenhadas que já conhecemos. A tristeza foi automática e
inevitável.
Comecei a me lembrar da única noite em que assisti Marília Pêra cantando
e atuando no teatro. Fiquei encantado quando a vi ao lado de Miguel Falabella
em uma montagem brasileira de Hello,
Dolly! em uma breve temporada pelo Teatro Bradesco. O que eu achei mais
encantador na versão nacional do texto da Broadway foi que ela conseguiu dar um
toque de humor e leveza extremamente autênticos à trambiqueira Dolly Levi, sem
deixar de descaracterizar o texto original. Não consigo esquecer dos figurinos,
da música e do belo sorriso que ela ostentava em cada troca de figurino, em
cada coreografia, em cada riso arrancado da plateia. Fiquei encantado com a energia
e a beleza daquele trabalho por dias. Taí os verdadeiros poderes de uma
estrela...
Marília Pêra na versão brasileira de Hello, Dolly! (2013), com direção de Miguel Falabella. |
Feiticeira (1975) |
Gosto bastante de Feiticeira, disco de Marília baseado em um show com roteiro de Fauzi Arap e Nelson
Motta em 1975, que foi um fracasso retumbante. Primeiro porque há a fina flor
do que existia (e ainda existe) de melhor na música brasileira da época naquele
disco: Lamartine Babo, Eduardo Dussek, Luhli & Lucina, Geraldo Azevedo, Walter
Franco, Jorge Mautner, Alceu Valença, Jards Macalé, etc. Segundo e melhor de
tudo: ao ouvirmos Marília Pêra em disco temos a noção de que estamos ouvindo um
espetáculo grandioso, pomposo, de grande envergadura em plena ação. Ouço
"Alô Alô Brasil" e minha imaginação já me remete a imensos cenários
em verde e amarelo, com bananas em riste, revelando o Brasil tão bem cantado
por Carmen Miranda, a Pequena Notável que ela homenageou diversas vezes nos
palcos deste país. "Bentevi" nos emociona pela beleza e nos dá
vontade de sair dançando com os braços abertos, chamando os pássaros para
conviver do mesmo espaço aberto e pedir para que eles nos levem voando ao léu,
livres e descompromissados. O "Samba dos Animais", “Estado de Choque”
e "A Natureza" por outro lado, ainda são de uma atualidade
impressionante... Um grande álbum de uma atriz que cantava muitíssimo bem!
Marília Pêra era uma grande estrela de musicais e foi uma das pioneiras
do gênero no Brasil. Conseguia cantar magistralmente Dalva de Oliveira,
Lamartine Babo, Carmen Miranda com a mesma naturalidade que interpretava uma
Maria Callas ou a obra de Ary Barroso. Sua voz mansa e discreta fora de cena
contrastava com a sua presença histriônica e marcante quando estava em cima do
palco. Em alguns momentos, chegava até a assustar os menos acostumados com o
seu estilo. Em outros, encantava profundamente as plateias que a assistiam. A interpretação
de "120, 150, 200 km/h", de Roberto & Erasmo, é um exemplo
clássico do quanto os opostos colidem de maneira um tanto, digamos,
surpreendente...
Se pudesse resumir tudo o que Marília Pêra foi em apenas uma única
imagem, não hesitaria em dizer que ela era uma bela feiticeira. Não daquelas
feiosas que fazem coisas malévolas e que trazem o mal, mas daquelas que só
semearam o que existe de melhor nos seres humanos. Suas feitiçarias lhe
permitiriam que ela se transformasse em quem ela pudesse, viver as vidas que
ela quisesse por duas horas ou mais. Assim, nós, mortais e comuns, tentamos ir
em busca de sentido e compreensão para o que há de mais indecifrável: a vida...
Marília como a personagem Juliana na minissérie O Primo Basílio (1988), baseada no romance de Eça de Queirós, uma de suas performances mais aclamadas e inesquecíveis. |
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