A FÚRIA E OS BEIJOS
(ou uma declaração de amor a todas
as formas de amor na telenovela brasileira)
as formas de amor na telenovela brasileira)
Nathália Timberg & Fernanda Montenegro: duas damas das artes cênicas brasileiras em cena do primeiro capítulo de Babilônia (2015). |
OS BEIJOS
O beijo
no sofá
O beijo
no harém
Um
beijo na estação de trem
O beijo
de amor
O beijo
sem tesão
O de
reconciliação
O beijo
das canções
O beijo
das araras
O beijo
de aflições e taras
O beijo
que se dá
O beijo
que se ganha
O beijo
da mulher-aranha
Tem
beijo devoção
Também
beijo-troféu
O
beijo-artigo-de-bordel
Um
beijo após a missa
"me
beija", diz a moça
Um
beijo dado assim à força
Um
beijo o que é real
O outro
é sonhador
E beija
o pôster do cantor
Um
beijo sua mão
O outro
o corpo inteiro
O time
beija seu goleiro
De
beijo no bebê
A mãe
dá mais de cem
Mas
beijo-crime também tem
Um
beijo em paris
O beijo
do cartaz
Um
beijo o outro rapaz
O beijo
no escuro
O beijo
à meia-luz
O beijo
nos pés de jesus
Um
beijo e lambe a pele
Um
morde e causa dor
O beijo
diz como é que eu tô
O beijo
da serpente
O beijo
no asfalto
Um
beijo no meio do mato
O beijo
que oferece
O beijo
que ofende
O beijo
azul do happy end
O beijo
da chegada
O beijo
despedida
Um
beijo com sabor de vida
Um
beijo em sigilo
O beijo
da novela
Os
beijos que eu já dei nela
Um
beijo
Os
beijos
(Pedro
Luís na voz e interpretação de Elba Ramalho)
Confesso publicamente: sou fã de telenovelas! Faço parte daqueles
cidadãos que, quando podem, ligam a TV na Vênus Platinada às nove da noite ou
corre para o YouTube ou no site do novelão do momento para rever cenas
inesquecíveis ou para descobrir as últimas peripécias de personagens X, Y ou Z
quando (eventualmente!) não consigo assistir determinado capítulo. As séries de
TV estrangeiras me parecem até interessantes em alguns momentos, porém nada
como um folhetim bem brasileiro para chamar a atenção de pessoas com déficit de
atenção como YO - e neste quesito, a Rede Globo, com boa parte do seu elenco e
de seus escritores, consegue resultados impressionantes...
Novela, invariavelmente, era assunto de família: não só porque minha
Mãe, como toda housewife que dedica
alguns de seus momentos de lazer ao exercício de ser telespectadora, como
também meu Pai recentemente parava tudo para ver "as últimas tiradas do
Félix (personagem inesquecível do Mateus Solano). A irmã mais velha de Meu Avô
Adhemar, Tia Maria, era tão fã de folhetim que a televisão ficava ligada
religiosamente no canal 4 a partir da novela das 6 até o fim do (antigo)
novelão das oito da noite! Ai de quem falasse na hora da novela perto do Tio
Luiz, seu esposo implacavelmente rabugento: era puto instantâneo... Como
consequência, durante o jantar, não escapamos a perguntas antológicas que o
Brasil teve de responder, por exemplo: "Quem é o assassino em série de A Próxima Vítima?", "Quem
explodiu o shopping de Torre de Babel?",
"Com quem a Viúva Porcina fica no final de Roque Santeiro?", "Quem será a próxima amante do
fotógrafo Jorge Tadeu em Pedra Sobre
Pedra?" e o clássico de Vale
Tudo "Quem matou Odete Roitman?".
Lembro claramente de ter visto novelas na TV desde quando me entendo por
gente. Roque Santeiro, Vereda Tropical, Roda de Fogo, Fera Radical,
Top Model, O Outro, Sassaricando, Vale Tudo, Bebê a Bordo, Que Rei Sou Eu?,
O Salvador da Pátria, Tieta, Rainha da Sucata, O Dono do
Mundo, Pedra Sobre Pedra, Lua Cheia de Amor, Pátria Minha, A Indomada,
Perigosas Peruas, Deus nos Acuda, A Viagem, Quatro por Quatro,
A Próxima Vítima, Suave Veneno e Torre de Babel são exemplos que eu lembro com clareza de capítulos
na época em que foram ao ar! Não só por causa de cenas antológicas, como também
por causa das trilhas sonoras que meus pais sempre tinham em LP ou em K7 para
ouvir no carro - minha memória se tornou extremamente musical em sua grande
parte por causa das novelas de TV e este patrimônio nenhum Downton Abbey, com todo o meu respeito, vai me trazer...
Entretanto, meu apetite pelos folhetins diminuiu um pouco quando entrei
na idade adulta e constatei a falta de variações entre as tramas que surgiam na
televisão - isso se não considerarmos a pobreza das novelas Made in Mexico, que beiravam os limites
do absurdo e do bom gosto. Foram pouquíssimos os momentos em que parei diante
da telinha para prestar atenção em uma telenovela e isso só acontecia quando havia
vilanias memoráveis no vídeo, tais como a inesquecível Nazaré Tedesco de Renata
Sorrah (Senhora do Destino), a
malvada Bia Falcão encarnada por Fernanda Montenegro (Belíssima), a Flora e a Ângela Mahler interpretadas por Patrícia
Pillar (A Favorita / O Rebu), a falsa boazinha Clara vivida
por Mariana Ximenes (Passione), a
antológica Carminha de Adriana Esteves (Avenida
Brasil) e o pérfido e atormentado Félix (Amor à Vida). Os vilões pareciam ser personagens mais repletos de
humanidade do que os ditos "mocinhos" da ficção, o que me dava uma
irritação garantida, ao contrário das gargalhadas garantidas com as estripulias
das maldades e trapalhadas dos que remavam contra a maré...
A Rede Globo de Televisão conseguiu revelar autores de telenovelas de
grande competência e que fizeram do gênero uma verdadeira obra de arte. Silvio
de Abreu, Janete Clair, Aguinaldo Silva, João Emanuel Carneiro, Licia Manzo e
Gilberto Braga são alguns destes mestres que abordaram temáticas que, em alguns
momentos, levaram o povo brasileiro a rever seus conceitos e parâmetros em
relação a uma série de mitos que envolvem nossas relações. Afinal, a novela
consegue ter o poder de discutir tabus que nem o cinema, nem a literatura, nem
a filosofia, por exemplo, conseguiriam discutir com a mesma rapidez com mais de
200 milhões de brasileiros que estão com a televisão ligada às 21h30min!
Babilônia, novela da autoria de Gilberto Braga,
Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, estreou em março de 2015 e tem tudo para
já pertencer a uma galeria de clássicos do gênero: cenas fortes, um texto
provocador e temas incendiários - hipocrisia, corrupção, prostituição,
assassinato, ninfomania, adultério, estelionato e outros vícios que corrompem a
alma do brasileiro... No entanto, escândalos foram criados em torno de uma das
cenas mais leves e singelas da trama: o momento no qual as personagens de
Fernanda Montenegro (Teresa Petrucelli) e Nathalia Timberg (Estela Marcondes),
duas SENHORAS DE IDADE trocam um beijo apaixonado. A bancada evangélica no
Congresso Federal, aliada aos seus rebanhos contidos nos templos espalhados
pelo país, começou uma campanha ostensivamente agressiva de boicote contra a
novela nas redes sociais e na Capital Federal.
Este episódio revela algumas questões bem interessantes: 1) Realmente,
muitos políticos brasileiros encontram-se em um nível de pobreza intelectual,
moral e ética tão grande para se preocuparem com uma novela da Rede Globo
diante de tantos problemas GRAVES que existem no Brasil hoje; 2) Os eleitores
(e fiéis e gaiatos inocentes) que compram a briga da ala mais conservadora do
Congresso Federal desde 1964 refletem o quanto que precisam se informar a
respeito de pautas tão antidemocráticas como esta, que colocam a democracia de
nosso país em sério risco; 3) Um beijo pode ser algo definitivamente
revolucionário, visto que incomoda tanta gente...
Mateus Solano & Thiago Fragoso protagonizaram o primeiro beijo entre dois homens que a TV brasileira levou ao ar. |
Em contrapartida à onda reacionária que atirou atrizes do porte de
Fernanda e Nathália na fogueira sem a menor piedade e respeito, surgiu um
contra-ataque de setores mais esclarecidos (na qual este humilde Blog se
inclui) da sociedade brasileira em apoio à classe artística e à Babilônia.
Gostaríamos de deixar claro apenas que não há a intenção de aniquilar a
chamada "família tradicional" e sim de dar oportunidades para que
outras modalidades de família possam ser legitimadas ao levarmos em conta uma
série de direitos e deveres pelos quais todos possuímos. Novela é coisa de
família, sim: da família que possui um pai é uma mãe, a que possui dois pais ou
duas mães e por aí vai... Por isso, lutaremos para que possamos ver beijos para
todas as pessoas na telinha da TV. Afinal, para cada encostar apaixonado de
lábios, há o recuo da fúria dos hipócritas e oportunistas de plantão...