A INIMIGA DE MORFEU
“Três da madrugada
Quase nada
A cidade abandonada
E essa rua que não tem mais fim
Três da madrugada
Tudo e nada
A cidade abandonada
E essa rua não tem mais nada de
mim
Nada
Noite, alta madrugada
Essa cidade que me guarda
Que me mata de saudade
É sempre assim
Triste madrugada
Tudo e nada
A mão fria, a mão gelada
Toca bem de leve em mim
Saiba
Meu pobre coração não vale nada
Pelas três da madrugada
Toda a palavra calada
Dessa rua da cidade
Que não tem mais fim
Que não tem mais fim
Que não tem mais fim”
(“Três
da Madrugada” –
Torquato Neto & Carlos
Pinto,
1973
na voz de bálsamo de Gal Costa)
Traiçoeira e muito vulgar, ela tem me
atacado de maneira tão vil e infame que me deixa simplesmente sem resistências.
Sem fôlego, com uma ansiedade do tamanho do universo. Ou das minhas angustias. Ou
das minhas loucuras e devaneios sem fim. Minha relação com ela está maravilhosamente
descrita por Vanessa da Mata em uma das canções de seu antológico disco Sim (2007): “Você vai me destruir / Como
uma faca cortando as etapas / Furando ao redor / Me indignando, me enchendo de
tédio / Roubando o meu ar / Me deixa só e depois não consegue / Não me satisfaz”.
Porém, não penso em matar friamente a minha companheira noturna de amor ou de dor, tal
qual quis Vanessa e o seu amado/odiado lá dos seus versos, apenas quero me ver
livre dela das maneiras mais variadas e improváveis...
Perguntinha que não deve calar: quem é
a cidadã que resolvi "homenagear" neste texto de hoje? É a maldita INSÔNIA,
apelidada por mim de “A Inimiga de Morfeu”, que tem me roubado as minhas
últimas noites de sono como uma faca que corta etapas, como um larápio que
atira a minha a tranquilidade e calma aos leões sem um pingo de piedade. Ao invés
de ficar lamentando e ficar virando de um lado para o outro ou tentar
estabelecer com outro insone solitário e/ou tão ansioso (será que isso existe?)
quanto eu, prefiro dialogar com a folha em branco mesmo e dar espaço para que as
reticências tomem conta...
Houve um tempo no qual eu vivi a
intensidade e a loucura da vida regada à boemia. Era um jovem de 20 e poucos
anos que descobria as belezas e os prazeres de uma das cidades mais belas do
mundo – no caso, o Rio de Janeiro! – e achava que o doce sabor da juventude
rimava com o tesão vampiresco de virar noites a fio. Tempos depois, já vivendo
os meus primeiros anos em São Paulo e ainda estudante de pós-graduação,
precisava emendar noite e dia recorrentemente para conseguir entregar uma Dissertação
de Mestrado dentro de um prazo que já estava duplamente estourado. Não me
arrependo destas escolhas, pois elas me fizeram quem eu sou hoje. No entanto,
estes anos refletiram diretamente na minha aparência e, principalmente, na
aceleração da minha ansiedade e no declínio do meu metabolismo.
Depois dos 30 anos de idade, as preocupações
e as inseguranças mudam de foco para todos nós. Comigo não foi diferente:
tornei-me extremamente inseguro em relação a algumas coisas, cético no que diz
respeito a outras e bem menos tímido no que concerne a várias. A ansiedade,
irmã gêmea da insônia, é quem sempre convida a inimiga de Morfeu para vir
brincar em meu quarto e fazer festa com o sono alheio a partir de minhas
incertezas profissionais, pessoais e por aí vai.... Quando estamos no primeiro
estágio da juventude, acreditamos piamente na vã possibilidade de que o tempo é
infinito; quando chegamos na década seguinte, vimos que o tempo é mais
restrito; creio que aos 40 e 50 anos de idade, a percepção deve ser ainda
diferente – para melhor, ou para pior.
Vivo aos 30 e poucos anos de idade
algumas frustrações, algum relativo sucesso, no âmbito profissional, indiscutível conforto conquistado
a duras penas e através do auxílio da... inimiga de Morfeu! Como nunca fui uma
pessoa diurna e sempre precisei do silêncio e da solidão de uma casa silenciosa
e que dorme para colocar os pensamentos em prática, acabei me acostumando com a
quietude quase desesperadora das três da madrugada. No entanto, tal quais os versos do Torquato
Neto que Gal Costa cantou tão belamente, aviso que a calmaria das madrugadas é
como uma mão fria que encosta em nosso ombro a qualquer momento para dizer alguma coisa relevante sobre você mesmo. Explico: acho que as melhores ideias que tive na
vida (excluindo este texto!) surgiram entre seis da tarde e cinco da manhã.
Em meio às contradições, devo à Senhorita
Insônia, eterna Inimiga de Morfeu o meu sucesso nas parcas ideias que possuo e
o fracasso na possibilidade de conseguir oito horas de sono contínuo e decente.
Depois de escrever este texto e de ouvir a belíssima gravação de Gal Costa para
“Três da Madrugada” no repeat a thousand times, vou tentar dormir ou arrumar os livros ou fazer a
barba ou jogar um joguinho no iPad (quem me conhece, sabe que sou completamente
viciado em jogos de corrida de carro). Meu coração e meu sono talvez não possam
valer nada para a noite e para as altas madrugadas, mas a minha mente e os meus
pensamentos cavalgam como devaneios de um caminhante que se quer solitário
pelas páginas da Internet. Assim, deixo o meu grito calado registrado em uma
página de papel: vai que ele encontra algum eco e me leva para os braços do
cara certo...