O
DIA DA INFÂMIA
Como comemorar o Dia da
Consciência Negra depois de vermos mais um corpo negro sendo abatido por
brancos em rede nacional?
“Lord have mercy on this land of mine
We all gonna get it in due time
'Cause I don't belong here
I don't belong there
I've even stopped believing in prayer”
(Nina Simone, 1964)
O ano de 2020 estava bem propício para o Dia da
Consciência Negra no Brasil: depois de mais de cinco décadas, os Estados Unidos
foram varridos por uma convulsão político-social por causa do assassinato
brutal de George Floyd. Os norte-americanos (e o resto do mundo) ficaram
perplexos e revoltados ao ver um homem negro sendo assassinado por asfixia por
policiais brancos em rede mundial. Cansados da perpetuação de tantos corpos
afro-americanos dizimados por aqueles que possuem o privilégio de cor em uma
sociedade racista, os movimentos negros, aliados aos progressistas, foram às
ruas de várias cidades norte-americanas clamando por justiça.
A conta para tanto descaso foi cobrada com juros altíssimos:
custou a reeleição de Donald Trump. O magnata, sempre acostumado a vencer seus
oponentes usando métodos nada ortodoxos, amargou uma derrota fragorosa nas
urnas para o democrata Joe Biden, que não só se aliou ao movimento #BlackLivesMatter, como escolheu uma
mulher negra e filha de imigrantes – Kamala Harris – para ser sua
vice-presidente. O Brasil assistiu com atenção aos resultados do pleito
eleitoral norte-americano: para os progressistas, a derrota de Trump
significaria o início do fim do surto extremista que invadiu a política
nacional; para os bolsonaristas, significaria não apenas o desespero, como a
elaboração de uma estratégia narrativa para justificar uma provável derrota de
seu “mito” nas urnas em 2022.
Feito este breve retrospecto, retornemos à nossa infame
realidade: somos um país composto por 54% de negros. Somos um país que não
oferece igualdade salarial para brancos e negros. Somos um país que possuem
poucos negros nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas e no
Parlamento. No entanto, apesar da quantidade expressiva de ataques do atual
Governo Federal às conquistas da comunidade afrodescendente brasileira e apesar
de tantos negros assassinados no país por violência policial (para não citar
outros casos), estávamos prontos para passar o dia 20 de novembro de 2020
refletindo a respeito da importância dos negros para o Brasil. Porém, tudo
mudou quando recebemos uma notícia na madrugada do Dia da Consciência Negra –
João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi brutalmente espancado até a
morte em um supermercado da rede Carrefour por dois seguranças brancos na
cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
Em poucos minutos, o 20 de novembro de 2020 deixou de ser o Dia da Consciência Negra, com reflexões edificantes sobre igualdade racial, colorismo ou os desmandos da branquitude. A data se converteu no Dia da Infâmia: os noticiários pipocando análises relevantes, alguns preconceitos gritantes, causando o horror de viver em um país profundamente racista e desigual. A crônica que eu estava me prometendo para o dia 22 de novembro, dia de Santa Cecília (Padroeira dos Músicos), minha Santinha de devoção, vai ter que esperar. Cecilinha sabe que a angústia precisava ser expiada por meio das teclas do computador e ela vai me entender por isso...
A morte
brutal de João Beto, como muitos o chamavam, em pleno Dia da Consciência Negra,
serviu não apenas para reacender a revolta de muitos que se sentem
injustiçados, como também reabriu a ferida causada pela perda de tantos outros
que morreram em vão por conta da irresponsabilidade de homens brancos.
Os que não
se esquecem da barbárie diária que mata um negro a cada 23 minutos no Brasil
vão se lembrar de Ágatha Félix, menina de oito anos, morta em 20/09/2019 por
uma bala disparada da arma de um Policial Militar;
Ou vão relembrar de Miguel Otávio, de 5 anos, morto em 02/06/2020, ao cair de um prédio em Recife (PE) por culpa da negligência da patroa branca de sua mãe, que se recusou a cuidar do menino enquanto a empregada saía para passear com o pet da família;
Ou não vão
se esquecer de João Pedro, baleado em uma ação policial no dia 18/05/2020 em
São Gonçalo (RJ), região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro;
Ou podem mencionar
o caso brutal do homicídio do músico Evaldo Rosa, cujo carro foi alvejado por
80 tiros disparados em uma desastrosa operação do Exército Brasileiro em
08/04/2019;
Ou até se
relembrar do caso hediondo de Cláudia Silva Ferreira, vítima de uma operação
militar da PM do Rio de Janeiro – a moça, além de baleada, foi
arrastada por uma viatura policial pelas ruas do subúrbio carioca até a morte.
Os casos, infelizmente,
são vários. A incompetência do Estado é a mesma. As autoridades mais
importantes do Brasil de 2020 (no caso o Presidente e o Vice-Presidente da
República) negam a existência do racismo e minimizam a dor de muitos que já
perderam seus entes queridos por conta de um racismo estrutural que sempre
corroeu a credibilidade das instituições. Como comemorar o Dia da Consciência
Negra depois de vermos mais um corpo negro sendo abatido por brancos em rede
nacional? Como comemorar o Dia da Consciência Negra, feriado que deveria ser
nacional, mas é sempre refutado por achar que deveríamos ter o “dia da
consciência humana”?
A resposta
do movimento negro diante do assassinato brutal de João Alberto foi instantânea:
manifestações públicas se seguiram de protestos e quebradeiras de supermercados
Carrefour, cuja rede é reincidente em casos de racismo – dentre os casos mais
recentes, há o de uma funcionária demitida por denunciar um caso de injúria
racial. Automaticamente, a mídia brasileira (majoritariamente branca) se
apressou em classificar os manifestantes que participaram dos protestos contra
o racismo como “vândalos” e “arruaceiros”, uma ironia infeliz, pois os mesmos
setores da imprensa brasileira viam os manifestos norte-americanos que varreram
as ruas dos EUA como “legítimos”. Eis mais um sinal do quanto que o Brasil
precisa de muitos momentos de reflexão como o “Dia da Consciência Negra” para
desconstruirmos uma série de estereótipos.
Apesar dos
retrocessos, a Avenida Paulista amanheceu com a inscrição “# VIDAS PRETAS
IMPORTAM” no trecho que cobre o MASP sentido Consolação. Não é necessariamente
uma revolução, mas já é o início de um movimento bastante objetivo: não
aceitaremos mais injustiças contra corpos negros em silêncio! A reles crônica que
você lê aqui hoje é mais um manifesto contra as injustiças raciais que são
recorrentes no cotidiano brasileiro. E tenta ser uma breve homenagem a Zumbi, a
João Alberto, Miguel, João Pedro, Evaldo, Ágatha, Cláudia e tantos outros cujos
nomes não podemos esquecer jamais!
ALGUNS LINKS PARA VOCÊ NÃO
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POR AÍ:
·
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295
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https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2020/11/no-brasil-nao-existe-racismo-fala-de-mourao-e-a-mais-racista-das-frases.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
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https://www.conjur.com.br/2020-nov-20/carrefour-historico-agressoes-casos-injuria-racial