30 de agosto de 2020

TROVA # 149

BREGA, CHIQUE e FUNDAMENTAL

O isolamento social se tornou menos chato graças à reprise de Brega & Chique no Canal Viva... 

Desde que a pandemia nos obrigou a ficar em casa por tempo indeterminado, passamos a trabalhar em modo remoto, deixamos de sair para nos divertir e viver os outros prazeres da vida lá fora. Desde que a vida dentro do confinamento se tornou uma realidade sem glamour nenhum e com um tédio persistente, tive que apelar para uma companheira que andava meio sumida por uns tempos: a TV.

Uma opção mais saudável para aguentar a nova rotina à qual fomos submetidos desde meados de março foi assistir às reprises de novelas antigas que o Canal Viva tem levado ao ar há 10 anos, para alegria deste velho noveleiro que vos escreve. Finalmente tinha encontrado uma alternativa mais saudável para o tédio e o desespero ao alternar a atenção dos telespectadores daqui de casa entre o Viva e a Globo News e dar conta da insanidade que impera do lado de fora da nossa casa.

Afinal de contas, é preciso deixar claro que minha infância não foi passada lendo livros como eu gostaria, muito menos brincando na rua com outras crianças da minha idade (sempre fui um antissocial de carteirinha). Eu passei “a aurora da minha vida” na frente da TV assistindo os infantis da época e prestando atenção nas novelas da Rede Globo. Passei anos da minha vida adulta renegando os folhetins da infância até compreender depois de muito tempo que eu não seria quem eu sou hoje se eu não tivesse assistido clássicos da nossa dramaturgia na época como Vale Tudo, Bebê a Bordo, Que Rei Sou Eu?, Tieta, Rainha da Sucata, Lua Cheia de Amor, Vamp, Deus nos Acuda, Quatro por Quatro, as segundas versões de Mulheres de Areia e A Viagem, além da clássica A Próxima Vítima (provavelmente a última novela que eu assisti na íntegra durante a época em que foi ao ar).

As novelas não apenas fazem parte da cultura popular do brasileiro, como também é a porta de entrada de muitos deles para conhecermos a obra de gigantes da Literatura: jamais teria tido acesso à obra de Jorge Amado, de Nelson Rodrigues ou de Eça de Queiroz se não fosse o trabalho da teledramaturgia brasileira. Eis um fato do qual nem eu, nem você que me lê podemos fugir e, sim, devemos encará-lo de frente, sem vergonha nenhuma e com uma bela dose de orgulho.

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Um dos maiores magos do gênero telenovela foi Cassiano Gabus Mendes, autor de clássicos como Beto Rockfeller (1968), Anjo Mau (1976), Marrom Glacê (1979), Elas por Elas (1982), Ti Ti Ti (1985), Que Rei Sou Eu? (1989) dentre outros. Uma de suas marcas registradas era a sátira de costumes: o autor fazia questão de criticar o que existe de mais mesquinho e superficial na nossa sociedade, expondo os personagens ao ridículo por meio de situações fúteis e até preconceituosas. Suas novelas atraíam diversas faixas do público, arrancando risadas de crianças e adultos.




A oportunidade de conhecer melhor o universo de Cassiano se deu graças ao Canal Viva, que começou a reprisar Brega & Chique (1987) desde fevereiro de 2020, para a alegria dos saudosos das novelas da década de 1980 – eu só tinha seis anos na época em que a novela foi ao ar entre abril e novembro de 1987, por isso eu só me lembro de uma mísera cena. A trama principal da novela (exibida às 7h da noite na antiga programação da Rede Globo) é bastante simples para os telespectadores acostumados com as novelas de hoje: Herbert Alvaray (Jorge Dória), um homem rico é casado com Rafaela (Marília Pêra) uma dondoca e pai de três filhos adultos, porém mantém uma segunda família em um bairro de subúrbio com uma segunda mulher, Rosemere (Glória Menezes), uma mulher doce e humilde, com quem Herbert teve uma filha. 



Prestes a falir, Herbert decide simular a própria morte (com o apoio de seu advogado, fiel escudeiro e confidente) para fugir de seus credores e foge para a Suíça, deixando a sua família na miséria e uma herança de 1 milhão de dólares para a amante, que fica rica da noite para o dia. Obrigada a se reinventar, sua primeira esposa decide alugar uma casa na mesma vila no bairro pobre onde a amante do marido vive. Sem saber do homem que partilhavam no passado, as duas não só passam a se conhecer, como também se tornam em grandes amigas. 


Somemos a esse caldo, a presença constante de Zilda (Nívea Maria) – amiga próxima família e também amante de Herbert – e de Montenegro (Marco Nanini), o fiel advogado, apaixonado por Rafaela Alvaray, primeira esposa de seu chefe. O quadro de personagens se completa com os demais moradores da vila onde as duas famílias moravam e mais um elemento surpresa: Cláudio Serra (Raul Cortez), a identidade falsa de Herbert Alvaray, refeito de uma cirurgia plástica meses depois de sua fuga, pronto para rever suas famílias e suas amantes, já que está irreconhecível para aqueles que o conheciam como o falecido marido de Rafaela.

A trama, bem típica dos folhetins que a Globo fazia nos anos 1980 e às vezes tenta refazer por meio de remakes que quase sempre deixam a desejar, se sustentou perante a audiência da época graças à direção do esfuziante Jorge Fernando e de um elenco espetacular encabeçado pela saudosa Marília Pêra, Glória Menezes, Marco Nanini, Jorge Dória, Raul Cortez, Nívea Maria, Marcos Paulo (Luís Paulo) e Dennis Carvalho (Baltazar), além da participação de veteranos e jovens talentos da época como Cássia Kiss, Patrícia Pillar, Cássio Gabus Mendes, Cristina Mullins, Célia Biar, Neuza Amaral, Tato Gabus Mendes, Patrícia Travassos, Jayme Periard e por aí vai. A produção marcava o retorno de Marília às novelas depois de mais de uma década afastada de produções desse tipo. O sucesso de Brega & Chique foi tão retumbante na época de sua exibição, em 1987, que chegou a bater os níveis de audiência de O Outro, novela da oito de Aguinaldo Silva que ia ao ar na mesma época.







Assistir as trapalhadas e peripécias de Rafaela Alvaray (minha personagem preferida da novela e que tirou várias gargalhadas minhas em dias nos quais o noticiário andava caudaloso) não foi apenas um verdadeiro antídoto para os horrores que ficaram do lado de fora da porta da nossa casa, como também me deu uma pontilha de orgulho de ter nascido no mesmo país que Marília Pêra, uma das artistas mais brilhantes que o mundo já conheceu. Sua interpretação para a perua que deixa de ser rica para se transformar em uma vendedora de marmitas é uma das melhores atuações já vistas na história da televisão brasileira. A Rosemere de Glória Menezes, pobretona que se transforma em uma noveau riche em estalar de dedos, é uma interpretação sutil e de uma inteligência que demonstra o porquê da esposa de Tarcísio Meira ser uma das maiores damas de nossa teledramaturgia. A personagem Zilda foge dos estereótipos das mocinhas ingênuas e de bom caráter que Nívea Maria sempre interpretou até então. Jorge Dória e Raul Cortez, respectivamente, fizeram de Herbert Alvaray / Cláudio Serra um vilão marcado por um mau-caratismo sedutor, levemente caricato e infinitamente ordinário, para deleite de suas amadas e do público. E, por fim, o pacato e apaixonado Alberico Montenegro é um exemplo extraordinário do quanto Marco Nanini era hilário antes do surgimento da TV Pirata e muito antes do remake de A Grande Família – a dupla que ele formava com Marília rendia as melhores cenas de Brega & Chique.







Dois elementos da novela de Cassiano Gabus Mendes merecem destaque: as imagens da abertura e os discos que compunham a trilha sonora nacional e internacional de Brega & Chique. A entrada dos créditos do elenco, autores e direção aparecia em meio a imagens de mulheres estonteantes (candidatas de Miss Brasil entre elas) desfilando seus looks duvidosos e elegantes disputando o mesmo homem para, no fim, revelar a nudez milenar do ator e modelo fotográfico Vinícius Manne ao som de “Pelado”, do Ultraje a Rigor (quem se lembra do refrão, hoje clássico: “Pelado pelado / nu com a mão no bolso”?) – por causa disso, a novela chegou a ser ter problemas com a Censura por revelar aquilo que há por debaixo das roupas que vestimos.




Já os discos que fizeram a trilha sonora da novela continham o que havia de melhor na música brasileira e internacional no ano de 1987: uma gravação inédita de Caetano Veloso na época (“Preciso Aprender a Só Ser”), além de sucessos de Fábio Jr., Erasmo Carlos, Leo Gandelman, Beto Guedes, Raul Seixas e da dupla Rita Lee & Roberto de Carvalho, para não citar outros. A versão internacional trazia uma versão de Boy George para “Everything I Own”, do Bread, além de sucessos de Genesis, Whitesnake, George Michael, Simply Red, Jimmy Cliff e Janet Jackson etc. A trilha estrangeira de Brega & Chique deve ter sido uma das trilhas de novela que eu mais devo ter ouvido na vida, já que meus pais tinham uma versão dela em fita cassete, cuja capa mostrava alguns dos melhores atributos de Vinícius Manne.



Entre os meses de março e setembro de 2020, Brega & Chique foi minha companheira inseparável das tardes regadas a um bom café ou das madrugadas (quando não conseguia assistir o capítulo da tarde, assistia à reprise que passava às 0h45). As comédias não nos ajudam a esquecer dos males de uma pandemia, mas certamente nos ajudam na medida em que nos trazem diversão e doses de ironia para nos fazer pensar e rir do quão ridículos nós (ainda) somos. Afinal de contas, é preciso rir em meio às lágrimas que temos vertido ultimamente...