3 de fevereiro de 2017

DISCOS DE VINIL # 18

CHICO BUARQUE & MARIA BETHÂNIA – AO VIVO (1975)



Em meio à guerra entre as estrelas da MPB que povoavam a constelação da gravadora Philips nos anos 1970, os altos executivos da empresa precisavam agradar todos os integrantes de seu casting: Elis Regina, por exemplo, ganhou de presente um disco com o maestro soberano Antônio Carlos Jobim ao comemorar seu décimo ano de carreira no selo. Ao ser questionada em 1975 a respeito de qual mimo gostaria de receber por completar sua primeira década de sucesso, Maria Bethânia não pestanejou, não deixou barato e pediu um show e um disco com o compositor mais importante de sua geração: Chico Buarque de Hollanda.
Junho de 1975 era um momento chave na carreira dos dois artistas: Chico era o artista mais perseguido pela censura, com direto a uma vasta lista de obras vetadas pelos militares. Seu álbum Construção (1971) o colocou no centro das atenções da crítica, do público e (consequentemente) do poder vigente por se tratar de um trabalho extremamente politizado. Chico canta Calabar (1973), que reúne as canções da peça escrita em parceria com Ruy Guerra, sofreu vários vetos da censura oficial. Em Sinal Fechado (1974), o filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, sentiu-se obrigado a interpretar canções de outros compositores, visto que era praticamente impossível para ele gravar canções inéditas naquela época. Bethânia, por sua vez, conseguira se livrar de vez da alcunha de “musa da canção de protesto” recebida graças à sua participação indefectível no musical Opinião.
Ao inaugurar uma sólida parceria com o diretor teatral Fauzi Arap no final dos anos 1960, a irmã de Caetano Veloso passou a realizar shows que aliavam música, poesia e altíssimas doses de dramaticidade. Rosa dos Ventos – Um Show Encantado (1971), Drama, 3.º Ato: Luz da Noite (1973) e A Cena Muda (1974) deram à artista a experiência e a intensidade necessárias para encarar seu projeto musical mais importante até aquele momento – seu encontro com o compositor de “A Banda” nos palcos e no disco.
A temporada de shows de Chico Buarque e Maria Bethânia ocorreria apenas no Rio de Janeiro: foram 118 apresentações entre a noite de estreia – 6 de junho – e o dia 2 de novembro de 1975 na lendária cervejaria/casa de shows Canecão. O espetáculo contou com a direção geral do ator Oswaldo Loureiro, com assessoria de Caetano Veloso e Ruy Guerra. Perinho Albuquerque, produtor musical que era o fiel escudeiro dos baianos durante os anos 1970, fez a direção musical. Já os arranjos de base ficaram a cargo do violonista Luiz Cláudio Ramos (diretor musical dos trabalhos de Chico desde meados da década de 1970 até os dias de hoje) e do Terra Trio (que acompanhava Bethânia nas turnês daquela época). Por fim, os arranjos de orquestra ficaram sob a responsabilidade do maestro Lindolfo Gaya, que regia os músicos durante todas as apresentações.

Um anúncio do show feito em um jornal da época

Os tempos pediam canções e espetáculos que nos ajudassem a compreender a aspereza da repressão imposta pelo regime militar. Havia ditaduras sangrentas em curso na América Latina naquele período, porém a Revolução dos Cravos trouxe um pouco de esperança aos brasileiros quando Portugal decidiu expurgar o salazarismo para fora do poder em 25 de Abril de 1974. Chico Buarque, que já tinha se transformado temporariamente em Julinho da Adelaide para se disfarçar dos censores, tinha se exilado voluntariamente para não ser preso e torturado, além de ter sido covardemente censurado, decidiu não se calar perante os acontecimentos de nossa Pátria Mãe e escreveu uma de suas canções mais belas de todo o seu repertório. “Tanto Mar” não é somente uma homenagem à bravura dos patrícios, como também revela o nosso desejo de esperança em dias melhores:

“Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim”

O clima que antecedia a estreia do show era bastante tenso visto que a nova canção de Chico constaria no setlist e, como era de praxe, os órgãos reguladores de censura deveriam assistir à íntegra do espetáculo para que ele fosse liberado. Resultado da visita daquela ocasião: Chico Buarque e Maria Bethânia poderiam se apresentar juntos no Canecão sob a condição de que “Tanto Mar” não fosse cantada em público. Optou-se, como solução para aquele impasse, por uma apresentação instrumental de uma das criações mais belas do cancioneiro buarqueano, como uma espécie de intermezzo do show.
Dos 18 números que constam no disco, 4 foram interpretados apenas por Chico, 6 por Bethânia e 7 em dueto. O autor de “Apesar de Você” selecionou alguns dos números mais pungentes de Gota D’Água (peça teatral escrita em parceria com Paulo Pontes e que tinha Bibi Ferreira como protagonista) e ainda conseguiu se revelar como um intérprete deveras ousado em outras canções, enquanto a irmã de Caetano Veloso ainda era uma cantora em busca de sua melhor forma vocal – os “R”s guturais que Mary Beth emitia naquele período chegam a dar calafrios nos ouvintes menos acostumados. No entanto, a junção dos dois artistas no palco a partir de “Olê, Olá”, número de abertura do espetáculo, revela não apenas a sintonia entre eles, como também a união bela e harmoniosa de dois opostos em cena (a discrição dele contrastava absurdamente com a expansividade dela), como um diálogo entre dois velhos amigos, que se irmanavam através da música e da dor em comum:

CHICO:
“Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ouvir
E se ela for de samba
Há de querer ficar

Seu padre, toca o sino
Que é pra todo mundo saber
Que a noite é criança
Que o samba é menino
Que a dor é tão velha
Que pode morrer

Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar

Não chore ainda não
Que eu tenho uma razão
Pra você não chorar
Amiga me perdoa
Se eu insisto à toa
Mas a vida é boa
Para quem cantar

Meu pinho, toca forte
Que é pra todo mundo acordar
Não fale da vida
Nem fale da morte
Tem dó da menina
Não deixa chorar

Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar”

BETHÂNIA:
“Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir

Luar, espere um pouco
Que é pro meu samba poder chegar
Eu sei que o violão
Está fraco, está rouco
Mas a minha voz
Não cansou de chamar”

JUNTOS:
“Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Ninguém quer sambar
Não há mais quem cante
Nem há mais lugar
O sol chegou antes
Do samba chegar
Quem passa nem liga
Já vai trabalhar
E você, minha amiga
Já pode chorar”

O show de Chico Buarque e Maria Bethânia se iniciava com um viés explicitamente político. A versão de “The Impossible Dream” e a primeira interpretação do samba “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, feita por duas vozes explicitava a existência de um Brasil amordaçado e que sonhava com a possível liberdade no horizonte. No entanto, um dos momentos mais eletrizantes do espetáculo ocorria quando Bethânia e Chico entoavam “Sem Fantasia”, canção escrita por ele na década anterior. Os versos apontam o desejo de dois amantes de se (re)encontrarem após um sofrido tempo de separação, com direito a um dos arranjos mais belos do maestro Gaya:

“Vem, meu menino vadio
Vem, sem mentir pra você
Vem, mas vem sem fantasia
Que da noite pro dia
Você não vai crescer
Vem, por favor não evites
Meu amor, meus convites
Minha dor, meus apelos

Vou te envolver nos cabelos
Vem perder-te em meus braços
Pelo amor de Deus
Vem que eu te quero fraco
Vem que eu te quero tolo
Vem que eu te quero todo meu

Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar
Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
De tanto te esperar

Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus

E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus”

Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo contou com outras seis canções inéditas: “Vai Levando” (uma das parcerias bissextas de Chico Buarque e Caetano Veloso), “Cobras e Lagartos” (Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho), três composições do musical Gota D’Água – a faixa título, “Flor da Idade” e “Bem Querer” – e “Sem Açúcar”, composta especialmente para a voz de Bethânia. Tal qual “Com Açúcar, Com Afeto” (interpretada por Chico neste espetáculo), esta canção apresenta uma mulher às voltas com o autoritarismo sexista de um marido repressor e retrógrado. As duas obras não apenas apontam o talento do filho de Sérgio Buarque de Hollanda em fazer versos, como também revela a capacidade impressionante de Chico de se expressar através de uma primeira pessoa de voz feminina:

“Todo dia ele faz diferente
Não sei se ele volta da rua
Não sei se ele traz um presente
Não sei se ele fica na sua
Talvez ele chegue sentido
Quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido
Ou nem me adivinha os desejos

Dia ímpar, tem chocolate
Dia par, eu vivo de brisa
Dia útil, ele me bate
Dia santo, ele me alisa
Longe dele, eu tremo de amor
Na presença dele, me calo
Eu, de dia, sou sua flor
Eu, de noite, sou seu cavalo

A cerveja dele é sagrada
A vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada
Sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado
E meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado
Eu rolo sozinha na esteira
E nem me adivinha os desejos
Eu, de noite, sou seu cavalo
Eu rolo sozinha na esteira”

Os demais números solos de Maria Bethânia retratam a intensidade de uma cantora jovem e empenhada em atingir a emoção contida em cada verso das canções que interpretava. As releituras feitas para “Camisola do Dia” (Herivelto Martins & David Nasser) e “Foi Assim” (Lupicínio Rodrigues) demonstram o quanto a irmã de Caetano Veloso era uma devota apaixonada do que existia de melhor nas canções da Era do Rádio brasileiro, visto que se tratam de interpretações rasgadas (e belíssimas) de clássicos perenes do cancioneiro brasileiro dos anos 1950, que tanto influenciou os irmãos Caetano e Bethânia. Foi neste espetáculo que ela (belamente) interpretou pela primeira vez algumas partes de “Gita”, uma das criações mais emblemáticas do repertório de Raul Seixas – a Abelha Rainha apenas interpretou a canção na íntegra em Abraçar e Agradecer, seu espetáculo comemorativo de 50 anos de carreira, fazendo justiça ao legado do nosso eterno “Maluco Beleza”. Vale lembrar também a belíssima e incendiária interpretação do samba “Cobras & Lagartos”, de Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho.

Dois artistas, dois opostos em um mesmo palco

Os números solos de Chico Buarque, por sua vez, revelam um artista destemido e no auge de sua forma poética. Por outro lado, sua versão de “Flor da Idade”, levemente inspirada no famoso poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, se torna cada vez mais tocante na medida em que a voz do cantor precisa evoluir junto com a orquestra de Gaya. E, por fim, as releituras para “Notícia de Jornal” (sucesso na voz da “Divina” Elizeth Cardoso) e a já citada “Com Açúcar, Com Afeto” nos apresentam um Chico levemente irreverente, docemente jocoso, com o charme enigmático que intriga e enlouquece o Brasil há cinco décadas. Por fim, a interpretação sofrida de  “Gota D’Água”, uma das canções mais sinceras de sua própria lavra, é de uma sinceridade absurda e comovente:

“Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia

Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
Faça não
Pode ser a gota d’água”

No entanto, os momentos nos quais os dois artistas estão juntos no palco são os momentos que valem o disco. Os versos doces da pungente “Bem Querer”, introduzidos uma flauta doce e a voz mansa de Chico Buarque nos indicam uma singela canção de amor parecida com os cânticos de ninar. Entretanto, a poética cruel e sangrenta da peça Gota D’Água (uma atualização brilhante de Medéia para os anos 1970) se faz presente no canto rascante e árido de Maria Bethânia, ungido em um vasto repertório de canções de protesto e fossa da melhor qualidade, quando esta adentra o palco para interpretar a canção na segunda parte para que, no fim, a orquestra de Lindolfo Gaya, conclua o número, dando-nos a impressão de um sangramento aberto pelo escapamento do gás.
O gran finale do show, composto de três sambas emocionantes, alia o saudosismo da poética da canção oriunda da Era dos Festivais com o sabor amargo da vida cultural brasileira de tempos de ditadura: “Quem te viu, Quem te vê” traz o saudosismo típico da poética buarqueana dos anos 1960, “Vai Levando” (parceria bissexta de Chico e Caetano) é uma crônica fiel do sentimento angustiante que vivíamos em tempos de censura e repressão e “Noite dos Mascarados” encerra o show/disco com a bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel tocando junto aos músicos e a orquestra de Lindolfo Gaya com direito a um final apoteótico do espetáculo destes dois gigantes da música brasileira.

Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo recebeu uma versão remasterizada em CD no ano de 2006, com direito a um belo texto do jornalista e pesquisador musical Rodrigo Faour sobre o disco. No entanto, a ficha técnica deste clássico deixa a desejar em relação às informações que constam nela, visto que mal sabemos os nomes dos músicos que tocaram no disco, além de ter pouquíssimas imagens do espetáculo – os dados a mais dos quais dispomos surgiram justamente das pesquisas de Faour e de alguns vídeos disponíveis no YouTube. Por outro lado, esta belíssima coleção de 18 canções são não apenas o retrato de dois artistas imprescindíveis de nossa música, como também reúnem a nata do cancioneiro popular brasileiro.