27 de julho de 2017

DISCOS DE VINIL # 35

DAVID BOWIE – YOUNG AMERICANS (1975)


Entre 1973 e 1975, David Bowie fez jus ao seu apelido: CAMALEÃO DO ROCK. Em um espaço de um ano e meio, Ziggy Stardust foi morto na frente de milhares de pessoas no Hammersmith Odeon, um álbum de covers (Pin-Ups) foi lançado para que o mundo se refizesse da morte do roqueiro alienígena e Halloween Jack foi a persona que anunciou a era dos Diamond Dogs em meio à catastrófica Hunger City. Em poucas palavras, podemos dizer que o universo de som e imagem de Bowie vivia sob o signo constante da renovação na década de 1970. Quando tínhamos uma imagem icônica do autor de “Changes” em mente, lá vinha ele com uma mudança de visual e concepção musical para confundir as cabeças de todo mundo…




Em meados de 1974, ao estrear a Diamond Dogs Tour, veio a primeira surpresa: enquanto o mundo esperava um artista andrógino e que traria uma persona semelhante à de Ziggy Stardust (visto que nem Aladdin Sane, tampouco Halloween Jack eram tão distintos da figura do alienígena), surge a figura de um astro do Rock com um corte de cabelo levemente mais discreto (as madeixas cor de fogo de Ziggy, mais curtas, passaram a dar espaço a mechas loiras), magérrimo, esguio e elegantemente vestido em um terno azul bebê da Pierre Cardin com direito a suspensórios – Bowie, que na época, devia pesar pouco mais de 40 kg, seguia uma “dieta” a base de leite integral, café, pimentões, pastilhas de menta, cigarros e… cocaína (Basta observar a capa do álbum David Live, lançado pelo astro em 1974, para constatar o estado de degradação física pelo qual ele atravessava naquele tempo)…


A turnê de divulgação de Diamond Dogs foi um marco não apenas para a carreira de David Bowie ou do Rock: ela foi precursora de muitos espetáculos de música que passaram a ser realizados a partir de então. Ao misturar música, teatro e cenários típicos de qualquer show da Broadway, Bowie tornou-se referência para artistas como arautos de outras tribos e gerações como Madonna, Kanye West, Lady Gaga e Morrissey e inspirou colegas de profissão como Elton John, Kiss e até (quem diria?) os Rolling Stones (leia-se: Mick Jagger e a sua eterna obsessão em parecer jovem através de sua música!). No entanto, quando a tour estreou em julho de 1974, o camaleão inglês andava fascinado pela música negra americana como nunca esteve, o que já indicava uma mudança de direção musical para caminhos paralelos aos do Rock durante aqueles shows.


No mês de agosto de 1974, durante o primeiro intervalo das excursões de Diamond Dogs, o autor de “Space Oddity” decidiu ir para o estúdio gravar as novas composições que já tinha dentro da gaveta. O local escolhido para as gravações do álbum que viria a ser conhecido como Young Americans foi o Sigma Sound Studios, no estado da Philadelphia, berço do Soul norte-americano. A produção do disco ficou dividida entre Tony Visconti, Harry Maslin e o próprio Bowie e estabeleceu-se o acordo de que todas as faixas seriam gravadas ao vivo, com todos os músicos compartilhando o mesmo espaço – o próprio Visconti, ao falar sobre este trabalho, relatou que o disco é nada mais, nada menos que “85% Live David Bowie”. Durante as gravações do disco, a turnê Diamond Dogs voltou para a estrada, mas já rebatizada como Philly Dogs, em alusão descarada ao som que se produzia no lendário estúdio da Philadelphia.

Bowie no estúdio junto de Robin Clark, Ava Cherry e o jovem Luther Vandross

O termo que define o som que o camaleão inglês queria produzir naquele momento era “Plastic Soul”, uma espécie de música Soul feita por um branco! Se David Bowie quisesse realmente alcançar tamanho nível de excelência, teria que ir em busca de músicos que estivessem em sintonia com o Soul, o Funk e o Jazz. Para tal, o jovem astro não mediu esforços: verdadeiras autoridades no assunto foram convocadas para as gravações do novo projeto – Andy Newmark (baterista do Sly & The Family Stone), o guitarrista Carlos Alomar (que se tornou parceiro e colaborador fixo por alguns anos), o saxofonista de jazz David Sanborn, o já experiente pianista e tecladista Mike Garson (que já acompanhava Bowie em turnês desde 1973) e um jovem fã de Diana Ross que fez os arranjos vocais e se tornaria famoso como cantor no final daquela mesma década de 1970 – Luther Vandross.


Em 1974/75 era incomum vermos artistas brancos flertarem descaradamente com a música negra a ponto de cantar e tocar como um Bluesman do Delta do Mississipi, por exemplo. Elvis Presley aprendeu tudo com os negros. O canto de Janis Joplin sofreu influências de Bessie Smith e Tina Turner. Os Beatles e os Rolling Stones não teriam feito os sons que mudaram os rumos do planeta se não conhecessem as bandas de Blues dos Estados Unidos. E David Bowie estava mais alucinado do que nunca pelo Soul americano. No entanto, fazer com que sua música cruzasse a fronteira das rádios negras não era tarefa para qualquer um: a partir de Young Americans, Bowie foi um dos primeiros a transcender tais limites com “Fame” (parceria do astro com John Lennon e o guitarrista Carlos Alomar), que foi catapultada para o primeiro lugar das paradas de sucesso americanas, fato inédito para o próprio homem que estava por detrás da máscara de Ziggy Stardust.

Bowie entre Warren Peace e Ava Cherry, sua namorada na época

Seis faixas que constam em Young Americans foram gravadas na Philadelphia entre agosto e novembro de 1974. A faixa-título, que narra a rapsódia de um casal nativo da terra de Uncle Sam, conta com a participação brilhante dos backing vocais de Ava Cherry, Robin Clark, Diane Sumler, Anthony Hilton, Warren Peace e Luther Vandross. Estes cantores emprestaram seu talento para outras faixas do disco como as baladas “Win” e “Can You Hear Me?”, faixas que contam o sax alto de David Sanborn e belíssimos arranjos de cordas. Em faixas mais rápidas do disco como “Somebody Up There Likes Me” e “Fascination” (parceria de Bowie com Vandross), as vozes destes artistas também brilham intensamente. E a interação destes cantores com Bowie é impressionante em “Right”: as frases e palavras que lead singer e backup singers trocam dão a impressão de golpes de boxe na medida em que um completa as falas do outro em um jogo vocal alucinante.


As duas faixas que completam Young Americans surgiram de um encontro importantíssimo entre David Bowie e John Lennon. Os dois se conheceram em meados de 1974, enquanto a Diamond Dogs Tour passava pelos EUA e o “final de semana perdido” do ex-Beatle chegava ao fim. Bowie chegou a apresentar faixas do disco que estava gravando para Lennon, o que rendeu alguns conselhos valiosíssimos para o autor de “Life on Mars?” (o mais importante deles era a dispensa do empresário Tony Defries, que se consumou pouco tempo depois) e rendeu algumas parcerias que acabaram entrando no álbum que Bowie lançara em 1975: a já citada “Fame” – uma mistura de Rock e Funk capitaneada por um riff arrasador de Carlos Alomar – e uma releitura de “Across The Universe” – canção lançada pelos Fab Four em Let It Be (1970). Um detalhe interessante é que esta segunda faixa contou com a participação especial de John, já reintegrado a New York e reconciliado com Yoko.


Bowie ao lado de John e Yoko

Apesar das duas faixas gravadas nos estúdios Electric Ladyland, em NYC, serem particularmente interessantes, não acho que elas necessariamente dialogam com a proposta do disco pelo fato que elas não são um retrato do som da Philadelphia que Bowie tanto quis produzir em seu ambicioso projeto. Ironicamente, “Fame” já prenuncia a proposta a ser desenvolvida por David Bowie em seu próximo projeto pós – Young Americans: o antológico e aclamadíssimo Station to Station, lançado em 23 de janeiro de 1976.



Bowie ao lado de Liz Taylor

As faixas de Young Americans que foram descartadas do álbum vieram a público anos depois. A segunda versão para “John I’m Only Dancing” deixou de lado a sonoridade Rock dos tempos de Ziggy Stardust para abrir as portas para as batidas da Disco Music que surgia no final de 1974 e chegou a ser tocada em algumas apresentações de Philly Dogs. Já as baladas “Who Can I Be Now?” e “It’s Gonna Be Me” – lançadas em uma edição especial de 2007 de Young Americans (que você ouve acima) – são duas interpretações marcantes de David Bowie que atestam a sua evolução enquanto cantor. Já a releitura de “It’s Hard To Be A Saint In Te City” (de Bruce Springsteen) e a inédita “After Today” saíram na caixa Sound + Vision (1990).



Young Americans fez com que David Bowie deixasse de ser o homem das estrelas deliciosamente bizarro para se transformar em um elegante homem do Soul, com ternos impecáveis e com um som indefectível. Ao analisarmos o legado que este álbum ofertou para a música do planeta, quatro décadas após o seu surgimento, concluímos que foi um dos primeiros trabalhos de um artista branco que fazem música negra sem oportunismos, modismos e cacoetes. Um disco que deve ser ouvido bem alto, com muito carinho e com muita atenção…