DAVID BOWIE – YOUNG
AMERICANS (1975)
Entre 1973 e 1975, David Bowie fez jus ao seu
apelido: CAMALEÃO DO ROCK. Em um espaço de um ano e meio, Ziggy Stardust foi
morto na frente de milhares de pessoas no Hammersmith Odeon, um álbum de covers
(Pin-Ups) foi lançado para que o
mundo se refizesse da morte do roqueiro alienígena e Halloween Jack foi a
persona que anunciou a era dos Diamond
Dogs em meio à catastrófica Hunger City. Em poucas palavras, podemos dizer
que o universo de som e imagem de Bowie vivia sob o signo constante da
renovação na década de 1970. Quando tínhamos uma imagem icônica do autor de
“Changes” em mente, lá vinha ele com uma mudança de visual e concepção musical
para confundir as cabeças de todo mundo…
Em meados de 1974, ao estrear a Diamond Dogs Tour, veio a primeira
surpresa: enquanto o mundo esperava um artista andrógino e que traria uma
persona semelhante à de Ziggy Stardust (visto que nem Aladdin Sane, tampouco
Halloween Jack eram tão distintos da figura do alienígena), surge a figura de
um astro do Rock com um corte de
cabelo levemente mais discreto (as madeixas cor de fogo de Ziggy, mais curtas,
passaram a dar espaço a mechas loiras), magérrimo, esguio e elegantemente
vestido em um terno azul bebê da Pierre Cardin com direito a suspensórios –
Bowie, que na época, devia pesar pouco mais de 40 kg, seguia uma “dieta” a base
de leite integral, café, pimentões, pastilhas de menta, cigarros e… cocaína
(Basta observar a capa do álbum David
Live, lançado pelo astro em 1974, para constatar o estado de degradação
física pelo qual ele atravessava naquele tempo)…
A turnê de divulgação de Diamond Dogs foi um marco não apenas para a carreira de David Bowie
ou do Rock: ela foi precursora de muitos espetáculos de música que passaram a
ser realizados a partir de então. Ao misturar música, teatro e cenários típicos
de qualquer show da Broadway, Bowie
tornou-se referência para artistas como arautos de outras tribos e gerações
como Madonna, Kanye West, Lady Gaga e Morrissey e inspirou colegas de profissão
como Elton John, Kiss e até (quem diria?) os Rolling Stones (leia-se: Mick
Jagger e a sua eterna obsessão em parecer jovem através de sua música!). No
entanto, quando a tour estreou em julho de 1974, o camaleão inglês andava
fascinado pela música negra americana como nunca esteve, o que já indicava uma
mudança de direção musical para caminhos paralelos aos do Rock durante aqueles shows.
No mês de agosto de 1974, durante o primeiro
intervalo das excursões de Diamond Dogs, o autor de “Space Oddity” decidiu ir
para o estúdio gravar as novas composições que já tinha dentro da gaveta. O
local escolhido para as gravações do álbum que viria a ser conhecido como Young Americans foi o
Sigma Sound Studios, no estado da Philadelphia, berço do Soul norte-americano.
A produção do disco ficou dividida entre Tony Visconti, Harry Maslin e o
próprio Bowie e estabeleceu-se o acordo de que todas as faixas seriam gravadas
ao vivo, com todos os músicos compartilhando o mesmo espaço – o próprio
Visconti, ao falar sobre este trabalho, relatou que o disco é nada mais, nada
menos que “85% Live David Bowie”.
Durante as gravações do disco, a turnê Diamond
Dogs voltou para a estrada, mas já rebatizada como Philly Dogs, em alusão descarada ao som que se produzia no lendário
estúdio da Philadelphia.
Bowie no estúdio junto de Robin Clark, Ava Cherry e o jovem Luther Vandross |
O termo que define o som que o camaleão inglês
queria produzir naquele momento era “Plastic
Soul”, uma espécie de música Soul
feita por um branco! Se David Bowie quisesse realmente alcançar tamanho nível
de excelência, teria que ir em busca de músicos que estivessem em sintonia com
o Soul, o Funk e o Jazz. Para tal,
o jovem astro não mediu esforços: verdadeiras autoridades no assunto foram
convocadas para as gravações do novo projeto – Andy Newmark (baterista do Sly
& The Family Stone), o guitarrista Carlos Alomar (que se tornou parceiro e
colaborador fixo por alguns anos), o saxofonista de jazz David Sanborn, o já
experiente pianista e tecladista Mike Garson (que já acompanhava Bowie em
turnês desde 1973) e um jovem fã de Diana Ross que fez os arranjos vocais e se
tornaria famoso como cantor no final daquela mesma década de 1970 – Luther
Vandross.
Em 1974/75 era incomum vermos artistas brancos
flertarem descaradamente com a música negra a ponto de cantar e tocar como um Bluesman do Delta do Mississipi, por
exemplo. Elvis Presley aprendeu tudo com os negros. O canto de Janis Joplin
sofreu influências de Bessie Smith e Tina Turner. Os Beatles e os Rolling
Stones não teriam feito os sons que mudaram os rumos do planeta se não
conhecessem as bandas de Blues dos Estados Unidos. E David Bowie estava mais
alucinado do que nunca pelo Soul
americano. No entanto, fazer com que sua música cruzasse a fronteira das rádios
negras não era tarefa para qualquer um: a partir de Young Americans,
Bowie foi um dos primeiros a transcender tais limites com “Fame” (parceria do
astro com John Lennon e o guitarrista Carlos Alomar), que foi catapultada para
o primeiro lugar das paradas de sucesso americanas, fato inédito para o próprio
homem que estava por detrás da máscara de Ziggy Stardust.
Bowie entre Warren Peace e Ava Cherry, sua namorada na época |
Seis faixas que constam em Young Americans foram
gravadas na Philadelphia entre agosto e novembro de 1974. A faixa-título, que
narra a rapsódia de um casal nativo da terra de Uncle Sam, conta com a participação brilhante dos backing vocais de
Ava Cherry, Robin Clark, Diane Sumler, Anthony Hilton, Warren Peace e Luther
Vandross. Estes cantores emprestaram seu talento para outras faixas do disco
como as baladas “Win” e “Can You Hear Me?”, faixas que contam o sax alto de
David Sanborn e belíssimos arranjos de cordas. Em faixas mais rápidas do disco
como “Somebody Up There Likes Me” e “Fascination” (parceria de Bowie com Vandross),
as vozes destes artistas também brilham intensamente. E a interação destes
cantores com Bowie é impressionante em “Right”: as frases e palavras que lead singer e backup singers trocam dão a impressão de golpes de boxe na medida
em que um completa as falas do outro em um jogo vocal alucinante.
As duas faixas que completam Young Americans surgiram
de um encontro importantíssimo entre David Bowie e John Lennon. Os dois se
conheceram em meados de 1974, enquanto a Diamond
Dogs Tour passava pelos EUA e o “final de semana perdido” do ex-Beatle
chegava ao fim. Bowie chegou a apresentar faixas do disco que estava gravando
para Lennon, o que rendeu alguns conselhos valiosíssimos para o autor de “Life
on Mars?” (o mais importante deles era a dispensa do empresário Tony Defries,
que se consumou pouco tempo depois) e rendeu algumas parcerias que acabaram
entrando no álbum que Bowie lançara em 1975: a já citada “Fame” – uma mistura
de Rock e Funk capitaneada por um riff
arrasador de Carlos Alomar – e uma releitura de “Across The Universe” – canção
lançada pelos Fab Four em Let It Be
(1970). Um detalhe interessante é que esta segunda faixa contou com a
participação especial de John, já reintegrado a New York e reconciliado com
Yoko.
Bowie ao lado de John e Yoko |
Apesar das duas faixas gravadas nos estúdios
Electric Ladyland, em NYC, serem particularmente interessantes, não acho que
elas necessariamente dialogam com a proposta do disco pelo fato que elas não
são um retrato do som da Philadelphia que Bowie tanto quis produzir em seu
ambicioso projeto. Ironicamente, “Fame” já prenuncia a proposta a ser
desenvolvida por David Bowie em seu próximo projeto pós – Young Americans: o
antológico e aclamadíssimo Station to Station,
lançado em 23 de janeiro de 1976.
Bowie ao lado de Liz Taylor |
As faixas de Young Americans que
foram descartadas do álbum vieram a público anos depois. A segunda versão para
“John I’m Only Dancing” deixou de lado a sonoridade Rock dos tempos de Ziggy
Stardust para abrir as portas para as batidas da Disco Music que surgia no final de 1974 e chegou a ser tocada em
algumas apresentações de Philly Dogs.
Já as baladas “Who Can I Be Now?” e “It’s Gonna Be Me” – lançadas em uma edição
especial de 2007 de Young
Americans (que você ouve acima) – são duas interpretações
marcantes de David Bowie que atestam a sua evolução enquanto cantor. Já a releitura de “It’s Hard To Be A Saint In Te City” (de Bruce Springsteen) e a inédita “After Today”
saíram na caixa Sound + Vision
(1990).
Young Americans fez
com que David Bowie deixasse de ser o homem das estrelas deliciosamente bizarro
para se transformar em um elegante homem do Soul,
com ternos impecáveis e com um som indefectível. Ao analisarmos o legado que
este álbum ofertou para a música do planeta, quatro décadas após o seu
surgimento, concluímos que foi um dos primeiros trabalhos de um artista branco
que fazem música negra sem oportunismos, modismos e cacoetes. Um disco que deve
ser ouvido bem alto, com muito carinho e com muita atenção…