TIM MAIA – RACIONAL (1975)
“Quero que tudo saia / como o som de
Tim Maia”
(Caetano Veloso, 1983)
Muitos músicos
brasileiros disputaram a alcunha de “o músico mais louco do Brasil”. Raul
Seixas bem que tentou; Marcos Valle e Erasmo Carlos passaram longe; Sérgio
Sampaio e Jards Macalé fizeram alguns esforços dignos; Arnaldo Baptista (se não
fosse um caso clínico tão grave) foi o que chegou mais perto. No entanto,
nenhum deles conseguiu bater a meta de loucuras artísticas de Tim Maia, o
detentor do título: o Síndico redefiniu todos os limites de sensatez e
independência artística com este álbum.
Em 1974, Tim
Maia era um dos músicos mais consagrados da MPB: seus quatro primeiros discos –
lançados pela Philips entre 1970 e 1973 – são registros do que se fez de melhor
em termos de música Soul no Brasil. A fina flor do cancioneiro do Síndico se
tornou a trilha sonora de muitos casais apaixonados e que gostavam de dançar
por aí e fez do gordinho Sebastião Rodrigues Maia, ex-presidiário, ex-suburbano
carioca, ex-companheiro de banda de Roberto e Erasmo um astro da canção
brasileira. Em suma: Tim era um músico de sucesso, amado pelo público e
sentindo os prazeres e armadilhas do sucesso.
No início de
1974, Tim saiu da Philips e foi contratado pela RCA a peso de ouro para que
gravasse um álbum duplo (o Brasil queria abocanhar aquela tendência de mercado,
pegando carona no sucesso dos vinis rechonchudos que Elton John e os Rolling
Stones – para não citar outros – tinham lançado há pouco tempo). Porém, a
relação conflituosa do astro brasileiro com as drogas e a bebida, somando-se às
desilusões amorosas constantes, fez com que ele fosse em busca da paz e do
conforto que nenhum narcótico conseguiria lhe oferecer. Ao ler um dos livros da
seita Universo em Desencanto, Tim
Maia decidiu que o caminho para se livrar de todos os conflitos que lhe
desesperavam era se convertendo à seita de Manoel Jacintho Coelho, grão mestre
daquele rebanho localizado em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
De acordo com
aqueles preceitos religiosos, o mundo estava magnetizado por forças maléficas.
Para que encontrássemos a salvação (via imunização
racional), era preciso acreditar na existência e no poder de um Racional
Superior, abolir todas as cores do vestuário em prol do branco e se livrar de
todos os excessos de uma vida materialista. Com isso, Tim abandonou as drogas e
a bebida, emagreceu consideravelmente e cortou suas longas madeixas ao estilo
Black Power, que eram a sua marca registrada. O resultado deste processo foi Racional, um álbum espetacular, com um
artista no auge da sua forma vocal (graças ao fato de ter dado uma pausa na
bebida e nas drogas), mas no apogeu de sua criatividade em relação ao discurso.
“Bom Senso”, a terceira faixa do disco, é o melhor exemplo deste fato:
Já virei calçada maltratada
E na virada quase nada
Me restou a curtição
Já rodei o mundo quase mudo
No entanto num segundo
Este livro veio à mão
Já senti saudade
Já fiz muita coisa errada
Já pedi ajuda
Já dormi na rua
Mas lendo atingi o bom senso
Mas lendo atingi o bom senso
A imunização
Racional
Racional é um trabalho
fenomenal no que diz respeito à qualidade musical: os músicos da banda
(proibidos por Tim de consumir qualquer tipo de droga) produziram acordes
memoráveis e repletos de groove ao
lado de um band leader instintivo e
de uma inteligência musical ímpar. Funk
e Soul se irmanam intensamente com o
canto do Síndico em uma simbiose jamais ouvida em seus discos da fase Philips.
Por outro lado, o disco é repleto de letras panfletárias, de gosto
explicitamente duvidoso e que revelam um esoterismo barato, beirando o tosco (4
das 9 faixas do álbum possuem o termo “racional” no título das canções e quase
todas elas pedem para que os ouvintes leiam o livro da seita liderada por
Manoel Jacintho Coelho).
Basicamente, a
música era incrível, porém o discurso era (infelizmente) de baixa qualidade:
apesar de Tim Maia ter largado o vício em comida, álcool e narcóticos, a
religião revelara-se como mais uma de suas compulsões – a ferocidade de sua
obsessão tinha um outro viés, tão devastador quanto o de alguém que necessitava
largar o crack ou a heroína…
Um exemplo da
fúria santa de Tim Maia: no auge de seu fervor esotérico, o autor de “Azul da
Cor do Mar” e “Réu Confesso” decidiu assinar suas criações como “Tim Maia
Racional” e exigiu que todos os músicos que trabalhavam com ele se convertessem
ao Universo em Desencanto. A banda foi rebatizada de Seroma Racional e todos os
instrumentos musicais deveriam ser pintados de branco. Ingestão de carne
vermelha e praticar sexo sem o intuito de procriar estava completamente fora de
cogitação. Tim finalmente atingira o ápice de sua maluquice enquanto membro da
seita de Belford Roxo: as consequências de sua doideira não tardariam a aparecer…
Quando os
executivos da RCA tomaram conhecimento das loucuras religiosas de Tim Maia,
decidiram remover o contrato com o artista. Tim aceitou o rompimento com a
condição de que levasse consigo todas as bases do disco duplo que já estavam
gravadas e que se encontravam em poder da gravadora. Com o sinal verde dos
homens de terno e gravata, o Síndico lançou seu quinto álbum de maneira
independente através do selo SEROMA (cujo nome veio das primeiras sílabas de
Sebastião Rodrigues Maia, nome de batismo do cantor) e fez história na música
brasileira como um dos primeiros artistas do mainstream musical brasileiro a lançar um disco de forma autônoma
em relação às grandes gravadoras. Racional chegou a ter duas sequências: Racional, Vol. 2 veio a público apenas em
1976, provavelmente porque havia uma enorme dificuldade de Tim para prensar e
distribuir o disco. No final da década de 1990, depois que o Síndico já havia
morrido, as master tapes de Racional, Vol. 3 foram
encontradas e só chegaram aos ouvidos dos fãs em 2011, graças a uma iniciativa
conjunta de Carmelo Maia (filho de Tim), Kassin e o falecido maestro/arranjador
Lincoln Olivetti em uma parceria entre a Sony Music, a Vitória Régia (da
família Maia) e a editora Abril.
Tim Maia pagou
um preço altíssimo por sua vontade intensa de autonomia em relação ao mercado: Racional foi sumariamente ignorado pela
crítica e pelo grande público na época – ironicamente, esta fase é uma das mais
admiradas e veneradas pelos fãs do Síndico. Os shows começaram a ficar vazios e
a minguar dramaticamente. A grana e o sucesso desapareceram em um estalar de
dedos. No momento enquete o fracasso finalmente encontrara as portas de Tim,
descobriu-se que Manoel Jacintho Coelho era um charlatão descompromissado com a
fé alheia e interessado apenas em dividendos financeiros. Como consequências, o
Síndico decidiu se “magnetizar” novamente e a obra religiosa de Sebastião
Rodrigues Maia tornou-se eternamente amaldiçoada pelos olhos de seu criador e
foi eternamente renegada enquanto ele esteve vivo.
Racional é o momento
mais criativo e polêmico da discografia de Tim Maia. A viagem místico-musical
do Síndico merece nossa audição, mas não deve ser levada a sério por se tratar
da maior maluquice musical que um artista brasileiro realizara em vida. Tim não
deve em nada a um pastor negro norte-americano em termos vocais, porém as
letras paupérrimas que pregava a nossa leitura dos mais de 1000 livros da seita
Universo em Desencanto. O disco traz um conceito confuso, mas a sobriedade
vocal do maior artista negro da música brasileira o coloca também como a maior
voz gospel surgida neste país: se os cantores evangélicos ou os padres que se
arriscam como cantores que adoram pregar a chamada “palavra de Deus” buscassem
inspiração no som produzido por Sebastião Rodrigues Maia, a qualidade do que se
ouve por aí seria muito melhor – principalmente porque uma canção como
“Imunização Racional (Que Beleza)” nós dá a impressão de que foi gravada
anteontem. Este trabalho é a prova mais cabal que a loucura também consegue
produzir coisas belas de se ver e também de se ouvir…