17 de janeiro de 2021

TROVA # 159

 

A GLORIFICAÇÃO DA IGNORÂNCIA

Dois episódios de intolerância e burrice que podem levar a democracia para o colapso


The lunatic is in my head

The lunatic is in my head

You raise the blade,

you make the change

You re-arrange me ‘til I’m sane

You lock the door

and throw away the key

There’s someone in my head

but it’s not me

(Roger Waters, 1973)

 

                Todos nós sabíamos que os primeiros dias de 2021 não seriam nada fáceis para o Brasil, tampouco para o resto do mundo. Porém, dois eventos ocorridos na primeira quinzena de janeiro demonstram que, tal qual nos diz o ditado, “miséria pouca é bobagem”.

         Nos EUA, Donald Trump entrou no ano novo ainda sem ter admitido que a derrota por Joe Biden nas eleições presidenciais de 2020. O mundo inteiro sabia que o demônio de laquê faria mais uma investida contra as instituições norte-americanas para garantir mais quatro anos dentro da Casa Branca. A transferência de poder, longe de ser harmônica e republicana, tem sido uma troca de acusações, deixando a opinião pública em alerta por se tratar do país mais poderoso do planeta.

         No dia 6 de janeiro de 2021, o mundo tomou conhecimento da cartada de Trump para manter o poder. Diretamente de Washington, incitou uma horda de supremacistas brancos fanáticos para marchar até o prédio do Capitólio e impedir os membros do Congresso Nacional de diplomar Biden como o 46.º Presidente dos EUA. Os invasores invadiram um prédio público com facilidade, promovendo arruaças, quebra-quebras, pondo a vida de centenas de congressistas em risco. Cinco pessoas foram mortas em um dos eventos mais vergonhosos da história da democracia, com direito a transmissão mundial e em tempo real.

         Para estas retinas um tanto fatigadas, a cena mais estarrecedora de 6 de janeiro foi revelada no dia seguinte. Um vídeo divulgado por Donald Trump Jr., filho mais velho do Presidente, mostrava imagens da comitiva presidencial acompanhando a insurreição do Capitólio por meio de imagens de câmeras de segurança diretamente dos jardins da Casa Branca. Enquanto a barbárie avançava ferozmente, acuando os congressistas norte-americanos e demais presentes, os autofalantes tocavam “Gloria”, um sucesso de Laura Branigan que tinha feito enorme sucesso no início dos anos 1980.


Ao mesmo tempo em que correligionários trumpistas dançavam e urravam de alegria e excitação, ouviam-se os versos “Gloria, / don't you think you're fallin'? / If everybody wants you, / why isn't anybody callin'?” [Glória, / você ainda não entendeu que está caindo? / Se todo mundo lhe quer / por que não há ninguém chamando?”]. Por uma ironia do destino, os trumpistas bailavam tinha a trilha sonora perfeita para demonstrar que não se importavam com o fato de que mais de 80 milhões de pessoas e de que centenas de delegados se recusaram a prosseguir com o projeto de governo catastrófico de Donald Trump por mais quatro anos. O escárnio e o deboche daqueles indivíduos me deixaram profundamente revoltado por não haver nenhuma demonstração de empatia ou apreço pelas instituições.


Como consequência do horror que se abateu pelo Capitólio, um pedido de impeachment contra Donald Trump foi impetrado pela oposição do Partido Democrata, julgando-o culpado pela invasão do Congresso dos Estados Unidos. Nenhum político estadunidense conseguiu a marca histórica de ter sido condenado duas vezes por pedidos de impedimento (da primeira vez ele foi absolvido pelo Senado dos EUA). A ignorância trumpista, depois de tantos males feitos em 4 anos, parece estar chegando ao seu apogeu.

         Logo após os States vivenciarem os espasmos das primeiras vertigens de sua democracia, o nosso processo democrático apresentava novos sinais de que está adentrando em falência múltipla. Enquanto o número de doentes por COVID-19 aumentava assustadoramente devido às reuniões familiares e aglomerações das festas de fim de ano, o Indigno Presidente da República Federativa do Brasil se dizia preocupado com o futuro da nação ao demonstrar pesar com a importância do voto impresso e de que o ambiente político-social brasileira ficaria pior do que o norte-americano se ele não for reeleito em 2022. Durante os primeiros dias do ano, o Ministro da Saúde (um militar “especialista” em logística) destilava a sua arrogância e o seu desconhecimento da complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS), deixando a imprensa e a população em estado de perplexidade diante de seus pronunciamentos. O conhecimento científico passou a contar com o deboche do Presidente e de seus asseclas.

         Porém, a tragédia anunciada há tempos por epidemiologistas e outros especialistas em pandemias, controles epidêmicos e cargas virais se concretizou no raiar do dia 14 de janeiro de 2021. O sistema de saúde de Manaus, capital do Amazonas, atingiu o nível máximo de internações, esgotou todo o seu estoque de oxigênio e entrou em colapso. Enquanto doentes morriam por asfixia, profissionais de saúde e familiares se desesperavam para tentar salvar quem agonizava nos leitos hospitalares. Durante a espera de uma vacina para nos protegermos do coronavírus, assistimos milhares de brasileiros mortos por dia sem poder fazer quase nada. A ignorância bolsonarista, depois de tantos males feitos em 2 anos, parece estar chegando ao seu ápice.

*

         A Era da Mediocridade em escala mundial foi inaugurada por Trump em 2016 e teve nas chamadas fake news o seu combustível para tomar a democracia de assalto. Dois anos depois, o Brasil elegeu um dos políticos mais repugnantes da história para o posto político mais alto da República graças a um misto de desinformação, desumanidade e desserviço. O espaço público tem convivido com o que há de mais abominável em matéria de seres humanos ultimamente, deixando todo o ódio de classe, de raça e de gênero aniquilar o que ainda resta de direitos humanos por estas bandas.

Ao contrário do que acontece na letra de “Brain Damage”, uma das canções mais emblemáticas do repertório do Pink Floyd, o louco que estava na minha cabeça não era eu. De uns tempos para cá, ele deixou de habitar os meus pesadelos para apresentar a intolerância com o intuito de ofuscar a sabedoria e a diversidade, causando uma histeria coletiva de ódio e de ignorância. Graças às correntes toscas de redes sociais e de aplicativos de mensagens, passei a ter um respeito maior pela figura pública de Roger Waters, ex-baixista e líder da lendária banda inglesa, pois poucos escreveram tão bem sobre ódio e intolerância em matéria de canção. Em tempos de mediocridade e ignorância, é fundamental louvamos quem preza por liberdade e democracia e Waters sempre fez questão de denunciar fascistas e autoritários para seus ouvintes.


Por fim, nunca é demais dizer que a chamada “Era da Mediocridade” exige um preço alto daqueles que ainda cultivam a inteligência. Mais do que exaltada, a ignorância é glorificada por meio de autofalantes e pelos brados dos idiotas e tem matado milhares de brasileiros por uma peste que não tem previsão de nos abandonar tão cedo. Mas, enquanto estivermos aqui, estaremos respirando, cantando, escrevendo, protestando e xingando contra todo e qualquer autoritarismo. Afinal, os “esquerdistas” também amam. Às vezes, até demais...