23 de março de 2017

DISCOS DE VINIL # 24

GAL COSTA – ESTRATOSFÉRICA (2015)


Os anos 2000 não foram lá muito significativos para a carreira musical de Gal Costa.  Seus álbuns da primeira metade da década, Gal de Tantos Amores (2001), Bossa Tropical (2002) e Todas As Coisas e Eu (2003) não lembram nem um pouco a cantora e intérprete inquieta, provocante e inspirada de álbuns antológicos como Gal (1969), Índia (1973), Cantar (1974), Gal Canta Caymmi (1976), Aquarela do Brasil (1980), Profana (1984) e Plural (1990). As declarações feitas por Gracinha no início da década de 2000, nas quais reclamava abertamente que a MPB carecia de jovens compositores não apenas enfureceu o público, como também trouxe um consequente ostracismo para a eterna porta-estandarte do movimento tropicalista.


No afã de recuperar o diálogo com a produção musical brasileira do século XXI, Gal Costa se associou a João Marcello Bôscoli e sua gravadora Trama e gravou Hoje (2005), um dos trabalhos mais belos de sua discografia. O CD contou com os arranjos e a produção musical de César Camargo Mariano (segundo marido e ex-diretor musical dos discos de Elis Regina no decorrer da década de 1970 e início dos 1980) e agrupou canções de compositores menos conhecidos Carlos Rennó, Junio Barreto, Péri, Lokua Kanza e inéditas de medalhões da MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque e José Miguel Wisnik. No entanto, a direção musical de César e o timbre forte de Gal nos dão a sensação de que algumas faixas soam como o créme de la créme da Pimentinha ou de algumas criações das lendárias boates do Beco das Garrafas. Em outras palavras, Hoje, apesar de reunir o melhor da juventude musical dos anos 2000, soa irremediavelmente retrô – ou vintage, como diríamos nos dias de hoje.


A primeira década do terceiro milênio ainda nos levou mais dois discos ao vivo de Gal Costa: o insípido Gal Ao Vivo (2006), um registro em CD e DVD da turnê Hoje, além do burocrático Gal Costa Live At The Blue Note (2006), álbum no qual ela reinterpreta os clássicos da Bossa Nova para Inglês ver. Depois do lançamento destes trabalhos, pouquíssimo se ouviu da cantora mais moderna de todo o Brasil durante a segunda metade dos 2000. Alguns diziam que Gracinha tinha desistido de cantar e queria apenas se dedicar à família, outros diziam que era apenas um breve intervalo. O fato é que ficamos sem ouvir Gal lançar álbuns de canções inéditas por mais de cinco anos – uma eternidade para uma artista que sempre produziu com alta frequência.


E quando ainda havia boatos de que Gracinha ainda estava na pior, ela ressurgiu para os olhos de todo o Brasil com um CD que literalmente sacudiu o meio musical no final de 2011. Recanto contou com 11 canções de seu parceiro musical mais recorrente, Caetano Veloso, e fez com que Gal refizesse as pazes com o público e fosse definitivamente louvada pela crítica especializada. Enganaram-se os tolos que achavam que este disco seria mais um disco de MPB easy-listening, com arranjos que remetiam aos discos clássicos que ambos faziam para a Philips nos anos 1970 ou com a musa tropicalista à frente da Banda Cê (power trio que acompanha Caê em shows e discos desde 2006) cantando temas alegres e fáceis de batucar. Recanto era uma viagem ousada de Caetano e Gal conduzida por Moreno Veloso, Kassin e cia. e por sonoridades eletrônicas, de cunho extremamente radical, com letras bastante fortes para serem ditas por aí.


A partir de 2011, Gal Costa passou a desfrutar de um privilégio que pouquíssimos artistas de sua geração conseguiram vivenciar: sua música não apenas rejuvenesceu, como também seu público se renovou. A quantidade de jovens que se somavam aos fãs mais antigos de Gracinha nos shows aumentou em escalas assustadoramente exponenciais. Gal passou a ser uma cantora da maior importância para, nada mais, nada menos do que CINCO gerações. Depois de alguns de ostracismo, a coisa mais linda que existia era simplesmente, brincando com a bela canção de Torquato e Gil, tê-la perto de nós no disco e, melhor de tudo, no palco. Recanto Ao Vivo (2013) é o testemunho audiovisual da paixão e glória de uma das cantoras mais influentes de todo o Brasil, evidenciando uma artista com uma forma vocal simplesmente invejável e com um repertório irrepreensível.


Com o fim da turnê de Recanto, Gal Costa começou a arquitetar as bases do repertório para um novo show. Seguindo às orientações do jornalista Marcus Preto em relação à direção artística e de repertório, Gal reuniu alguns lados B de seus discos (“Caras e Bocas”, “Tuareg”, “Passarinho”) e algumas inéditas para o recital Espelho D’Água, no qual era acompanhada somente por Guilherme Monteiro na guitarra e no violão. As apresentações, que ocorreram entre meados de 2014 e o início de 2015, foram não apenas uma oportunidade para que público e artista revisitassem um legado de décadas, como também serviu para que Gal e Preto arquitetassem o CD Estratosférica ao lado da produção de Kassin e Moreno Veloso.


Gal Costa queria que seu mais recente CD tivesse a mesma sonoridade juvenil de seu antecessor, porém menos radical do que a experiência musical de Recanto. A banda-base que foi reunida para as gravações consiste de Guilherme Monteiro (Guitarra), Kassin (Baixo), Pupillo (Bateria) e André Lima (Órgão e Teclados) e ainda contou com a participação especial em algumas faixas de Davi Moraes (Guitarra), Moreno Veloso (Cello, Piano, Violão, Coro, etc.), João Donato (Fender Rhodes), Armando Marçal (Percussão), Donatinho (Teclados) e o recém-falecido Lincoln Olivetti (Arranjo de Metais). O grande trunfo de Estratosférica não apenas consegue realizar as intenções previstas por seu time criador, como também consegue estabelecer um diálogo com todas as fases da carreira de Gal: “Sem Medo Nem Esperança”, rock de Antonio Cícero e Artur Nogueira que abre o disco, lembra “Vaca Profana”, “Quando Você Olha Pra Ela”, de Mallu Magalhães, nos remete a “Que Pena” (Ela já não gosta mais de mim) e a outros sambas do bom e velho Jorge Ben (quando este ainda não incluído o sufixo -Jor ao seu nome artístico), “Ecstasy”, parceria de Thalma de Freitas e João Donato, parece surgida de Cantar e “Você Me Deu”, parceria de Zeca e Caetano Veloso, dialoga com o universo pop-eletrônico de Recanto.


Ao contrário de alguns de seus colegas de MPB que chegaram à faixa dos 70 anos de idade e dos 50 anos de carreira – a artista em questão atingiu os dois marcos em setembro de 2015! -, Gal Costa decidiu embarcar em uma nave estratosférica com 15 canções inéditas (além de uma faixa bônus), sem olhar para glórias do passado ou homenagens revisionistas. Já na primeira faixa de seu novo CD, Gracinha lança mão de um tom tão ousado quanto na época em que berrava a plenos pulmões que o Brasil precisava estar atento e forte: “Não sou mais tola / Não mais me queixo / Não tenho medo / Nem esperança / Nada do que fiz / Por mais feliz / Está à altura do que há por fazer”. Em outras palavras, Gal Costa chega aos 70 anos dizendo claramente que o essencial é olhar para frente, pois ela ainda sabe que ainda há muito o que ser feito. Permite-se levar pela batida soul de “Jabitacá”, que parece saída de um dos discos da série Racional, de Tim Maia: “Mas não me deixe navegar / Se já não crê no encanto deste mar / Se nossas manhãs se perderam nas ruas sem jardins / Enfeitou a nossa casa / Com a rosa da mais bela cor / Encontrada nas montanhas do Jabitacá”. Além disso, não tem o menor pudor de entoar as libidinosas palavras do velho amigo Tom Zé, que escreveu uma das melhores faixas do disco, “Por Baixo”: “Por baixo do vestido: a timidez / Baixo da timidez: a seda fina / Baixo dela: uma nuvem de calor / Baixo desse calor: um perfume da China”.


Estratosférica traz algumas parcerias inéditas. “Dez Anjos” marca a primeira parceria entre Milton Nascimento e o incensado rapper pop-star Criolo e traz a voz de Gal Costa entoando um lamento urbano pontuado pela bateria de Pupillo e pelo cello de Moreno Veloso: “Seis almas pra tentar / Sete almas dizem não / Oito almas pra sofrer / Nove almas narrarão / Que dez anjos vão morrer / Todos sem arma na mão”. Já a filosófica “Espelho D’Água” é o fruto do primeiro encontro musical entre os irmãos Marcelo e Thiago Camelo: “Eu vi a revoada / O mar, estrela e o nada / Os olhos da morena / E o nosso espelho d’água”. Já a sensual “Ecstasy” surgiu de uma colaboração entre a cantora e atriz Thalma de Freitas com João Donato, que tocou o piano Fender Rhodes na faixa: “Diga que deseja ter pra si / A maravilha de um pleno existir / Um amor assim / Para chamar de Ecstasy / Adorado amor, tão elegante / Multicolor, fascinante / Viver com você / É alcançar o Ecstasy”. Além disto, Gal gravou pela primeira vez uma canção escrita por Marisa Monte – “Amor Se Acalme” foi uma canção escrita especialmente para a eterna musa do Tropicalismo e reproduz com exatidão o universo de amores e paixões intensas tão comuns ao universo de Memórias, Crônicas e Declarações de Amor: “Amor se acalme / Que a noite já vai dormir / A alma passeia / E o nosso corpo fica aqui / Se isto é sonhar, não sei / Parece viver, só eu e você”.




Este CD de Gal Costa mereceria nota 10 se não fosse por um único detalhe sórdido. Não nos referimos ao repertório, que é irrepreensivelmente belo e moderno. Não é pela capa com a foto de Bob Wolfenson, que conseguiu produzir mais uma imagem fantástica e icônica de Gracinha. Não é pela produção e direção artística impecáveis de Moreno Veloso, Kassin e Marcus Preto. É por causa das faixas-bônus deste trabalho. Estratosférica ganhou três edições: uma em LP, uma em CD e outra digital. Por uma estratégia de marketing errônea da Sony Music, gravadora da artista, o LP não ganhou nenhuma faixa bônus, o CD ficou com apenas uma (uma releitura belíssima de Gal para “Ilusão à Toa”, de Johnny Alf – originalmente gravada para a trilha sonora da novela Babilônia, da Rede Globo) e edição digital concentrou duas gravações que são praticamente inéditas do grande público: “Átimo de Som”, parceria de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik e “Vou Buscar Você Pra Mim”, canção que Guilherme Arantes compôs especialmente para a intérprete que, por sinal, nunca tinha gravado nada do autor de “Meu Mundo e Nada Mais”.



Estratosférica é o testemunho definitivo que a cantora mais moderna deste país responde pelo nome artístico de Gal Costa. Muitas cantoras tentam imitar, outras tentam copiar, algumas tentam posar de “moderninha”, mas o fato é que gravações como “Muita Sorte”, “Casca” e “Anuviar” fazem com que se torne ainda mais difícil chegar aos pés do Gracinha já fez e ainda irá fazer. Enquanto a concorrência e os haters chegam de circular, Gal voa por um céu de brigadeiro em sua nave estratosférica zumbindo eternamente por nossos ouvidos...