21 de dezembro de 2016

DISCOS DE VINIL # 12

NEY MATOGROSSO – O CAIR DA TARDE (1997)


                                                                            

                              
                
Em 1997 já era possível eleger qual tinha sido a voz mais ousada da música brasileira da segunda metade do século XX: seu nome era Ney Matogrosso. Em pouco mais de duas décadas e meia de atividades musicais, Ney já tinha feito um pouco de quase tudo – cantou música Pop à frente do grupo Secos & Molhados, virou um Homem de Neanderthal para, logo depois, ser um dos Bandidos mais ilustres da MPB. Anos depois, tornou-se em um irresistível Pescador de Pérolas uma década e meia depois ao interpretar os clássicos do cancioneiro brasileiro e fez projetos especiais memoráveis baseados no legado musical de Chico Buarque e Ângela Maria.


Entretanto, o projeto musical que Ney Matogrosso concretizou em 1997 era mais radical em relação a tudo que tinha feito até então. O Cair da Tarde seria um disco no qual Ney apenas interpretaria o repertório de Heitor Villa-Lobos. Porém, a proposta se completou com canções do maestro soberano Antônio Carlos Jobim, um grande discípulo e admirador da obra de Villa-Lobos. Clássicos da Bossa Nova e da música e câmara, da MPB e de trilhas sonoras do Cinema Brasileiro ao lado de cirandas e das cirandas mais belas do folclore nacional, um repertório ousadíssimo e incomum para os fãs e seguidores do astro. Algo impensável de se cantar no Brasil do final da década de 1990, embalado pela vulgaridade musical do pagode romântico e de bundas televisivas que tremiam loucamente ao som de tchans ordinários e de boquinhas de garrafas assanhadas.


Ney Matogrosso convocou um time extraordinário de músicos para esta gravação: Leandro Braga (piano), Márcio Montarroyos (trompete), Zero (Percussão), Ricardo Silveira (violões e guitarras), Bruce Henry (baixo acústico) e Zé Nogueira (sopros) compuseram a banda de apoio de O Cair da Tarde. Em algumas faixas, o grupo Uakti (Marco Antônio Guimarães, Arthur Ribeiro, Paulo Sérgio Santos e Décio Ramos) fez participações especialíssimas com sua sonoridade regional e bastante peculiar. A obra de Tom Jobim e Villa-Lobos não recebeu um tratamento sinfônico e grandiloquente, típico da tradicional música de câmara, porém foi abordada com enorme reverência e delicadeza por Ney.



“Cair da Tarde” (Heitor Villa-Lobos & Dora Vasconcellos) é o número de abertura do disco: o instrumental delicado do Uakti, somado ao trabalho fenomenal dos músicos da banda de apoio de Ney (com destaque para o piano de Leandro Braga e os sopros de Márcio Montarroyos), nos transporta para um belo recanto de uma floresta do Amazonas, com seus bichos soltos pela mata exótica e verdejante. As faixas seguintes, abordam a melancolia e as belezas de um Brasil que não existe mais, destruído pela insensibilidade humana e pela ganância dos homens. “Veleiros”, “Melodia Sentimental (Heitor Villa-Lobos & Dora Vasconcellos), “Prelúdio Número 3 [Prelúdio da Solidão] (Heitor Villa-Lobos & Hermínio Bello de Carvalho), “Modinha” e “Sem Você” (Antônio Carlos Jobim & Vinícius de Moraes) são exemplos deste fato.

Márcio Montarroyos


UAKTI

O Cair da Tarde surpreende os fãs de Ney Matogrosso e os ouvintes de Jobim e Villa-Lobos por apresentarem releituras intimistas de clássicos do cancioneiro brasileiro. “Trenzinho do Caipira” (Heitor Villa-Lobos & Ferreira Gullar) e “Águas de Março” (Antônio Carlos Jobim) receberam releituras exuberantes e bastante distintas dos originais. “Pato Preto” (Antônio Carlos Jobim) fecha o disco, com esperança de trazer uma espécie de alento para o ouvinte, depois de ter sido exposto à tanta tristeza.


Não há dúvidas de que O Cair da Tarde é o projeto musical mais audacioso da carreira de Ney Matogrosso. Apesar de ser um disco bastante radical, já vendeu mais de 70 mil cópias, um marco para a carreira de Ney. Por outro lado, há alguns fatos importantes sobre este disco que são dignos de registro:


·        Turnê – Ney Matogrosso não saiu em turnê com este disco. Segundo o artista, ele queria colocar uma ilha dentro de um lago em pleno palco, com o Uakti de um lado e a banda de apoio do outro. O altíssimo custo da empreitada fez com que Ney desistisse da ideia, para tristeza de seus fãs, que até hoje imaginam como teria sido este espetáculo;
·        Capa do Disco – A capa de O Cair da Tarde traz a foto de um besouro que pertence ao acervo científico do Museu Nacional, administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É a única imagem da discografia de Ney Matogrosso que não traz uma pose do cantor ou qualquer ilustração que fizesse alusão ao artista;
·        Temática – Antes de Maria Bethânia ter feito bastante sucesso com o repertório do CD e show Brasileirinho, Ney Matogrosso foi uma das primeiras vozes do alto escalão a lançar seu olhar para um Brasil menos conhecido por parte dos ouvintes de MPB.


O Cair da Tarde não é apenas um dos trabalhos mais expressivos da obra de Ney Matogrosso, como também é um dos momentos mais belos da história da música brasileira. Um disco que deve ser ouvido no volume máximo a partir das 17h30 de cada tarde, para que o ouvinte possa se despir de sua máscara urbana insensível e opressora para poder viver a experiência indescritível de viver um Brasil que só existe nas obras de Heitor Villa-Lobos e Antônio Carlos Jobim.