26 de fevereiro de 2017

TROVA # 113

FOSSA ENSOLARADA
(meu apreço e minha inveja do lendário Solar da Fossa)


     

       A partir da segunda metade da década de 1960, a expressão “estar na fossa” adquiriu um sentido distinto do original, ou seja, nada a ver com desilusão amorosa. Tudo isso ocorreu graças a um lendário casarão convertido em uma suntuosa pensão que abrigou a nata da arte, do pensamento da cultura do Brasil daquele período. A Pensão Santa Terezinha, mais conhecido como Solar da Fossa, foi moradia de artistas e intelectuais antenados e engajados do porte de Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Ruy Castro, Naná Vasconcellos, Sueli Costa, Tim Maia, Maria Gladys, Aderbal Freire Filho, Jards Macalé, Antônio Pedro, Zé Kéti, Abel Silva e mitos outros antes de alcançarem o reconhecimento e a fama.

Paulinho da Viola em frente ao portão principal do Solar da Fossa na capa de seu disco de 1971

         Se eu pudesse pegar o Delorean dos meus sonhos e voltar ao ano de 1967, eu faria questão de passar uns dias no Solar da Fossa depois de negociar minha estadia por um precinho bem bacana com D. Jurema Cavalcanti, a administradora da pensão. Poderia tomar um copo de uísque e trocar algumas figurinhas com meu amado mestre Ruy Castro sobre música, literatura e jornalismo. Teria a chance de ouvir Caetano Veloso e Paulinho da Viola cantarem “Alegria, Alegria” e “Sinal Fechado”, dois clássicos da música brasileira pela primeira vez. Conheceria o talento imortal de Zé Rodrix, Tim Maia e de Guarabyra em início de carreira. Assistiria a um show gratuito de Naná Vasconcellos e seus batuques inconfundíveis no meio do quintal da pensão. Viveria o deslumbre das belezas juvenis de Gal Costa, Darlene Glória, Maria Gladys, Betty Faria e Ítala Nandi. E, por fim, poderia xeretar os relacionamentos amorosos nada discretos de Zé Kéti e Antônio Pedro durante o meu tempo livre.




      O principal celeiro da intelligentsia carioca da época foi eternizado pelo jornalista Toninho Vaz em Solar da Fossa: um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias, publicado em 2011 pela Editora Casa da Palavra. Neste livro, o biógrafo de Torquato Neto e Paulo Leminski conta como o lendário casarão de Botafogo se tornou tão conhecido através de centenas de depoimentos de ex-moradores (ilustres ou não) do Solar da Fossa. Uma leitura deliciosa, que acendeu ainda mais minha vontade de ter sido um jovem nos anos 1960 só para poder “estar na fossa”.


        Infelizmente, a história do Solar da Fossa teve os seus altos e baixos, tal qual a trama de qualquer novela global: as disputas judiciais entre Frederico Mello, o arrendatário do casarão e dos terrenos e os proprietários do imóvel renderam longas batalhas nos tribunais, deixando as vidas de várias pessoas em um limbo de incertezas. A guerra entre Mello, Jurema Cavalcanti, os moradores e os donos do imóvel se findou em 1971 quando a justiça determinou que todos deveriam ser despejados da pensão sob escolta policial.


         Pouco tempo depois, o Solar da Fossa foi demolido para dar início à construção do Shopping Rio Sul, um dos maiores templos de consumo da Zona Sul carioca. Era o encerramento de mais um capítulo das batalhas entre liberdade e capital, entre o conservadorismo da direita elitista e o sentimento libertador das esquerdas do período, entre a ditadura militar e a intelligentsia disposta a resistir contra o regime de exceção. A demolição do casarão e o não-tombamento pelo patrimônio histórico-cultural do Rio de Janeiro é mais um exemplo de que nossa tradição em renegar nossa história é muito maior do que o instinto de preservá-la.



         Por outro lado, nem a ditadura, nem os paladinos do capitalismo, tampouco os militares xucros que comandaram o Brasil por mais de 20 anos conseguiram que a história do Solar da Fossa fosse legada ao esquecimento. Afinal, é impossível demolir os edifícios da memória de quem viveu um momento histórico tão significativo para a história da humanidade como foi a segunda metade da década de 1960. Para aqueles, a fossa sempre será libertadora e ensolarada...