FOSSA
ENSOLARADA
(meu
apreço e minha inveja do lendário Solar
da Fossa)
A partir da segunda metade da década de
1960, a expressão “estar na fossa” adquiriu um sentido distinto do original, ou
seja, nada a ver com desilusão amorosa. Tudo isso ocorreu graças a um lendário
casarão convertido em uma suntuosa pensão que abrigou a nata da arte, do
pensamento da cultura do Brasil daquele período. A Pensão Santa Terezinha, mais
conhecido como Solar da Fossa, foi moradia de artistas e intelectuais antenados
e engajados do porte de Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Ruy
Castro, Naná Vasconcellos, Sueli Costa, Tim Maia, Maria Gladys, Aderbal Freire
Filho, Jards Macalé, Antônio Pedro, Zé Kéti, Abel Silva e mitos outros antes de
alcançarem o reconhecimento e a fama.
Paulinho da Viola em frente ao portão principal do Solar da Fossa na capa de seu disco de 1971 |
Se eu pudesse pegar o Delorean dos meus
sonhos e voltar ao ano de 1967, eu faria questão de passar uns dias no Solar da
Fossa depois de negociar minha estadia por um precinho bem bacana com D. Jurema
Cavalcanti, a administradora da pensão. Poderia tomar um copo de uísque e
trocar algumas figurinhas com meu amado mestre Ruy Castro sobre música,
literatura e jornalismo. Teria a chance de ouvir Caetano Veloso e Paulinho da
Viola cantarem “Alegria, Alegria” e “Sinal Fechado”, dois clássicos da música
brasileira pela primeira vez. Conheceria o talento imortal de Zé Rodrix, Tim
Maia e de Guarabyra em início de carreira. Assistiria a um show gratuito de
Naná Vasconcellos e seus batuques inconfundíveis no meio do quintal da pensão.
Viveria o deslumbre das belezas juvenis de Gal Costa, Darlene Glória, Maria
Gladys, Betty Faria e Ítala Nandi. E, por fim, poderia xeretar os
relacionamentos amorosos nada discretos de Zé Kéti e Antônio Pedro durante o
meu tempo livre.
O principal celeiro da intelligentsia carioca da época foi
eternizado pelo jornalista Toninho Vaz em Solar
da Fossa: um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias,
publicado em 2011 pela Editora Casa da Palavra. Neste livro, o biógrafo de
Torquato Neto e Paulo Leminski conta como o lendário casarão de Botafogo se
tornou tão conhecido através de centenas de depoimentos de ex-moradores
(ilustres ou não) do Solar da Fossa. Uma leitura deliciosa, que acendeu ainda
mais minha vontade de ter sido um jovem nos anos 1960 só para poder “estar na
fossa”.
Infelizmente, a história do Solar da
Fossa teve os seus altos e baixos, tal qual a trama de qualquer novela global: as
disputas judiciais entre Frederico Mello, o arrendatário do casarão e dos
terrenos e os proprietários do imóvel renderam longas batalhas nos tribunais,
deixando as vidas de várias pessoas em um limbo de incertezas. A guerra entre
Mello, Jurema Cavalcanti, os moradores e os donos do imóvel se findou em 1971
quando a justiça determinou que todos deveriam ser despejados da pensão sob
escolta policial.
Pouco tempo depois, o Solar da Fossa
foi demolido para dar início à construção do Shopping Rio Sul, um dos maiores
templos de consumo da Zona Sul carioca. Era o encerramento de mais um capítulo
das batalhas entre liberdade e capital, entre o conservadorismo da direita
elitista e o sentimento libertador das esquerdas do período, entre a ditadura
militar e a intelligentsia disposta a
resistir contra o regime de exceção. A demolição do casarão e o não-tombamento
pelo patrimônio histórico-cultural do Rio de Janeiro é mais um exemplo de que nossa
tradição em renegar nossa história é muito maior do que o instinto de
preservá-la.
Por outro lado, nem a ditadura, nem os
paladinos do capitalismo, tampouco os militares xucros que comandaram o Brasil
por mais de 20 anos conseguiram que a história do Solar da Fossa fosse legada
ao esquecimento. Afinal, é impossível demolir os edifícios da memória de quem
viveu um momento histórico tão significativo para a história da humanidade como
foi a segunda metade da década de 1960. Para aqueles, a fossa sempre será
libertadora e ensolarada...