A NUDEZ ARTÍSTICA DE NINA SIMONE
“You can’t
help it. An artist’s duty, as far as I’m concerned, is to reflect the times.”
(Nina
Simone)
Quando li no jornal que o documentário What Happened, Miss Simone?, de Liz
Garbus, iria estrear no Brasil via Netflix, já fiquei com urticária para
assistir o legado de uma das artistas mais importantes de todos os tempos. Nina
Simone não foi apenas uma artista negra que tinha uma voz lindíssima e tocava
um piano de primeiríssima. Ela foi um ser humano que lutou por aquilo que
acreditava e que refletiu as mudanças de um tempo extremamente nefasto para a
história do planeta, os anos 1960.
A artista aos 14 anos de idade. |
Nina na capa de seu último álbum de estúdio, lançado em 1993. |
Nascida
em Tyron, Carolina do Norte, em 21 de Fevereiro de 1933, Eunice Kathleen Waymon
(seu nome de batismo) era filha de uma pregadora evangélica e, como TODAS as
cantoras de sua geração, teve seus primeiros contatos musicais dentro da
comunidade religiosa. Começou a tocar
piano aos 4 anos de idade e foi preparada para ser a primeira concertista negra
dos Estados Unidos da América. Se o Curtis
Institute of Music não tivesse recusado o talento de uma jovem tão virtuosa
pelo descarado motivo de racismo, ela certamente teria sido uma pioneira na
música clássica na terra de Uncle Sam.
Com a impossibilidade de dar continuidade aos seus estudos em piano clássico,
Eunice Waymon precisou começar a trabalhar para manter sua família e deixou de
existir para virar a lendária Nina Simone, nome que adotou para que sua mãe não
soubesse que a filha cantava a “música do demônio” nos palcos dos nightclubs da
Philadelphia.
O
estilo musical de Nina era uma mistura de Jazz,
Blues e o virtuosismo de um Bach e de
um Mendelssohn combinados com uma fulgurante voz de contralto. A música popular
foi elevada para um patamar muito mais sofisticado graças aos dedos mágicos e
ao timbre incomum de Miss Simone e na virada dos anos 1950 para os anos 1960,
Nina já era uma das artistas mais festejadas dos EUA com uma série de discos
gravados ao vivo e em estúdio. Sua interpretação para os standards da canção norte-americana e para os compositores de sua
geração é marcada por uma classe e por um requinte que a coloca ao lado de
musas do Jazz como Billie Holliday,
Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.
Dentre
todos os artistas que lutaram a favor das minorias, pouquíssimas o fizeram com
tanta veemência como Nina. Sua participação na luta pelos direitos civis foi
decisiva para que os EUA enfrentassem de vez a questão do racismo e deixassem
as diferenças entre brancos e negros serem varridas para debaixo do tapete. Como
não podia pegar em armas (vontade não lhe faltou) sua arma era o piano e a
canção era o seu rastilho de pólvora para que vislumbrássemos a importância de
sua luta pelos direitos dos afro-americanos. Foi uma das amigas pessoais de
Malcolm X e conheceu muitos integrantes da intelligentsia
negra norte-americana.
Nina Simone e sua única filha, Lisa Simone Kelly. |
Liz
Garbus expõe estas e outras questões no irrepreensível documentário What Happened, Miss Simone?. Ao eleger a única filha da artista, Lisa
Simone Kelly, como a narradora do filme, ela não só consegue retratar um dos
nomes mais intrigantes da música do planeta a partir de uma ótica bastante pessoal
e peculiar, como também não deixa de expor as contradições e as tragédias pessoais
que rondaram a vida e a arte de Nina Simone. O relacionamento conturbado com o
marido Andrew Stroud (pai de Lisa e ex-empresário da artista, de quem apanhava
constantemente), o prestígio e o declínio de popularidade devido aos seus
posicionamentos radicais no tocante aos direitos civis, os ataques de fúria
causados por seu humor extremamente instável e volátil – Nina foi diagnosticada
no final dos anos 1980 com transtorno bipolar, o que explicava muito em relação
à sua instabilidade – e a reclusão e o ostracismo a partir dos anos 1970 foram
pontos que não deixaram de ser tocados no filme de Garbus.
What Happened, Miss Simone? consegue a proeza de revelar a essência de uma
das maiores artistas de todos os tempos. Expõe a nudez de uma artista que soube
refletir a ferocidade de seu tempo não apenas pela luta de seus ideais, mas
principalmente por ter sido alguém que lutou contra seus demônios mais ocultos,
mais pessoais, tão intensos quanto o sofrimento de muitos negros que perdemos
na luta pelo racismo. A luta principal de Nina era maior do que o embate que
buscava direitos civis para em um país fundado em segredos, mentiras e
repressão: era uma guerra contra si mesma. O filme de Liz Garbus expõe esta
nudez com extrema delicadeza e com uma intensidade feroz, da mesma maneira que
Nina Simone agiu na arte e na vida.