A MÚSICA DA VITROLA DE
CLARA
(algumas considerações
sobre Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho)
de Kleber Mendonça Filho)
“Hoje
Trago em meu
corpo as marcas do meu tempo
Meu
desespero a vida num momento
A fossa, a
fome, a flor, o fim do mundo
Hoje
Trago no
olhar imagens distorcidas
Cores,
viagens, mãos desconhecidas
Trazem a
lua, a rua às minhas mãos
Mas hoje,
As minhas
mãos enfraquecidas e vazias
Procuram
nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão
das noites frias por você
Hoje
Homens sem
medo aportam no futuro
Eu tenho
medo acordo e te procuro
Meu quarto
escuro é inerte como a morte
Hoje
Homens de
aço esperam da ciência
Eu desespero
e abraço a tua ausência
Que é o que
me resta, vivo em minha sorte
Ah, sorte
Eu não
queria a juventude assim perdida
Eu não
queria andar morrendo pela vida
Eu não
queria amar assim
Como eu te
amei”
(Taiguara, 1969)
Em tempos nos quais a estabilidade democrática e a
ética se tornaram itens opcionais no sistema político brasileiro, qualquer
evento cultural que desafie a norma do establishment
em 2016 já é um enorme acontecimento. O cinema brasileiro já nos legou não
apenas o maior deles, como também revelou um dos programas culturais mais
impactantes das últimas décadas: Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho.
O
segundo filme do cineasta pernambucano já seria um grande momento cultural só
por causa de Sonia Braga como protagonista de um grande elenco. Sonia é um mito
do cinema mundial e é uma das mulheres mais belas jamais surgidas na telona do
cinema: encarnou Tieta do Agreste, Dona Flor ao lado de seus dois maridos, já deu
O Beijo do Homem da Aranha, viveu
Gabriela na TV e em Hollywood; fez Eu te
Amo, de Arnaldo Jabor, um dos filmes mais ousados de toda a história de
nossas artes. É dona de uma trajetória invejável, de dar orgulho a todos os
brasileiros de bom coração.
Aquarius ganhou notoriedade no final de
maio de 2016, quando estreou no badalado Festival de Cinema de Cannes. A
Riviera Francesa e o mundo do entretenimento tremeram não apenas com a
qualidade indiscutível da película e com uma das atuações mais fantásticas de
Sonia Braga. Ao final da primeira projeção, elenco, produtores e o diretor do
filme posaram para as câmeras fotográficas e das emissoras de TV do mundo
inteiro denunciando o golpe parlamentar que estava em curso no Brasil.
O impacto foi imediato: o
GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) minimizou os protestos e fez campanha
aberta para que o público brasileiro boicotasse o filme. O Ministério da
Cultura do “governo” Temer repreendeu os envolvidos publicamente e pouco fez
para diminuir a classificação indicativa do filme – ao estrear por aqui, o
filme de Kleber Mendonça Filho recebeu o selo infeliz de “Censura 18 Anos”.
Por outro lado, a
popularidade de Aquarius era inevitável:
antes de chegar de vez no Brasil, o filme já teria exibição garantida em
dezenas de países do mundo e abocanhou um público de 55 mil pessoas nos
primeiros 4 dias de exibição. Em uma semana, 100 mil pagantes já tinham
assistido o segundo filme de Kleber Mendonça Filho. Enquanto os setores mais
conservadores da mídia brasileira não tinham mais como esconder o sucesso deste
trabalho, os espectadores a favor da democracia e contrários ao governo
golpista, tomados pelo tom político arrebatador da película, saudavam o final
de algumas sessões de cinema com gritos de “Fora Temer”, para nojo dos
golpistas e preocupação daqueles que tomaram o poder, mas nunca tiveram um
projeto de poder legitimado pela maioria do povo brasileiro.
A trama de Aquarius gira
em torno de Clara, uma mulher sexagenária que vive no único apartamento
habitável do Edifício Aquarius, localizado em frente à Praia de Boa Viagem, um
dos endereços mais valorizados de Recife (PE). Os demais apartamentos foram
comprados por uma poderosa construtora de imóveis, interessada em erguer um
condomínio gigantesco no lugar do prédio onde a personagem de Sonia Braga viveu
durante a vida inteira. O conflito da protagonista se intensifica quando Diego,
o neto do dono da empresa, inicia uma campanha agressiva para o suntuoso
empreendimento possa ser construído.
O embate entre Clara e
Diego revela a eterna contradição existente entre a sensibilidade poética do
indivíduo e a sua constante sede de poder, que desconhece nostalgia, valores e
sentimentos. A convicção da única moradora do Edifício Aquarius contra o
poderio do capital e da arrogância se tornou inabalável ao ponto de entrar em
conflito com seus próprios filhos. Uma das falas mais impactantes do filme de
Kleber Mendonça Filho é justamente aquela na qual a personagem de Sonia Braga
esfrega na cara do jovem empreendedor interpretado por Humberto Carrão que educação é algo completamente
independente de posses ou dinheiro. Em outras palavras: nem todos os membros
das elites, detentores de posses e do acesso a boas escolas e universidades são
bem-educados.
Clara é uma mulher que
carrega consigo e em seu apartamento as marcas e as memórias do passado,
formando um enorme arquivo sentimental. Seu apartamento no Edifício Aquarius é
uma galeria dos amores que lhe mantém viva e firme na luta contra o poder e a
especulação imobiliária. Ex-crítica de música e especialista em Heitor
Villa-Lobos, a personagem de Sonia Braga expressa seus sentimentos através da
música. “Toda Menina Baiana”, de Gilberto Gil, é a trilha sonora de uma
memorável festa familiar. “O Quintal do Vizinho”, de Roberto & Erasmo, lhe
traz o consolo diante de uma desilusão amorosa e da falta de sensibilidade do
outro. “Another One Bites the Dust” e “Fat Bottomed Girls”, do Queen, são
canções que testam a potência das caixas de som do carro (e do cinema!), como
também são “armas” sonoras para os desmandos ocorridos em uma festa patrocinada
por Diego e ocorrida no apartamento de cima ao da protagonista. Reginaldo Rossi
louva as belezas e os encantos mil de Recife e do Nordeste Brasileiro enquanto
belas mulheres bailam pelo tradicional Clube das Pás. A minha preferida de
todas as escolhas de Kleber Mendonça Filho é quando Clara, desfrutando de um de
seus melhores momentos de Tia babona, pede para o sobrinho mais novo que ele
toque Maria Bethânia para a namorada carioca que ele acabara de conhecer. Assim,
a menina teria plena convicção de que o rapaz é um cara intenso.
Aquarius não é apenas um belíssimo filme
por causa de sua trilha sonora espetacular ou por trazer a bela e
talentosíssima Sonia Braga bailando pela sala de casa ao som de seus vinis
prediletos. As canções do filme dialogam com os sentimentos de Clara de maneira
direta, sem deixar de nos dizer algo aos recônditos sentimentais mais profundos
de cada um de nós.
A vitrola de Clara não é
apenas um passaporte para as doces memórias do passado. Ela é a pedra de
resistência principal de alguém que resiste a fazer concessões a um mundo que
se faz cada vez mais frio e insensível. Os sons do vinil fazem da personagem de
Sonia Braga uma anã que luta incansavelmente contra um gigante poderoso e covarde
pronto a colocar em prática a sua agenda neoliberal. Aquarius
é um filme inspirador: nos incentiva a lutar pelas injustiças
frequentes no dia-a-dia pessoal e nos motiva a brigar pelos absurdos que
afligem a vida no Brasil do século XXI. Que o Cinema Brasileiro possa nos
ofertar outros filmes de tamanha magnitude...