10 de setembro de 2016

TROVA # 85

A MÚSICA DA VITROLA DE CLARA
(algumas considerações sobre Aquarius
de Kleber Mendonça Filho)


“Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo 

Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos 

Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você 

Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte 

Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte

Ah, sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim
Como eu te amei”
(Taiguara, 1969)


            Em tempos nos quais a estabilidade democrática e a ética se tornaram itens opcionais no sistema político brasileiro, qualquer evento cultural que desafie a norma do establishment em 2016 já é um enorme acontecimento. O cinema brasileiro já nos legou não apenas o maior deles, como também revelou um dos programas culturais mais impactantes das últimas décadas: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.



         O segundo filme do cineasta pernambucano já seria um grande momento cultural só por causa de Sonia Braga como protagonista de um grande elenco. Sonia é um mito do cinema mundial e é uma das mulheres mais belas jamais surgidas na telona do cinema: encarnou Tieta do Agreste, Dona Flor ao lado de seus dois maridos, já deu O Beijo do Homem da Aranha, viveu Gabriela na TV e em Hollywood; fez Eu te Amo, de Arnaldo Jabor, um dos filmes mais ousados de toda a história de nossas artes. É dona de uma trajetória invejável, de dar orgulho a todos os brasileiros de bom coração.




         Aquarius ganhou notoriedade no final de maio de 2016, quando estreou no badalado Festival de Cinema de Cannes. A Riviera Francesa e o mundo do entretenimento tremeram não apenas com a qualidade indiscutível da película e com uma das atuações mais fantásticas de Sonia Braga. Ao final da primeira projeção, elenco, produtores e o diretor do filme posaram para as câmeras fotográficas e das emissoras de TV do mundo inteiro denunciando o golpe parlamentar que estava em curso no Brasil.



O impacto foi imediato: o GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) minimizou os protestos e fez campanha aberta para que o público brasileiro boicotasse o filme. O Ministério da Cultura do “governo” Temer repreendeu os envolvidos publicamente e pouco fez para diminuir a classificação indicativa do filme – ao estrear por aqui, o filme de Kleber Mendonça Filho recebeu o selo infeliz de “Censura 18 Anos”.




Por outro lado, a popularidade de Aquarius era inevitável: antes de chegar de vez no Brasil, o filme já teria exibição garantida em dezenas de países do mundo e abocanhou um público de 55 mil pessoas nos primeiros 4 dias de exibição. Em uma semana, 100 mil pagantes já tinham assistido o segundo filme de Kleber Mendonça Filho. Enquanto os setores mais conservadores da mídia brasileira não tinham mais como esconder o sucesso deste trabalho, os espectadores a favor da democracia e contrários ao governo golpista, tomados pelo tom político arrebatador da película, saudavam o final de algumas sessões de cinema com gritos de “Fora Temer”, para nojo dos golpistas e preocupação daqueles que tomaram o poder, mas nunca tiveram um projeto de poder legitimado pela maioria do povo brasileiro.



A trama de Aquarius gira em torno de Clara, uma mulher sexagenária que vive no único apartamento habitável do Edifício Aquarius, localizado em frente à Praia de Boa Viagem, um dos endereços mais valorizados de Recife (PE). Os demais apartamentos foram comprados por uma poderosa construtora de imóveis, interessada em erguer um condomínio gigantesco no lugar do prédio onde a personagem de Sonia Braga viveu durante a vida inteira. O conflito da protagonista se intensifica quando Diego, o neto do dono da empresa, inicia uma campanha agressiva para o suntuoso empreendimento possa ser construído.



O embate entre Clara e Diego revela a eterna contradição existente entre a sensibilidade poética do indivíduo e a sua constante sede de poder, que desconhece nostalgia, valores e sentimentos. A convicção da única moradora do Edifício Aquarius contra o poderio do capital e da arrogância se tornou inabalável ao ponto de entrar em conflito com seus próprios filhos. Uma das falas mais impactantes do filme de Kleber Mendonça Filho é justamente aquela na qual a personagem de Sonia Braga esfrega na cara do jovem empreendedor interpretado por Humberto Carrão que educação é algo completamente independente de posses ou dinheiro. Em outras palavras: nem todos os membros das elites, detentores de posses e do acesso a boas escolas e universidades são bem-educados.


Clara é uma mulher que carrega consigo e em seu apartamento as marcas e as memórias do passado, formando um enorme arquivo sentimental. Seu apartamento no Edifício Aquarius é uma galeria dos amores que lhe mantém viva e firme na luta contra o poder e a especulação imobiliária. Ex-crítica de música e especialista em Heitor Villa-Lobos, a personagem de Sonia Braga expressa seus sentimentos através da música. “Toda Menina Baiana”, de Gilberto Gil, é a trilha sonora de uma memorável festa familiar. “O Quintal do Vizinho”, de Roberto & Erasmo, lhe traz o consolo diante de uma desilusão amorosa e da falta de sensibilidade do outro. “Another One Bites the Dust” e “Fat Bottomed Girls”, do Queen, são canções que testam a potência das caixas de som do carro (e do cinema!), como também são “armas” sonoras para os desmandos ocorridos em uma festa patrocinada por Diego e ocorrida no apartamento de cima ao da protagonista. Reginaldo Rossi louva as belezas e os encantos mil de Recife e do Nordeste Brasileiro enquanto belas mulheres bailam pelo tradicional Clube das Pás. A minha preferida de todas as escolhas de Kleber Mendonça Filho é quando Clara, desfrutando de um de seus melhores momentos de Tia babona, pede para o sobrinho mais novo que ele toque Maria Bethânia para a namorada carioca que ele acabara de conhecer. Assim, a menina teria plena convicção de que o rapaz é um cara intenso.



  Aquarius não é apenas um belíssimo filme por causa de sua trilha sonora espetacular ou por trazer a bela e talentosíssima Sonia Braga bailando pela sala de casa ao som de seus vinis prediletos. As canções do filme dialogam com os sentimentos de Clara de maneira direta, sem deixar de nos dizer algo aos recônditos sentimentais mais profundos de cada um de nós.


A vitrola de Clara não é apenas um passaporte para as doces memórias do passado. Ela é a pedra de resistência principal de alguém que resiste a fazer concessões a um mundo que se faz cada vez mais frio e insensível. Os sons do vinil fazem da personagem de Sonia Braga uma anã que luta incansavelmente contra um gigante poderoso e covarde pronto a colocar em prática a sua agenda neoliberal. Aquarius é um filme inspirador: nos incentiva a lutar pelas injustiças frequentes no dia-a-dia pessoal e nos motiva a brigar pelos absurdos que afligem a vida no Brasil do século XXI. Que o Cinema Brasileiro possa nos ofertar outros filmes de tamanha magnitude...