19 de outubro de 2016

DISCOS DE VINIL # 4

DAVID BOWIE – (2016)



David Bowie surpreendeu o mundo em 08 de janeiro de 2013 ao divulgar um novo single e um álbum que seria lançado em dois meses. The Next Day não era apenas o retorno de Bowie depois de quase dez anos longe dos discos e dos palcos: era a prova concreta e um dos maiores artistas da música mundial – antes tido como aposentado devido a um ataque cardíaco que quase o fulminou em uma apresentação da Reality Tour na Alemanha em 2004 – finalmente retornava para onde ele nunca deveria ter saído: o topo das paradas de sucesso.
O mais surpreendente do retorno triunfal de Bowie à música não foi o fato dele ter sido feito de maneira misteriosa, sem estratégias de marketing extraordinárias, entrevistas ou apresentações ao vivo. Este comeback indicou o fato de que ele estava extremamente produtivo e criativo: no final de 2013, The Next Day Extra, um EP com 10 sobras de estúdio, quase todas belíssimas. Mesmo assim, várias fontes ligadas ao criador de Ziggy Stardust apontavam que havia material para, pelo menos, mais um disco inédito.


Antes de que o lançamento de um novo álbum de inéditas ocorresse, os fãs do camaleão inglês ainda foram agraciados com Nothing has Changed em novembro de 2014, uma coletânea que saiu em duas versões: em CD duplo e em CD triplo, com direito a raridades e a inédita “Sue (or In a Season of Crime)”. No Brasil, alguns chegaram a comparar esta inédita da lavra de Bowie com “Cais”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, gerando uma polêmica de impacto limitado. A exposição David Bowie Is, que contou com figurinos, manuscritos, vídeos e outros tesouros que compõem o David Bowie Archive, estava rodando o mundo e fez com que o Museu da Imagem e do Som de São Paulo batesse recordes de visitação, com direito a filas de mais de quatro horas para que as pessoas pudessem visitar a lendária exposição que estreou no Victoria & Albert Museum, de Londres.



Entre os meses finais de 2014 e os meses iniciais de 2015, David Bowie decidiu que estava na hora de retornar ao The Magic Shop e ao Human Worldwide Studios em New York, os mesmos locais onde gravara The Next Day em segredo poucos anos antes. Tony Visconti, seu velho amigo, escudeiro e parceiro de tantos projetos musicais juntos, seria o produtor do último álbum de estúdio do camaleão inglês. Outro projeto receberia total atenção do astro inglês: o musical Lazarus, escrito em parceria com Enda Walsh, baseado em O Homem que Caiu na Terra (The Man who Fell to Earth – romance de Walter Trevis de 1963 que foi adaptado para o cinema em 1976 e que foi estrelado pelo próprio Bowie na telona).
Diante de tantos projetos em andamento, era patente que David Bowie tinha urgência, tinha pressa, tinha muito que dizer, visto que não tinha muito tempo de vida pela frente: um câncer fora diagnosticado no segundo semestre de 2014 e uma batalha secreta pela vida já estava em pleno curso.
A prioridade de David Bowie era de que este disco não soasse como um típico de Rock. As inspirações principais do camaleão inglês para compor e gravar as canções de foram o jazz que ouvira em um clube nova-iorquino e o álbum To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar. Bowie decidira entrelaçar a pompa, a classe e a circunstância jazzísticas com batidas de hip hop e poucas guitarras, adornadas com letras que refletissem a sua maneira singular de ver o mundo. Por isso, músicos que o acompanhavam há mais de uma década como o virtuoso guitarrista Gerry Leonard e a carismática baixista Gail Ann Dorsey foram substituídos por Donny McCaslin (sopros), Ben Monder (guitarras), Jason Lindner (piano, órgão e teclados), Tim Lefebvre (baixo) e Mark Guiliana (bateria e percussão).


A faixa-título foi disponibilizada junto com o seu videoclipe no dia 20 de novembro de 2015, deixando todos os espectadores em estado de choque. O curta-metragem, que contou com a direção do renomado Johan Renck, é um misto de imagens perturbadoras de rituais satânicos, execuções, torturas. Em meio a tudo isso, surge David Bowie ora cambaleante com olhos vendados com dois botões substituindo seus olhos, ora dançando e zombando com a morte, dizendo que haveria alguma espécie de vida para além do corpo supostamente combalido:

(…)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)

(…)

I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a Marvel star)
I’m the Great I Am (I’m a blackstar)
I’m a blackstar, way up, on money, I’ve got game
I see right, so wide, so open-hearted pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)”
(…)

Diante de inúmeras referências presentes no clipe de “, é impossível não deixarmos de destacar a figura emblemática de Major Tom, tão presente em outras canções famosas da obra monumental de Bowie como Space Oddity e Ashes to Ashes. O novo trabalho do camaleão iria tratar de temas já conhecidos por parte daqueles que já tinham contato com a sua música: amor, vida e morte, porém com uma intensidade e uma profundidade jamais ditas anteriormente.



A segunda faixa de , “’Tis a Pity Shes a Whore”, pegou um título emprestado de uma peça do dramaturgo inglês John Ford, cuja obra data do século XVII. A canção tinha sido disponibilizada como um lado B para o single de “Sue (or In a Season of Crime)”, de Nothing has Changed. Bowie decidiu regravar versões mais rápidas e palatáveis de “‘Tis a Pity…” e “Sue…” para o seu vigésimo-quinto álbum de estúdio, o que foi uma escolha acertada, visto que a primeira canção ficou mais fluida e a segunda com uma pegada mais rocker e sem o tom épico de sua gravação original.
Por outro lado, ambas tratam de um ponto em comum – a batalha de um homem contra um inimigo implacável: em “‘Tis a Pity…” a vadia que bate em seu interlocutor e lhe deixa completamente sem reação ou defesa pode ser uma metáfora da doença que iria lhe levar poucos meses depois; em “Sue…”, a amada prestes a desaparecer a qualquer momento, por motivos escusos.
As três faixas finais de nos evidenciam o estado dramático de David Bowie. Girl Loves Me, quinta faixa do disco, possui algumas supostas influências de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica), cuja obra sempre exerceu notável fascínio da parte do criador de Ziggy Stardust. Os versos da canção, em sua maioria, não possuem a intenção de fazer alguma espécie de sentido, o que permite a interpretação de poder se tratar de uma espécie de delírio, típico daqueles que estão prestes a ultrapassar a barreira que separa a vida da morte:


(…)
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me

Where the f— did Monday go?
I’m cold to this pig and pug show
Where the f— did Monday go?
You viddy at the Cheena
Choodesny with the red rot
Libbilubbing litso-fitso
Devotchka watch her garbles
Spatchko at the rozz-shop
Split a ded from his deng deng
Viddy viddy at the cheena
(…)

“Dollar Days”, a faixa mais sensível do álbum, é a canção que recebe as confissões mais tristes e sofridas de David Bowie. A ausência de inimigos declarados em meio a uma doença implacável e incurável, o pavor de ser esquecido pelas pessoas amadas (no caso de Mr. David Jones, a esposa Iman e os filhos Duncan e Alexandria) são tratados sem metáforas, com uma linguagem extremamente direta. O belíssimo solo de saxofone de Donny McCaslin é de uma beleza e de uma sensibilidade ímpares, que casam com a melancolia dos versos de Bowie:


Cash girls suffer me, I’ve got no enemies
I’m walking down
It’s nothing to me
It’s nothing to see
If I’ll never see the English evergreens I’m running to
It’s nothing to me
It’s nothing to see
I’m dying to
Push their backs against the grain
And fool them all again and again
I’m trying to
We bitches tear our magazines
Those oligarchs with foaming mouths phone
Now and then
Don’t believe for just one second I’m forgetting you
I’m trying to
I’m dying to
(…)

é concluído com I Cant Give Everything Away”, um recado de David Bowie para a esfera pública que sempre lhe deu tanto fama, respeito e admiração. Diante do sofrimento constante e da morte iminente, o astro inglês deixou claro através de sua arte a ciência de seu estado, mas não queria uma despedida formal (daí o título: to give away, em português, quer dizer divulgar algo secreto) – provavelmente para não atrair o sensacionalismo da grande mídia diante de sua tragédia particular. Eis algumas das palavras finais do disco:


Seeing more and feeling less
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That’s the message that I sent

I can’t give everything
I can’t give everything
Away
I can’t give everything
Away

A terceira faixa do disco e segundo single de , Lazarus, é mais do que a canção que dá título ao musical off-broadway escrito por David Bowie e Enda Walsh: é a chave-mestra do vigésimo-quinto álbum de estúdio do camaleão inglês. O clipe, disponibilizado para o grande público em 7 de janeiro de 2016 (um dia antes do aniversário de Bowie e 24 horas antes do lançamento do álbum), também recebeu a direção de Johan Renck e apresenta uma série de mensagens subliminares para os espectadores:


Look up here, I’m in heaven
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now
Look up here, man, I’m in danger
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain’t that just like me?
(…)

A mensagem da canção é clara: as cicatrizes não são aparentes, a dor é evidente, a voz vem de um plano que não é mais o mesmo que habita as pessoas que vivem. Não há nada a perder, mas há muito a ser dito. David Bowie encarnava seu último personagem: ao contrário de todas as personagens vividas por Bowie nos anos anteriores, o Lazarus do vídeo não possuía o distanciamento brechtiano necessário da parte de um ator para encarnar um Ziggy Stardust, Halloween Jack ou um Thin White Duke.
Se a figura bíblica supostamente ressuscitada por Jesus depois de quatro dias (João, 11:1-46,) seria a última persona a ser vivida, David Robert Jones se utilizava de seu sofrimento mais íntimo e intenso (puro Stanilaviski!) para encenar a morte que viria lhe buscar dentro em breve. Era a sua despedida daqueles que o acompanharam atenciosamente por mais de cinco décadas:

(…)
By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass
This way or no way
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?
Oh, I’ll be free
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?

Bowie aparece deitado na cama, cantando o seu sofrimento com os olhos vendados e com dois botões no lugar de seus olhos. A alusão é feita à mitologia grega do Barqueiro de Caronte: naquela época, era comum colocarem duas moedas nas vendas dos mortos como forma de pagamento do barqueiro que levaria a alma dos falecidos para Hades.
O clipe mostra mais do que uma pessoa à beira de morte a partir de simbolismos nada óbvios, ele mostra o canto do cisne de um dos artistas mais importantes dos últimos 50 anos. A maioria das pessoas só conseguiu ter a compreensão deste fato quando a trajetória de David Robert Jones neste plano chegou ao fim na noite de 10 de janeiro de 2016.
A crítica musical, em sua maioria, rendeu elogios a , alegando que o álbum é bom, apesar de não haver nenhuma conexão com o Pop ou o Rock. Alguns jornalistas, no alto de sua canalhice e do seu poder enquanto editores de cadernos culturais de jornais de grande circulação, ainda tiveram a maldade de comparar a suposta excentricidade de Bowie à de Prince, debochando de sua reclusão, de sua discrição e de seu senso musical apurado. Por outro lado, o vigésimo-quinto foi muito bem-recebido pelos fãs e pelo público, não apenas por ser um retorno do astro ao disco depois de três anos, mas também por ter sido o último álbum lançado por David Bowie em vida.
A capa de recebeu a assinatura do designer Jonathan Barnbrook, que trabalhava com Bowie desde Heathen (2002). A escolha de imagem foi uma estrela negra solitária em um fundo branco, com seis fragmentos de estrelas abaixo formando a palavra BOWIE em letras estilizadas. De todas as capas de discos lançados pelo camaleão inglês, esta foi a única na qual o artista não esteve sequer presente na capa do disco. David Bowie tinha razões pessoais e artísticas muito fortes para isso. Nós a respeitamos…
Recebi a proposta de escrever este texto em 09 de janeiro de 2016, um dia depois do aniversário do Mestre e do lançamento de . Como David Bowie sempre foi um dos meus artistas preferidos, não fui capaz de negar o pedido e comecei a me preparar para a tarefa de decifrar mais um enigma proposto pelo camaleão inglês. Este texto tinha a intenção de ser uma homenagem, porém nada póstumo.
Nem eu, nem ninguém contava que seríamos surpreendidos pela saída de cena inesperada de Mr. Jones. Tal qual David Bowie decidira matar Ziggy Stardust na frente do público e do mundo no alto do palco do Hammersmith Odeon em 3 de julho de 1973, David Robert Jones morreu em 10 de janeiro de 2016 em New York City e matou a sua melhor personagem: David Bowie, que, tal qual sua criação mais célebre, passou a habitar o recôndito mais valioso de nossas memórias afetivas, no lado esquerdo de nossos peitos. Ou a viver em uma estrela longínqua...