A
VOZ ONIPRESENTE
(OU
minhas experiências com Belchior)
Em memória de Belchior (1946-2017)
“E eu quero é que esse canto torto
Feito
faca, corte a carne de vocês”
(Belchior, 1976)
Foi em um domingo,
véspera de feriado, após o almoço de família. Tomei conhecimento de que
Belchior tinha desaparecido de vez de nossas vidas. Estava em sua casa em uma bela
e pacata cidade no interior do Rio Grande do Sul. Seu coração velho de guerra e
combatente por mais de 70 anos de sonho de sangue e de América do Sul parou de
bater enquanto o poeta da canção ouvia música clássica. De nada adiantarão as
campanhas na Internet ou o amor verdadeiro dos fãs para que ele volte. De nada
adiantará as reportagens sensacionalistas dos programas de TV ou a proliferação
de comunidades nas redes sociais. E muito menos adiantarão as pichações clamando
a sua volta legítima para o convívio dos brasileiros e a saída de um presidente
ilegítimo do poder. Aquele rapaz latino-americano com pouco dinheiro no bolso
não irá mais voltar.
Antes de desaparecer da vida artística
e dos olhos do grande público, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle
Fernandes foi um dos nomes mais importantes da música brasileira da década de 1970
para cá. Foi gravado por nomes da mais alta estirpe da MPB – Elis Regina,
Roberto Carlos, Vanusa, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Zélia Duncan foram alguns
dos artistas que gravaram suas canções. Álbuns como Anunciação
(1976) e Coração Selvagem (1977) se
tornaram não apenas verdadeiros clássicos, como também eram itens básicos de
qualquer boa discografia de MPB.
Belchior é uma falha gravíssima no meu
departamento de ouvinte e pesquisador de música brasileira. Nunca fui um fã
ávido ou ouvi seus trabalhos com atenção por pura falta de vergonha na cara ou
da oportunidade de alguém que me dissesse: “Escute este disco aqui, pois ele vai
fazer a sua cabeça”. Ele sempre esteve onipresente nas coisas que eu aprendi
através de meus amados discos – o Trovador do Ceará sempre esteve nos meus
ouvidos através das interpretações de Ney e de Roberto, de Elba, Vanusa ou
Zélia, mas principalmente nas gravações eternas de Elis, a Pimentinha mais
ousada, intensa e desaforada que o universo já teve notícia.
Ao descobrir o álbum Falso Brilhante cintilando
de maneira triunfal na discoteca de minha avó, D. Magaly, fiquei tão encantado
com a voz de Elis Regina e a poética rascante de Belchior que o tal CD passou
um bom tempo tocando só para mim lá em casa. Tempos depois, comprei uma cópia
remasterizada do álbum de Elis e devolvi o “emprestado” para minha avó; afinal,
a boa arte não deve ser um privilégio exclusivo dos sortudos: ela deve ser
compartilhada, ouvida e amplificada no mais alto volume possível para que
muitos conheçam o que os brasileiros sabem fazer melhor: música!
O Trovador do Ceará não foi apenas
aclamado como um grande poeta da canção brasileira: depois de passar pelas
faculdades de medicina e filosofia, ele viveu como um Rimbaud. Veio do Ceará
para São Paulo em busca de melhores oportunidades no universo da música e
sofreu intensamente com as exigências mercantilistas da fama e da celebridade
em um contexto capitalista. Escreveu canções sobre a ditatura militar que ele
tanto sentiu na pele, outras de fortíssima crítica social, belas declarações de
amor e misturou Edgar Allan Poe e Luiz Gonzaga com Beatles e Bob Dylan. Provocou
um supostamente antiquado Caetano Veloso em meados dos anos 1970 em “Apenas Um
Rapaz Latino-Americano” e foi convocado para o embate pelo sempre debochado Raul
Seixas em “Eu Também Vou Reclamar”. Largou a fama e uma carreira de sucesso na
década de 2000, vagou entre o Brasil e Uruguai, acumulou dívidas babilônicas
(afinal, nunca ligava para o vil metal que ele tanto criticava) e viveu em um
anonimato praticamente absoluto até o fim de seus dias.
A saída de cena de Belchior trouxe
enorme comoção de artistas, fãs e amantes de música brasileira. Além disto,
surgiram os relatos de que o artista inquieto e bastante criativo durante seus
últimos tempos – trabalhava em uma tradução de A Divina Comédia, de Dante Alighieri e compunha novas canções sem
parar. Motivado pela revolta de um Brasil assolado pelas consequências de um
golpe de estado parlamentar, o Trovador do Ceará planejava voltar aos palcos e
fazer de sua arte um instrumento para combater as injustiças de nossos homens.
Infelizmente, Belchior não conseguiu realizar o retorno triunfal
que tanto planejava. Como ele teve o poder de influenciar as gerações
posteriores a dele, deixou uma legião de admiradores que jamais permitirá que
canções como “Medo de Avião”, “Paralelas”, “Como Nossos Pais”, “Apenas Um Rapaz
Latino-Americano”, “A Palo Seco” e “Velha Roupa Colorida” caiam no
esquecimento. Algo bastante justo para artistas de sua grandeza. Quem sabe assim
aquela voz grave e roufenha se torna mais presente no cotidiano deste que vos
escreve e aquece este coração velho de guerra?