CAETANO
VELOSO – VELÔ (1984)
Dentre
todos os álbuns lançados por Caetano Veloso na década de 1980, o que mais me
toca é Velô, lançado pelo filho mais
ilustre de Santo Amaro da Purificação (BA) em 1984. Em seu décimo sexto álbum
de estúdio, Caetano soava moderno, sedutor, ferino, feérico, filosófico como
nunca tinha sido até então.
A
sonoridade do disco se deve graças aos músicos extraordinários da "Banda
Nova", que acompanhava o irmão ilustre de Maria Bethânia na época. Tavinho
Fialho e Toni Costa tocaram baixo e guitarra, Marcelo Costa e Armando Marçal
ficaram a cargo da bateria e da percussão, Zé Luís Signeri ficou responsável
pelos sopros (saxofone e flauta) e Ricardo Cristaldi era o tecladista do grupo
e foi o produtor de Velô (junto
de Caetano). Enquanto as rádios brasileiras enlouqueciam com as canções do
chamado "Rock Brasileiro", Caetano Veloso lançou mão do ritmo
amaldiçoado e de outras sonoridades nordestinas, eletrificou tudo à máxima
potência e lançou um disco deliciosamente vibrante.
Marcelo Costa, Ricardo Cristaldi, Armando Marçal, Caetano Veloso, Tavinho Fialho, Zé Luís Signeri e Toni Costa |
A
primeira canção de Velô é uma das obras mais
importantes da música brasileira do século XX. "Podres Poderes" é uma
das críticas mais ácidas, irreverentes e inteligentes a um Brasil que estava a
um passo da redemocratização, repleto de vícios seculares e feito por
habitantes que mal sabem respeitar uns aos outros. O verso "motos e fuscas
avançam os sinais vermelhos / e perdem os verdes / somos uns boçais" critica
a selvageria do trânsito das grandes cidades brasileiras. Graças ao sucesso
desta canção, Caetano foi convidado a gravar uma participação para uma série
educativa com o objetivo de que os brasileiros aprendessem bons modos em
relação aos veículos que conduzem. Na época, as máquinas fotográficas
automáticas que captavam os apressadinhos foram apelidadas de
"Caetanos".
Três
canções do disco são um retrato interessante da música que se ouvia nas rádios
brasileiras da época. "Shy Moon", canção romântica repleta de sons de
sintetizadores e batidas eletrônicas, recebeu letra em inglês e contou com a
participação especial de Ritchie, que fazia muito sucesso com o hit
"Menina Veneno". "Comeu", além de ter recebido uma versão de Erasmo Carlos, foi também regravada por Kid Vinil, junto de seu grupo de Rock Magazine, e foi o tema de abertura da novela
global A Gata Comeu (1985), um dos
maiores sucessos televisivos da década de 1980. Por fim, "Sorvete",
retrata uma relação de amor conflituosa entre o sujeito poético e sua musa
amada. Esta última canção caberia perfeitamente no repertório de Angela Rô Rô,
que já foi agraciada com uma canção inédita de Caetano Veloso para o seu disco
de 1981. Seguem os versos do refrão, pontuados pelos teclados de Cristaldi e
pelo sax de Signeri:
"Feras lutam dentro da
noite-normal
Todos os insetos, os do belo
e os do mal
Anjos e demônios
O amor tomava conta de mim
Ela loura e negra, querubim
e animal
Burra, sábia, deusa, mulher,
menino e mandarim
Mas se ela não quis meu
sorvete
Por que gravá-la em
videocassete (...)"
"Grafitti",
parceria bissexta de Caetano com os poetas Waly Salomão e Antônio Cícero,
versava mitos gregos com a cena urbana da cidade grande com uma sonoridade
ligeira, típica do período. Além da dobradinha com Waly e Cícero, Velô traz "Pulsar", uma bela
parceria de Caetano com Augusto de Campos, um dos exponenciais da Poesia
Concreta brasileira. A sexta faixa do disco, por sua vez, é uma gravação do
frevo "Vivendo em Paz", do cantor, compositor e produtor musical
baiano Tuzé de Abreu, um dos melhores números do disco. Já a terceira canção do
disco é uma regravação de "Nine Out of Ten", composta por Caetano
Veloso para Transa, seu álbum de 1972, com tons mais caribenhos e pitadas da New Wave que tocava nas rádios dos
quatro cantos do planeta.
Velô possui duas
canções bastante poéticas e filosóficas. A primeira delas, "O Homem
Velho" (dedicada à memória de Zeca Veloso – pai de Caê –, Chico Buarque de Holanda e Mick
Jagger), um Caetano de 42 anos canta sobre o processo de envelhecimento com
muita sobriedade e lucidez:
"Os filhos, filmes,
livros, ditos como um vendaval
Espalham-nos além da ilusão
do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único,
indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que
é imortal"
A
segunda canção de cunho filosófico de Velô
é "O Quereres", um belíssimo tratado musical sobre o desejo. Já
regravada por grandes vozes da MPB como Maria Bethânia, Gal Costa e Fafá de
Belém, é uma das obras mais populares do cancioneiro de Caetano Veloso:
"Onde queres revólver,
sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou
paixão
Onde queres descanso, sou
desejo
E onde sou só desejo, queres
não
E onde não queres nada, nada
falta
E onde voas bem alto, eu sou
o chão
E onde possa o chão, minha
alma salta
E ganha a liberdade na
amplidão (...)"
A
última canção de Velô, o samba-rap
"Língua", foi dedicado a ativista política Violeta Arraes Gervaiseau
e contou com a participação de Elza Soares, na época em baixa em sua carreira:
"Flor do lácio,
sambódromo
Lusamérica, latim em pó
O que quer, o que pode essa
língua?"
A
canção de Caetano é um amálgama de expressões da língua portuguesa, de
estrangeirismos, de citações filosóficas e de referências a nomes da música, da
literatura e da intelligentsia como Luís de Camões, Fernando Pessoa, João
Guimarães Rosa, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé. Um carnaval tropicalista
encerrando um disco brilhante. Um dos trabalhos que levaram Caetano Veloso ao
panteão dos homens mais notáveis da música brasileira.