MINHA TV FOI PARA SANTANA DO AGRESTE
(OU assistindo as reprises de Tieta)
(OU a única coisa 100% relevante em matéria de teledramaturgia no momento)
“Tieta do Agreste
Lua cheia de tesão
É lua, estrela, nuvem
Carregada de paixão
Tieta é fogo ardente
Queimando o coração
Seu amor mata a gente
Mais que o solo do sertão”
(Luiz Caldas, 1989)
O lado bom de você se mudar para um
novo lar é que você fica inteiramente responsável pela programação da casa: como
eu me recuso a assistir aos noticiários e à teledramaturgia paupérrima e fútil
que a Rede Globo transmite hoje em dia, a TV fica desligada boa parte do dia.
Abro uma única exceção para assistir alguns programas do GNT e às reprises dos
humorísticos e das novelas que são transmitidas pelo Canal Viva.
Quando fiquei sabendo que o Viva iria
reprisar Tieta (1989), novela de
Aguinaldo Silva baseada no romance de Jorge Amado, ganhei um motivo e tanto
para ligar minha Sony Bravia velha de guerra. Tenho uma lembrança clara da
época em que a produção foi ao ar pela primeira vez – Betty Faria como Tieta e
Joana Fomm na pele de Perpétua ainda impressionaram o Vinícius de oito anos de
idade de tal maneira que era impossível desgrudar os olhos da TV em um horário
no qual os desenhos e os programas infantis não eram mais transmitidos em
cadeia nacional.
Betty Faria & Joana Fomm faziam as irmãs Tieta e Perpétua - duas atuações inesquecíveis... |
A Santana do Agreste criada por Jorge
Amado era um microcosmo de um Brasil machista, corrupto, atrasado e hipócrita.
Rever Tieta em
2017 só me faz ter a certeza de que pouca coisa mudou em nosso país de três décadas
para cá: a velha mania das pessoas em tirar vantagens umas das outras, por exemplo,
nunca se alterou. A corrupção e o coronelismo de nossos políticos também não. O
machismo e a homofobia não deixaram de ser características marcantes dos homens
brasileiros.
Ary Fontoura, Betty Faria, José Mayer e Arlette Salles |
José Mayer, Miriam Pyres e Arlette Salles |
Com muito humor, a trama trata de
tabus e temas espinhosos para o cotidiano brasileiro, tais como: corrupção,
machismo, pedofilia, religiosidade e diversidade religiosa, homofobia, questões
de gênero e diversidade sexual. A protagonista, escorraçada por Pai sexista e
opressor e uma irmã carola ultraconservadora quando muito jovem, resolve
retornar para a sua cidade natal para se vingar de todos aqueles que a
humilharam publicamente.
Yoná Magalhães, Cláudio Correia e Castro, Rosane Goffman e Lilia Cabral |
Ary Fontoura interpretava o coronel pedófilo Artur da Tapitanga e as suas "rolinhas"... |
O retorno de Tieta ao Agreste deixa
claro uma série de convenções que serão enfrentadas a ferro, a fogo e
irreverência – a relação incestuosa de tia e o sobrinho seminarista, a
homofobia e a perseguição de uma travesti pelas beatas da cidade, a pedofilia
de um coronel que alicia menores indiscriminadamente, viúvas carolas que
escondem uma lascívia sem ter fim (quem não lembra dos ataques de luxúria da
dupla dinâmica Cinira-Amorzinho e da lendária caixa de Perpétua), o desejo de um
filho ilustre em levar a sua terra natal para os avanços tecnológicos do século
XX e se vê diante de um provincianismo tacanho e brutal. A protagonista é o
retrato não apenas de uma parcela de um Brasil mais avançado, como também é uma
afronta a toda espécie de atraso moral de Santana do Agreste.
Cássio Gabus Mendes & Betty Faria protagonizaram uma relação incestuosa na trama que deu muito o que falar... |
O que Perpétua escondia de tão valioso e escabroso em sua tão falada caixa branca? |
Rever as reprises de Tieta durante às
noites me dá algumas saudades de parte da minha infância em Porto Alegre, como
também tem me feito dar boas risadas das estripulias da personagem de Betty
Faria e do cotidiano besta do Agreste de Jorge Amado. Se eu pudesse escolher um
programa de TV para que o Brasil inteiro assistisse, escolheria a novela
adaptada por Agnaldo Silva: a teledramaturgia daquela época tem muito a dizer
para os brasileiros do século XXI em matéria de arte e dos fatos corriqueiros
do nosso dia-a-dia. Enquanto a novela ainda estiver sendo reprisada
pelo Viva, minha TV continuará andando pelas dunas da praia de Mangue Seco e
pelas ruas de Santana do Agreste ouvindo os “bééééééé” da protagonista, querendo
saber quem é a tal “mulher de branco”, acompanhando a Marinete de Jairo e louca
para saber o que Perpétua guarda de tão escabroso em sua caixa branca...
OUÇA UMA SELEÇÃO DA TRILHA SONORA DE TIETA: