11 de janeiro de 2021

TROVA # 158

 

JUDY & FREDDIE

Assistir as vidas de Judy Garland e Freddie Mercury no cinema me deu a oportunidade de saber um pouco mais sobre eles...



No silêncio da noite, muitas vezes desejei apenas algumas palavras de amor de um homem, em vez do aplauso de milhares de pessoas.

(Judy Garland)

 “Eu sou uma prostituta musical, querido.

 (Freddie Mercury)

 

         Biografias nunca fazem jus aos seus respectivos homenageados. Quando a trama é levada para a tela do cinema, as chances de surgirem grandes controvérsias são altamente prováveis, visto que nem todos os roteiros cinematográficos conseguem contar algumas passagens da vida de astros e estrelas como elas realmente aconteceram. John Lennon, Jim Morrison, Cazuza, Tim Maia, Renato Russo e Elis Regina são alguns exemplos deste fato. Mas tem duas que eu assisti recentemente que chamaram bastante minha atenção e a minha curiosidade: a cinebiografia de Judy Garland e a de Freddie Mercury, do Queen.

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         Em julho de 2019, os frequentadores da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de Londres receberam a atriz Renée Zellweger como convidada especial para a exibição do trailer de Judy (2019), de Rupert Goold, cinebiografia da estrela de O Mágico de Oz. Graças à película, Zellweger levou o Oscar de Melhor Atriz do ano de 2020 para casa e reacendeu a chama do mito Judy Garland para uma nova geração de fãs, incluindo este que vos escreve.

         Judy reconstitui os principais acontecimentos que envolviam a última turnê de uma das maiores estrelas da história do entretenimento: seus problemas financeiros, suas batalhas com o ex-marido Sidney Luft (pai de Lorna e Joey, seus filhos mais novos), o vício em drogas, seus ataques de insegurança e fúria, sem contar as instabilidades e incertezas que sempre permearam sua vida sentimental e profissional. As origens da estrela apareciam em cenas de flashback (as filmagens de O Mágico de Oz, a relação difícil com os estúdios de Hollywood, a amizade “colorida” com o astro Mickey Rooney) para que o espectador menos informado compreendesse a origem eternos conflitos de Judy Garland.

         Foi em uma noite de domingo que eu me sentei em uma sala de cinema para assistir a Judy, o filme. A atuação de Renée Zellweger é tão irrepreensível a ponto de nos transportar para o universo de Garland sem questionamentos. Quando saí de lá, não fiquei apenas encantado por Judy, como também fiquei abismado com a dimensão de sua sina e de seu talento: a intensidade de uma estrela cujo brilho foi apagado pelas consequências mesquinhas da indústria do entretenimento. Por outro lado, tive a clara convicção de que artistas do porte de Judy Garland são simplesmente insubstituíveis, por mais que existam pessoas que reconheçam o seu legado.

         Depois de assistir ao filme, fui à caça de performances de Ms. Garland no YouTube e achei uma de suas biografias em um sebo no Rio de Janeiro. Descobri, por exemplo, que ela teve um programa de TV nos EUA durante a primeira metade da década de 1960. Dentre as pérolas do baú do audiovisual de Judy, encontrei uma interpretação sensível de “I Can’t Give You Anything But Love” (Dorothy Fields & Jimmy McHugh), canção de 1928 que já tinha sido gravada por Lena Horne, Marlene Dietrich, Billie Holiday, Doris Day, Ella Fitzgerald, para ficarmos apenas com as deusas do bel-canto feminino. Com todo o respeito às artistas citadas, mas a releitura de Judy é de uma intensidade tamanha a ponto de emocionar qualquer um que preste atenção no que ela estava dizendo.


         Se o brilho artístico de Judy Garland tivesse sucumbido com o final de sua trajetória neste mundo, jamais teríamos tido a oportunidade de aprender com ela o que é interpretar uma canção com toda a verdade que a obra de arte exige. Devo isto a Hollywood, ao filme Judy e ao talento indiscutível de Renée Zellweger. Porém, a família da estrela não se interessou pela película: Liza Minnelli, filha mais velha de Judy, se recusou a ver o filme e a dizer qualquer palavra sobre o assunto.

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         A vida de Freddie Mercury, o lendário vocalista do Queen, ganhou as telas de cinema com o filme Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer e Dexter Fletcher. Contou com a coprodução de dois dos membros da banda e se tornou em uma das maiores bilheterias do gênero da história em pouco tempo. Precisei de um pouco de tempo para ter a curiosidade suficiente para encarar uma sala de cinema para assistir a versão da vida de um dos artistas mais originais, inquietos e controversos do século XX. Confesso só fui depois que várias pessoas do meu círculo de familiares e amigos já tinham aventurado pelo escurinho do cinema, com combos de pipocas e refrigerantes a tiracolo, e recomendaram que eu fosse ver o filme o quanto antes. Mais uma façanha digna de orgulho para o próprio Freddie, que conseguiu despertar o interesse de um público gigantesco décadas após a sua saída definitiva de cena.


         Ninguém precisa ser um fã devoto do Queen (não me encontro entre eles) para saber que Freddie Mercury não era uma das pessoas mais fáceis de conviver no meio artístico: dono de um talento tão gigantesco quanto seu ego, sua luxúria e seu temperamento explosivo, além de extravagante ao extremo dificultando sua convivência com os demais membros da raça humana. Bohemian Rhapsody retrata tal faceta de Freddie com bastante louvor. No entanto, os admiradores da banda se revoltaram com a omissão de alguns fatos importantes, além da cronologia irregular que se apresentou no roteiro.



         É evidente que essas adaptações / ajustes foram feitos para que a biografia de Freddie Mercury “coubesse” em 90 minutos de filme. Para que a história do vocalista do Queen fosse devidamente aceita pelo grande público e por Hollywood, sua figura precisou ser suavizada, reinventada para ser aceita pelas massas e garantir maior retorno nas bilheterias ao redor do globo. Graças ao sucesso do filme, Rami Malek (ator que interpretou o vocalista do Queen na telona) levou o Oscar de Melhor Ator de 2019 para casa, derrotando concorrentes de maior peso, para surpresa de vários críticos especializados.

         Por outro lado, apesar de reconhecer as falhas de Bohemian Rhapsody (e elas são bem evidentes!), consegui me afeiçoar ao filme e à figura de um dos maiores ídolos da geração dos meus pais. Quando Freddie Mercury morreu por decorrência das complicações geradas pelo vírus da AIDS, em novembro de 1991, eu começava a dar os meus primeiros passos como ouvinte de música e só relacionava a imagem do Queen à foto da capa do álbum Greatest Hits que eles tinham lançado no início da década de 1980. Ver o filme me trouxe não apenas lembranças da minha infância, como também me trouxe a vontade de ouvir e conhecer um pouco mais o trabalho da banda.


         Ao contrário dos fãs mais radicais do Queen, fiquei feliz em ver um Freddie Mercury reinventado nas telonas do cinema. Em tempos nos quais o patrulhamento e a homofobia são gigantescos, é sempre estimulante ver um ícone LGBTQIA+ como protagonista de uma trama cinematográfica adorada por milhões de pessoas. Desta feita, ver um bigodudo bailando com seu microfone para lá e para cá deixa de ser uma aberração em um mundo conservador para ser algo corriqueiro e que faz parte do cotidiano, diverso e sem preconceitos.

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Não posso negar que ter ido ao cinema para assistir as vidas de Judy Garland e Freddie Mercury na telona me deu a oportunidade de saber um pouco mais sobre eles. Não apenas porque a arte desses dois artistas tão distintos sempre foi de enorme serventia para a humanidade, como também para entender que a vida dessas pessoas públicas (inventadas ou não) nos trazem duas lições básicas: a primeira delas é que por trás de todo glamour, pode haver um enorme sofrimento; a segunda e mais importante, os conflitos dos “mitos” do entretenimento podem ser parecidos com os meus, os seus e os nossos problemas.