13 de agosto de 2017

TROVA # 132

A CANTILENA DOS MORALISTAS


“Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir

Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz

Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei

Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Entre suspiros
Pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho, a te abraçar

Mas teu amante
Sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti”
(Chico Buarque & Cristóvão Bastos, 2017)


A partir da década de 1990, Chico Buarque começou a dividir suas atenções entre a música e a literatura. Enquanto o ambiente literário ganhou obras ficcionais de fôlego como Estorvo (1991), Leite Derramado (2009) e O Irmão Alemão (2014), o ambiente musical nacional passou a sentir falta do filho mais ilustre do historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Por isso, toda vez que Chico anuncia um novo disco, há uma comoção generalizada: os fãs mais ferrenhos se ouriçam, a grande mídia se assanha e os detratores separam as armas para atirar pedras em um dos alvos preferidos dos reacionários nestes últimos 50 anos.


 Fiquei bastante tocado com a primeira pista do que Mestre Buarque tinha aprontado para Caravanas, seu 23.º álbum de estúdio: “Tua Cantiga”, parceria com Cristóvão Bastos, é um lundu repleto de versos no qual um homem não mede esforços, nem escrúpulos para fazer tudo o que for preciso para estar ao lado da mulher amada. Uma canção romântica, com inspiração em Shakespeare, com o lirismo de Vinícius de Moraes e o cinismo típico das obras de Nelson Rodrigues.


A grande doença intelectual dos tempos sórdidos e líquidos que vivemos consiste na falta de leitura, de profundidade de pensamento provocados por noções toscas de interpretação de texto de uma parcela gigantesca das pessoas. O Brasil, em tempos de crise política, social e econômica, não é diferente. E por quais motivos não hesito em afirmar tudo isto: pela polêmica infeliz que os radicais de esquerda criaram com “Tua Cantiga”, acusando Chico de machista. Mais um capítulo chato da série “A Cantilena dos Moralistas”.
É com imenso choque que presencio posts assinados por algumas mulheres vociferando que Chico é um monstro justamente por causa do verso da canção que diz que o sujeito lírico não pensaria em “largar mulher e filhos” para correr atrás da mulher amada. As mesmas mulheres que, meses antes, devem ter ido ao cinema suspirar loucamente e pagar pau para o mesmo Chico Buarque em um documentário de Miguel Faria Jr. como se o monstro de olhos azuis fosse uma espécie de Justin Bieber da terceira idade? As mesmas pessoas que devem ter assistido ao filme Vinícius, do mesmo Faria Jr., e ter se encantado com os nove casamentos do Poetinha?


Não é a primeira vez que acusam o mesmo Chico Buarque de machista. Na época em que lançou Meus Caros Amigos (1976), alguns grupos feministas encontraram uma postura sexista em “Mulheres de Atenas” (parceria de Chico com Augusto Boal), pois as “Helenas” da canção não condiziam com a figura da mulher liberta do sutiã, dos dogmas sexuais e dos homens que a reprimiram séculos e séculos afora. Pura falta de interpretação de texto e de conhecimento de noções básicas de história. A justificativa das críticas à canção de Caravanas (2017) é o fato de que este tipo de amor não representa mais as mulheres do século XXI. Afinal, a leitura de nomes clássicos como Virginia Woolf e Simone de Beauvoir sempre vai bem, viu?


Ora, é importante irmos aos fatos: Chico Buarque não está preocupado em fazer com que as pessoas se sintam representadas em suas canções. Este moralismo torto, típico das esquerdas mais radicais, gosta de problematizar tudo e mais um pouco não abriria o bico se o fato do marido largar “mulher e filhos” estivesse em um romance de Jorge Amado ou em uma das novelas da Rede Globo. Desde que o mundo é mundo, o adultério sempre existiu. O mesmo deve se dizer em relação a famílias desfeitas e grupos familiares chefiados pela figura da mãe ou avó, por exemplo. Todavia, a patrulha de tudo e de todos insiste em nos dizer como devemos agir ou não... Já que o assunto “Chico Buarque” é algo que sempre tem um retorno garantido, se falarmos mal, a quantidade de likes e clicks aumentaria em escala exponencial.


Já nos diz o velho e certeiro ditado, livremente adaptado por este que vos escreve: “Pau que bate em Chico, também bate no Seu Francisco”. Como ele não está nem um pouco interessado no que os tribunais das redes sociais têm a dizer sobre ele, só nos resta dar sonoras gargalhadas e ouvir incessantemente a bela cantiga de Mestre Buarque enquanto ele não aporta pelos palcos do Brasil que ele tanto cantou em forma de canção...

Chico Buarque e o baixista Jorge Helder durante as gravações do álbum Caravanas (2017)
LINKS: