O
CANSAÇO DA ESPERANÇA
Como
o ano de 2020 cansou com algumas de nossas esperanças?
“Esperança cansa
Cansa de esperar
Já não tô podendo mais
Minha paciência é a razão
Minha fúria odiosa já tá na agulha
Minha fúria odiosa já tá na agulha
E um dia poderosa
Poderá dizer que acha tudo muito pouco
Fugir quando estiver desesperada, abandonada
E de repente voltar
Cansada esperada
Desapropriada
Fúria amansada descansa
E de repente, volta
Cansada esperada
Desapropriada
Fúria amansada descansa”
(Karina Buhr, 2010)
Se você chegou até
aqui, é porque sobreviveu junto comigo e junto de tantos outros que fizeram com
que as coisas valessem a pena. Escrevo este texto faltando menos de 24 horas
para o apagar das luzes do ano da (des)graça de 2020 na tentativa de encontrar
uma lógica coerente ou um pouco de esperança para o próximo ciclo de 365 dias
que está a caminho. A dificuldade é imensa, já que vivemos anos bastante
difíceis: uma pandemia que ceifou a vida de quase 200 mil brasileiros e
contaminou (oficialmente) mais de 7 milhões e meio de pessoas; uma crise
política permanente aliada a retrocessos econômicos, minando quaisquer
possibilidades de avanços sociais; os
órgãos de imprensa vivem sob ataque constante do Governo Federal enquanto
milhões retornam ao mapa da fome.
Sempre haverá um ou
outro que pode me acusar de pessimista, ou de ser movido apenas por uma “fúria odiosa”, algo totalmente compreensível em tempos
de tamanha intolerância. Porém, aproveito para me defender citando uma frase
famosa do escritor português José Saramago que se encaixa com perfeição no ano
de 2020: “Não sou pessimista, o mundo é que é péssimo!”. Os três exemplos que
citei já são suficientes para derrubar a esperança de qualquer um para dar voz
ao cansaço.
Mas, apesar de estar
exausto de “tanto horror e iniquidade”, como nos disse Chico Buarque, a empatia
que ainda habita o meu ser ainda me faz ligar o noticiário para assistir os
acontecimentos do Brasil e do mundo durante o período de festas. O resultado é
ainda mais desastroso: vejo pessoas curtindo a vida lá fora como se não
houvesse um vírus que já matou milhares de pessoas e que tem levado os sistemas
de saúde ao colapso – festas clandestinas, reuniões familiares com dezenas de
pessoas, hotéis funcionando quase normalmente, máscaras faciais colocadas no
queixo ou em lugar nenhum, um desapreço total pelos médicos e cientistas, que
nos advertiram dos riscos de contaminação. Para os poucos que ainda estão em
confinamento, como eu, ver essa turba toda se divertindo pela TV e pelas redes
sociais (ambientes tóxicos por natureza!) é uma ofensa, um desrespeito, um
deboche explícito: com medo de me infectar, estou em casa há mais de 9 meses e
posso contar nos dedos das mãos quantas vezes eu saí de
casa para ir ao trabalho, ao supermercado, ao correio ou ate a farmácia.
Deixando as
festividades um pouco de lado, vamos fazer um breve retrospecto de alguns fatos
e acontecimentos que sacudiram o ano? Enumero alguns deles...
2020 foi mais um ano
no qual o racismo mostrou novamente a sua face mais
perversa ao Brasil e ao resto do mundo. Para ficarmos apenas em nosso
território, aproveito para retomar dois dados alarmantes: Primeiro: MAIS DE
2.000 CRIANÇAS E ADOLESCENTES FORAM MORTOS POR POLICIAIS ENTRE 2017 E 2019;
Segundo: ATÉ O INÍCIO DE DEZEMBRO DE 2020, 12 CRIANÇAS E ADOLESCENTES FORAM
ASSASSINADOS PELA POLÍCIA APENAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO! Com a pandemia e
com a maior quantidade de pessoas em casa, tivemos de prestar mais atenção a
casos hediondos de vidas ceifadas pela irresponsabilidade de quem deveria
proteger a sociedade. Fato ainda mais estarrecedor: a maioria das vítimas era
negra. Em um texto publicado na Folha de S. Paulo de 6 de dezembro de 2020, afirmou
Thiago Amparo, advogado e professor de Direito Internacional: “Balas não são perdidas,
porque sempre acham os mesmos corpos negros para os quais foram disparadas.”
Diante do massacre
praticado contra negros e pobres, eu me pergunto que tipo de “Boas Festas”
tiveram os familiares das primas Emilly e Rebeca, mortas por uma “bala perdida”
na frente de casa? Que tipo de “Boas Festas” tiveram os familiares de João Pedro
Pinto, de Leônidas Oliveira e de tantos outros mortos pela irresponsabilidade
do Estado enquanto famílias brancas puderam comemorar o final de 2020 com toda
a irresponsabilidade que eles julgavam ter direito?
Outra palavra que
ouvimos aos montes durante o ano da (des)graça de 2020 foi feminicídio. Graças ao assassinato brutal da juíza Viviane
Arronenzi pelo marido na Véspera de Natal, os noticiários aproveitaram a
ocasião para noticiar outros casos cruéis de mulheres que tiveram suas vidas
interrompidas por seus respectivos (ex-)maridos, namorados e companheiros. Com
todo o respeito à memória e às filhas da Juíza Viviane, eu me pergunto:
precisou que morresse uma mulher branca de forma perversa para que a opinião
pública voltasse seu olhar para um problema que atinge mulheres negras aos
montes?
Nesta época, na qual
celebramos o nascimento de Jesus Cristo, deveríamos buscar a reflexão, o amor
pelo próximo, a tal da empatia que muitos citam e raramente praticam. Em um
texto escrito no Natal de 2014, Guilherme Boulos escreveu algo que ainda se
encaixa no Brasil de hoje: “Jesus dedicou sua vida à igualdade, à justiça e à
paz entre os povos. Se reaparecesse (...) no Brasil, ficaria espantado com o
que dizem e fazem muitos dos cristãos. Seria achincalhado com palavras
inomináveis nas seções de comentários da Internet. Seria chamado de bolivariano
na Avenida Paulista. Certa comentarista de telejornal o mandaria levar para
casa a mulher adúltera que ele salvou do apedrejamento. E alguém, de dentro de
algum carro no Leblon, gritaria: ‘Vai pra Cuba, Jesus!’.” Cristãos da boca para
fora existem aos montes, levar os ensinamentos bíblicos a sério é algo não
permitido pela hipocrisia de cada um. É muito mais cômodo agir como Pôncio
Pilatos e lavar as mãos diante da barbárie que se pratica diariamente.
Ficar em isolamento dentro
de casa seria um exemplo de olhar para o seu semelhante para que ele não
entrasse para as estatísticas que os veículos de imprensa noticiam às 8 da
noite com o objetivo de nos informar quantos foram infectados e quantos
morreram em 24 horas. Abdicar de festas em família com mais de 10 pessoas seria
um ato de sensatez. Dizer não para o convite do amiguinho e ir para qualquer
parte seria outro exemplo de sanidade mental. Defender a vacinação para todos
os brasileiros o quanto antes enquanto outros países do mundo já estão se
vacinando seria ter princípios éticos bem consolidados dentro de si. No
entanto, como se diz por aí, miséria pouca é bobagem: bom senso não é algo que
faz parte do repertório de todo mundo.
Confesso: minha esperança está bem cansada em relação ao que virá. Reitero: cansada, mas (ainda) não está morta! Por isso, procurei ouvir a voz visionária dos artistas para encontrar forças e seguir em frente diante das tragédias. Muitos me ofereceram o conforto por meio de sua arte e me ajudaram a pensar o contexto atual com mais tranquilidade. Por isso, lembro-me de Patti Smith, uma das pessoas que mais me inspiram nos dias de hoje, que estou bem próximo dos 40 anos de idade: “O povo tem o poder / de consertar o trabalho dos tolos”. As linhas que eu escrevo talvez não tragam o conserto para muita coisa, mas me auxiliam a renovar as esperanças para o futuro. Afinal, o que se cansa pode se renovar. Aquilo já morreu, morto está e vai ficar. Sigamos em frente, com ou sem o cansaço para combater a barbárie...