A NAVE MUSICAL DE GAL COSTA
(ALGUMAS PALAVRAS SOBRE ESTRATOSFÉRICA, O SHOW)
“Não sou mais tola
Não mais me queixo
Não tenho medo
Nem esperança
Nada do que fiz
Por mais feliz
Está à altura
Do que há por fazer
E se me entrego às imagens do
espelho sob o céu
Não pense que me apaixonei por mim
Bom é ver-se assim
De fora de si
Eu viveria tantas mortes
E morreria tantas vidas
E nunca mais me queixaria
Nunca mais”
(Antonio Cicero & Arthur Nogueira –
“Sem Medo Nem Esperança”, faixa de abertura do CD/SHOW Estratosférica, de Gal Costa)
Existem poucas cantoras da chamada "MPB" que me encantem tanto
nos tempos de hoje como Gal Costa. Compreendi uma boa parcela da preciosidade
de seu canto e da sofisticação de sua voz depois que troquei o Rio por São
Paulo, ou seja, depois dos meus 25 anos de idade, momento em que atingi o
primeiro estágio da maturidade. Meus difíceis primeiros anos na Selva de Pedra
do Planalto de Piratininga foram embalados pela presença doce da arte de
Gracinha com Índia, Fa-Tal, Gal Tropical e o lendário disco que tem "Divino,
Maravilhoso" e "A Coisa Mais Linda que Existe". Meu mundo se
tornou bem melhor por causa dela.
Desde que comecei a escrever os textos do Trovas de Vinil, ela passou a ser uma presença constante, uma
figurinha mais do que carimbada. Ou mais do que isso: passou a ser a inspiração
de vários dos meus sentimentalismos musicais que eu tentei verter em forma de
crônica. Vibrei intensamente com a indescritível estranheza áspera de Recanto, álbum e show que trouxe
Gracinha de volta para os braços do público depois de anos fora dos palcos e
dos discos. No entanto, fiquei ainda mais animado com a leveza e a ousadia de Estratosférica, CD lançado por Gal no
primeiro semestre de 2015 e que reúne veteranos e músicos menos conhecidos dos
ouvintes da dita "música brasileira tradicional". Kassin, Moreno
Veloso e Marcus Preto conseguiram fazer com que Gal Costa soasse
irrepreensivelmente contemporânea para aqueles que ouviriam sua voz ao fim da
primeira metade dos anos 2010 sem que ela soasse modernosamente pretensiosa ou
excessivamente revisionista. As canções não reuniam a aspereza radical de seu
trabalho anterior: havia uma alegria colorida ensolarada ausente na escuridão
de poucos anos antes. Enquanto os puristas e críticos mais chatinhos resolveram
cair de pau na nave musical de Lady Gal,
decidi voar pelos céus de brigadeiro que a eterna musa tropicalista resolvera
abrir para nós sem um pingo de medo e com a plena esperança de reencontrá-la
onde ela reina com toda a graça: nos palcos...
Depois de uma tentativa frustrada no início de 2015, finalmente
conseguimos assistir uma belíssima apresentação do recital Espelho D'Água no local mais apropriado para cultuarmos a arte da
eterna musa das lendárias dunas de Ipanema: o Teatro J. Safra, devidamente
acomodado na primeira fila da sala de espetáculos, sem a interferência de
garçons, lanternas, garrafas de cerveja ou fãs desejosos em tirar selfies (existe breguice maior a ser
cometida em um show, gente?) de frente para o artista que se apresenta em cena
aberta. Seguindo às preciosas orientações de Marcus Preto em relação à direção
artística e de repertório, Gal Costa reuniu alguns lados B de seus discos
("Caras e Bocas", "Tuareg", "Passarinho") e
algumas inéditas para o show, no qual era acompanhada somente por Guilherme
Monteiro na guitarra e no violão. As apresentações, que ocorreram entre meados
de 2014 e meados de 2015, foram não apenas uma oportunidade para que público e
artista revisitassem um legado de décadas, como também serviu para que
esperássemos com ansiedade o que Gracinha iria aprontar nos palcos com a
estreia da turnê Estratosférica.
Pouco tempo depois de nos sentirmos arrebatados pelo belo recital,
estivemos frente a frente rapidamente com a eterna musa do Tropicalismo em uma
noite de autógrafos do CD em julho de 2015. Gal foi de uma atenção e de uma
simpatia tão grande conosco que foi impossível não esconder o meu sorriso
largo, torto e imperfeito de ter trocado algumas palavras com ela, ganhar um
autógrafo e tirar uma foto para eternizar esse momento tão especial para nós.
A estreia da turnê coincidiu com um marco histórico pessoal de extrema
importância para Gal Costa: o primeiro show foi no mesmo final de semana em que
a artista completou 70 anos de idade. A comemoração se deu em cima do palco,
celebrando o amor pela música e cinco décadas de uma carreira dedicada ao que
existe de melhor em matéria de canção neste país. Em outras palavras, a festa
de Gracinha tornou-se de todos os que admiram o seu trabalho e a sua trajetória
pelas artes do Brasil. Pronta para voar intensamente, a nave pousaria em São
Paulo para uma única noite depois de passar por Salvador, Goiânia, Rio de
Janeiro e outras cidades. Para que o evento se tornasse algo extremamente
forte, expressivo e simbólico, o setlist
de Estratosférica contou com uma
entrada triunfal: a já antológica "Sem Medo Nem Esperança", composta
por Arthur Nogueira e Antonio Cicero ("Não sou mais tola / Não mais me
queixo / Não tenho medo / Nem esperança // Nada do que fiz / Por mais feliz /
Está à altura do que há por fazer"...), se funde com o lendário rock "Mal Secreto" (Jards
Macalé & Waly Salomão), já cantado por Gal durante a inesquecível temporada
de FA-TAL: Gal a Todo Vapor
("Não choro / Meu segredo é que sou / Rapaz esforçado / Fico parado,
calado, quieto / Não corro / Não choro / Não converso / Massacro meu medo /
Mascaro minha dor / Já sei sofrer"). Minha surpresa ao ver nos vídeos
gentilmente compartilhados pelos fãs de Gracinha pelo YouTube e pelo Facebook
que nossa musa estava em uma excelente forma e deixando muita popstar a ver navios.
A nave musical capitaneada por Gal, Guilherme Monteiro (guitarra),
Pupillo (bateria e direção musical), Fábio Sá (baixo) e Maurício Fleury
(teclados) não perde altitude com a presença de peso de "Jabitacá"
(Júnio Barreto, Lirinha & Bactéria), "Não Identificado" (Caetano
Veloso) e "Namorinho de Portão" (Tom Zé). Já as inéditas
"Ecstasy" (João Donato & Thalma de Freitas) e "Casca"
(Alberto Continentino & Jonas Sá) conferem arrojo e modernidade para o
repertório de uma das cantoras mais modernas do país. Antes do número seguinte,
a pungente "Dez Anjos" (Milton Nascimento & Criolo), problemas de
som da guitarra de Guilherme obrigam a bela Gracinha a interromper o
espetáculo, enquanto os técnicos resolviam o problema. O público, ao invés de
ser presenteado com um típico e autêntico piti de uma grande estrela da canção,
foi presenteado com (sim, acredite!) uma PIADA contada por Gal Costa. O talento
de piadista da filha de D. Mariah está longe de ser o mesmo que ela possui para
o canto, entretanto a intenção em suavizar um momento tão tenso em uma
apresentação ao vivo contando um fato tão tosco e pitoresco foi de uma
simplicidade tão grande que rendeu ainda mais a minha admiração.
O roteiro do show ainda nos trouxe surpresas regadas a canções inéditas
na voz de Gal e lados A e B que foram excelentemente repaginados para a versão
ao vivo de Estratosférica. O resgate de canções de discos menos clássicos como
"Cabelo" (Arnaldo Antunes & Jorge Benjor) e "Arara" (Lulu
Santos) foram surpreendentes até para os fãs mais radicais do trabalho de
Gracinha. A inclusão de "Cartão Postal" e de "Os Alquimistas
estão chegando os Alquimistas", duas das faixas mais belas dos discos mais
importante de Rita Lee e Jorge Benjor - Fruto
Proibido (1975) e A Tábua de
Esmeralda (1974) - no setlist nos
deu a impressão de que estas canções sempre fizeram parte do repertório mais
clássico de uma das cantoras mais importantes do Brasil. Já a presença da
infinitamente tristonha "Três da Madrugada" (Torquato Neto & Carlos
Pinto) e da singela "Sim, Foi Você" (Caetano Veloso) renderam os
momentos mais poéticos da apresentação. Por fim, a sequência que une as
releituras bluesy com sotaque eletrônico de "Como 2 e 2" (Caetano
Veloso) e "Pérola Negra" (Luiz Melodia) é arrebatadora ao ponto de
deixar o público com a respiração entrecortada.
Quando damos por conta de que o show chegava ao fim, mais de noventa
minutos já tinham se passado sem que a gente desse por conta de tal fenômeno.
Gal e seus navegantes estratosféricos saíam para detrás do palco e já
preparavam a nave para que ela decolasse novamente. A bela setentona retornou
ao palco e cantou "Meu Nome é Gal" (Roberto Carlos & Erasmo
Carlos), a canção que se tornou em sua marca registrada definitiva há mais de
quatro décadas. A turma que fazia a cabeça de Gracinha em 2015 ainda possui
alguns nomes davam o tom em 1969 - Caetano, Gil, Jorge Benjor, Tom Zé, Roberto,
Erasmo e alguns outros nomes ainda estão por lá, no entanto a nave musical de
Gal Costa pousou por outras paragens, tais quais as de Milton Nascimento, João
Donato, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães, Guilherme Monteiro, Pupillo e alguns
outros... Tal qual a Gracinha recém-egressa da Bossa Nova é que tinha caído de
cabeça no movimento tropicalista, a Gal Costa recém-chegada ao clube dos
setentões ilustres da música brasileira ainda possui a crença na importância do
amor para que as coisas da vida lhe fizessem sentido. O tal "rapaz"
que ela procurava para corresponder o seu amor anos atrás foi encontrado. Ele
lhe ama incondicionalmente há mais de quatro décadas: seu nome é público. Em
alguns momentos, o dito cujo pode não possuir a "cultura" necessária
para compreender os meandros e sutilezas de uma artista, mas nunca duvidou do
sentimento e da importância da filha de D. Mariah para as artes do planeta.
E, enfim, a nave musical de Gal Costa voou com destino a outra galáxia
para animar outros terráqueos que ainda se encantarão com o seu canto límpido e
cristalino. Apesar de termos sentido falta de outras canções no setlist ("Vaca
Profana" e "Átimo de Som", por exemplo) o show Estratosférica foi um evento notável e
digno para que não possamos esquecer que Gracinha ainda é uma das cantoras mais
importantes do Brasil. E, se depender da vitalidade que temos visto pelos
palcos afora, teremos muito o que dizer acerca da arte de Maria da Graça Costa
Penna Burgos... para a plena alegria dos amantes da boa música!
LEIA MAIS SOBRE O CD ESTRATOSFÉRICA NO PEQUENOS CLÁSSICOS PERDIDOS:
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