1 de novembro de 2015

TROVA # 56

A IRA SELVÁTICA DE KARINA BUHR

FOTO: Daryan Dornelles

Para Ká & Fabinho, com amor!

Sua dúvida é produto da sua escravidão
Mantenha então
Sua sanidade em defesa do seu estômago
Se você pensou que tinha solução

Mantenha então
Sua integridade indefesa
Porque o tempo vai passando
Suas qualidades vão sumindo

E os seus defeitos aparecendo cada vez mais
Cada vez mais
Cadáver
(Karina Buhr – “Cadáver” – sétima faixa de seu
segundo álbum solo, Longe de Onde, de 2011)


            Quando (ou)vi falar pela primeira vez em uma tal de Karina Buhr, pensei que ela era mais uma integrante daquela geração de músicos que fazia parte desta geração dos anos 2010. Em outras palavras, mais uma cantora que posava de cool sem produzir algo em termos musicais que estivesse à altura da pose das capas dos discos e das fotos das reportagens. Ao constatar que meus cunhados/amigos/irmãos Karina & Fabinho já haviam parado na contramão de Miss Buhr a ponto do pequeno rebento deles, Raulzito, achar a moçoila o máximo, cheguei à humilde conclusão de que a novidade tinha pintado em cheio na minha praia e só eu não havia parado para ouvir. Miss Buhr era papo firme, era chapa quente, uma brasa fumegante do tamanho de um vulcão!
            Lembro vagamente da primeiríssima vez em que vi Karina Buhr cantando: foi em uma participação em um show de Marina Lima no SESC Vila Mariana (SP) lá pelos idos quase esquecidos de 2011. Em meio a um cenário cinematográfico de Isay Weinfeld, a safra menos inspirada de Marina e a falta de voz da artista que tomou o país de assalto ao som de “Fullgás”, vi uma bela moça de cabelos cor de fogo surgindo de uma extremidade do palco para cantar ao lado da artista da noite. Da aparição de Karina eu não me esqueci, já da apresentação de Marina como um todo, é melhor deixar pra lá... Tempos depois, ouvi uma regravação de “Tão Fácil” (Marina Lima & Antônio Cícero) que eu achei tão interessante, mas tão interessante que eu decidi ficar de olhos bem abertos e com olhar bem atento e forte nesta baiana criada em Pernambuco e hoje radicada em São Paulo.


            Anos depois, fui conhecer o trabalho de Karina Buhr mais a fundo em seu habitat mais do que natural: o palco! O Centro Cultural São Paulo anunciou um show da artista no qual ela fazia um tributo ao Secos & Molhados para quem quisesse ouvir (não me lembro se foi de graça, ou se foi por um preço hiper camarada). Minha obrigação em estar lá era tripla: 1) Era um tributo ao Secos & Molhados, a banda do meu coração e meu objeto de pesquisa e de estudo por tantos e tantos anos; 2) A homenagem contrariava qualquer clichê em torno das mensagens oportunistas, óbvias e surradas que já fizeram ao grupo que revelou Ney Matogrosso para o Brasil e o mundo; 3) Era a oportunidade definitiva para conhecer o trabalho de uma artista nova, inquietante e a deixa perfeita para ir em busca de novos horizontes musicais.

Karina Buhr canta Secos & Molhados: um belo tributo

              Fiquei encantado com o resultado do que assisti no CCSP: Karina Buhr não apenas releu o repertório do primeiro disco do Secos & Molhados com muitíssima reverência e respeito, como também permitiu que seus músicos imprimissem suas personalidades em um trabalho tão marcante – o trompete de Guizado chega a ser tão marcante quanto a flauta de Sérgio Rosadas, músico que tocou nos dois primeiros álbuns do grupo. Além disso, a postura de palco de Karina, acalentada por anos e anos de trabalho com bandas de Recife (Eddie e Comadre Fulozinha) e como atriz do Grupo Oficina (idealizado e mantido pelo controverso e revolucionário diretor teatral José Celso Martinez Corrêa), é simplesmente arrebatadora: ela conseguiu ser não apenas uma seguidora do caminho aberto por Ney Matogrosso anos antes, como fez uma belíssima homenagem a um dos artistas mais importantes da música brasileira sem descaradamente imitá-lo. O encore do espetáculo contou com algumas belas canções do repertório de Miss Buhr: “Cara Palavra” e “Nassíria & Najaf” foram apresentados em meio a uma sinfonia ensurdecedora de cacófatos, gritos e distorções típicas de um show de Punk ambientado no velho e saudoso CBGB’s. E o melhor de tudo estava reservado para o final, quando a artista resolve envolver o seu pescoço em um fio de microfone, resultando em um dos atos performáticos mais insanamente loucos que eu já presenciara em vida.

Miss Buhr e o microfone




Após o show, ativei o modo pesquisador que ainda existe dentro de mim e decidi sair em busca das gravações de Karina Buhr. Redescobri a tal gravação no tributo feito à Marina Lima e me encantei com Eu Menti pra Você (2010), seu primeiro disco. A capa do CD, revelando uma mulher com as mãos na testa com uma expressão de leve sarcasmo, sem traços de paixão, quebra com todo e qualquer horizonte de expectativas de qualquer ouvinte de MPB: ouvir logo de cara que a bela cantora é uma pessoa que mentiu despudoradamente para ti ou o clamor de uma canção de ninar que ordena que você durma antes de que você morra bombardeado por mísseis não são coisas lá muito simples de se dizerem por uma artista novata. Ao contrário, são coisas que surgem para quebrar as pernas de qualquer um que esperasse modéstia, delicadeza e simplicidade de um debut álbum de uma artista feminina: Karina estava lá para romper com aquela lógica, para nossa euforia.

Eu Menti pra Você (2010)

A poética de Karina Buhr é longe de ser alegre ou solar, tal qual alguns de seus colegas de geração. “Mira Ira”, oitava faixa do álbum, revela uma relação sentimental torta e ameaçada pelo que existe de mais primitivo e autêntico de nossos “pecados capitais”, a ira corrosiva que tem o poder de aniquilar o mais puro e belo dos sentimentos:


Tá tudo padronizado
no nosso coração
nosso jeito de amar pelo jeito
não é nosso não

Tá tudo padronizado

Me mira a ira
me mira mas me erra
mas minha mira me era confusa
mudando meu amor de endereço

Fria, não miro a ira
não miro mas te acerto no peito
quando mudo meu amor de endereço

Me mira a ira
me mira mas me erra no escuro
sentindo teu amor profundamente

Foto: Ana Tatsumi

            Outro momento delicioso de Eu Menti pra Você é justamente a faixa que encerra o disco: a lânguida “Plástico Bolha”, uma ode ao ócio, à liberdade e à preguiça em tempos de capitalismo insanamente selvagem e doentio, é uma das melhores gravações de Karina Buhr:


Hoje eu não tô afim de corre corre, confusão
Eu quero passar a tarde estourando plástico bolha
Mas você reagiu mal
Porque você não esperava
Mas eu te esperei e a gente se desesperou
Hoje eu não tô afim de corre corre, confusão
Eu quero passar a tarde estourando plástico bolha
Bolinha de fumaça, plástico bolha

Longe de Onde (2011)

            Consegui ouvir o segundo álbum de Karina Buhr, o incendiário Longe de Onde (2011), há pouquíssimo tempo, graças aos milagrosos serviços de streaming, que divulgam o que há de melhor em termos de música graças ao simples toque um smart phone. Fiquei literalmente impressionado com a ferocidade e alguns (leves) surtos de delicadeza que vinham dos versos e sons daquele disco. O sucessor de Eu Menti pra Você deixava mais do que claro que a mocinha estava longe de ser uma diva ou uma darling carente de carinho ou de um macho protetor – ao contrário, tornou-se mais do que evidente que Miss Buhr era uma mulher muito da perigosa e que ainda faria mais barulho por aí:


Cada fala
Cada palavra cala
E ganha um signovosignificado para mim
Desperta dor
Apaga dor
Vai embora
Fica
Meu amor
 

Foto: Ana Tatsumi

            Outras canções do disco como “Pra Ser Romântica” e “Amor Brando” são retratos de relações amorosas distantes da perfeição, descritas a partir de um destemido deboche. As interpretações de Karina Buhr são repletas de sentimento, porém com a clara noção de que a realidade amorosa não se faz da materialidade forjada pelo que vemos nas telas da TV ou do cinema:


Hoje eu dei
Pra ser romântica
Perto de você não me vejo só
De você quero distância
Bem pequenininha

Nem ia imaginar
O sol, você como está
Nesse dia, esse viaduto lindo
Como calendário de verão
Do mês que a gente está
Na cidade que continua linda
Continua linda
Que continua linda
Continua linda


Eu já sinto um calor de amor
Quando você chega aqui
Tava tudo tão facinho, no rasinho
E eu sem me dar conta
Assim fui indo
Agora sinto um calor de amor
Quando você chega aqui
E eu te peço que
Se aproxime de mim um pouco
Mas não tanto
A ponto de eu sentir sua falta
Quando você for embora

            E eis que Karina Buhr me conquista de vez com o seu terceiro álbum. Selvática foi lançado no final de setembro de 2015 diante de uma polemica insana e ridícula diante da imagem da capa do disco, que mostra a artista sem camisa e com os seios à mostra. Independentemente de qualquer tipo de controvérsia que a imagem pudesse gerar, decidi que não haveria oportunidade mais perfeita de me apaixonar de vez pela cantora de cabelos de fogo quando fui para a noite de estreia da turnê no SESC Pompeia com a típica ansiedade que antecederia um show de Paul McCartney ou dos Rolling Stones, no início de outubro de 2015. Em um final de semana no qual Sampa estava repleta de atrações musicais imperdíveis (Ney Matogrosso, Elza Soares e Edson Cordeiro estavam fazendo seus shows no pedaço durante o mesmíssimo período) e diante da impossibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, foi uma tarefa árdua ir em apenas uma única apresentação das duas que Karina fez para lançar o CD.

Flyer de divulgação dos shows da abertura da turnê Selvática

Meu choque inicial já se deu quando descobri que a banda que acompanharia Karina naquela noite era composta de dois guitarristas consagrados e pelos quais tenho profunda admiração: Fernando Catatau (que eu já conhecia de trabalhos com estrelas de primeira grandeza de nossa música como Vanessa da Mata) e o mestre Edgard Scandurra (que já tocou pelo Brasil afora com o Ira e possui uma longa parceria com o ex-titã Arnaldo Antunes). O segundo impacto – ainda mais profundo – se deu quando vi que Scandurra ia dar seu expediente a menos de 1m de distância deste que vos escreve estas linhas tortas e irregulares. E o que dizer de Karina herself? Creio que ela é a presença de palco mais impactante que já vi desde que assisti Ney Matogrosso cantar em um palco pela primeiríssima vez.




O palco de Karina Buhr é um espaço plenamente dionisíaco: ela encarna todas as perversões e deboches que estão contidos em seus versos sem se importar com modas ou tendências, o que lhe rendeu um público devoto e profundamente respeitoso. Ela não tem o menor medo de soar insípida ou inodora como qualquer Pop Star. Não tem a ambição de se parecer com as Primas Donnas clássicas da MPB que acreditam que o stage floor é um chão sagrado, tal qual o de uma cantora de ópera. O local musical de Miss Buhr pertence à ordem do profano, por isso, infinitamente imprevisível e perigoso.

É um fuzil? Não, é apenas o pedestal do microfone...


Por isso, cada apresentação ao vivo de Karina Buhr é uma oportunidade e tanto para que possamos afirmar o nosso gesto de contrariedade a uma série interminável de medidas conservadoras e retrógadas adotadas pelo Congresso Nacional (restrição de direitos das mulheres, de homossexuais, dentre outros absurdos). “Selvática”, a canção que dá nome ao terceiro álbum da artista, é uma tentativa de reescrever a história feminina a partir de uma releitura do livro do Gênesis, da Bíblia Sagrada:


Refaço! Rechaço!
Não lhe devemos nada
não nos verás na escuridão como capacho
nos temporais amargos
dias penumbrosos anoitecidas
Não moveras do corpo um pelo
a tempestade é vencida

Selváticas, por amor ensandecidas.
Não as tocarão manadas apedrejantes.
Selváticas, de vitórias surpreendentes munidas
cavalgam amazonas delirantes.
Guerreira que bebe sangue
arco e flecha do Daomé
viço do bicho, ebó de mangue
jurema da favela
óleo de palma pra ela
alma na planta do axé

O eclipse perdurará
acharás palha no agulheiro e transmutarás
Perfurarás o mal seu e o alheio e o enforcarás
com o cipó da própria raiz segura
costura de árvores nas alturas
não espirrarás tua violência amanhecida
tantas vezes na aprovação da multidão
tua sanha virará só coração
sem arranhão, nem ferida
Choro trufado, pedregoso
umedece o olho arranhando
refinando a vista embargada
guerrilheira curda vitoriosa
nas curvas das serras teimosas
Mulheres, conforme a espécie na guerra
esbravejam a dor da Terra em uivos
lhes crescem pupilas ruivas
uvas bacantes semeadas
oliveiras palestinas suculentas
avisam: já não há quem possa

Chifres de marfim nascem devagar
a empurrar entremeando os cabelos
Afiam-se dentes-pontas-de-diamantes
estraçalhadores fulminantes de pecadoras maçãs
Vãs as imagens delas
conforme a sua semelhança
bailarão lança e festança
extirparão o sumo da memória criminosa
refarão a história e a prosa
de tuas eternas inquisições de fogueiras
em beiras de abismos baderneiras flamejantes
ciganas a postos abafarão os berreiros constantes
em fogosas rosas gigantes
filhos meus, os seus e os nossos

Selváticas, elas não necessitam seu elogio
Ela transgride sua orientação

Refeito o começo bíblico
não ferirás nenhum corpo por ser feminino
com faca, ou murro, ou graveto
eu te prometo
sedarás o mal, interceptarás no meio do caminho o espeto
Super heróis de tuas vítimas estancadas
agora és delas a espada e não o algoz

Selvática, ela come a selva de fora
ela vem da selva de dentro!
Selvática, ela pare a própria hora
ela bale em pensamento!
E no final ideal não terás domínio
algum sobre mulher alguma!
No final ideal não terás domínio
sobre mulher alguma!

Quatro momentos de "Selvática" por Vinil


Saí do SESC Pompeia tão acachapado com a bravura, a ousadia e a despretensão artística de Karina Buhr – algo que, repito, não se vê na maioria das grandes cantoras deste país – e me tornei um fã confesso desta baiana arretada a partir daquela noite. Aproveitei a oportunidade para finalmente adquirir os CDs de Miss Buhr e parar de vez na contramão da mocinha que alega que é má pelo fato de ter mentido para mim, para você e mais uma pá de gente que ouve os discos dela. Meu coração musical se tornou mais dionisíaco graças a ira selvática tão necessária que, por fim, me mirou e me acertou em cheio...

Algumas linhas sobre Selvática escritas pelo autor deste Blog para o Pequenos Clássicos Perdidos. Acesse o link:

Site oficial de Karina Buhr:
http://www.karinabuhr.com.br

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